O imaginário ocidental fantasia a respeito da vida de sheiks, emires e príncipes do Oriente Médio. No Qatar, um brasileiro conseguiu, através do futebol, chegar o mais perto possível da intimidade da família real. Há quase 13 anos, Márcio Souza, então ex-preparador físico da seleção qatari, recebeu um convite inusitado: ser personal trainer de Tamim bin Hamad al-Thani, o emir, líder máximo do Qatar. Desde então, passa uma hora e meia por dia com o governante do país, criando um vínculo que lhe permite saber de detalhes da paixão do soberano pelo futebol, com direito a torcida por um time carioca.
— Ele está ansioso pela chegada dos torcedores do Flamengo, espera que façam uma grande festa. Mas ele gostaria que fosse o Vasco. No Brasil, ele é vascaíno — revela Márcio.
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A ligação entre o governo do Qatar e o futebol é notória. Por exemplo, através da compra do Paris Saint-Germain. Al-Thani, ex-jogador de tênis e ex-presidente do comitê olímpico qatari, se encantou pelo time do Vasco que tinha Edmundo e Romário, em 2000, assistindo pela TV ao Mundial de Clubes. No entanto, sua ligação maior é com o Al Sadd, clube presidido por seu irmão, e com o PSG, propriedade do fundo soberano do Qatar.
— Mas ele acompanha todas as ligas do mundo — conta o personal trainer.
Carro novo a cada 2 anos
Hoje com 41 anos, Márcio lembra que a primeira sessão de treinos com o emir o deixou apreensivo. Ele tivera certa aproximação com o governante no período em que ficou na seleção, mas entrar na intimidade do palácio real parecia um passo grande. A recomendação era cuidar que al-Thani, então com 27 anos, perdesse peso e evitasse o agravamento de um princípio de diabetes. A relação prosperou e hoje o qatari segue à risca um programa que inclui corrida, prática de esportes variados e muita musculação. Tudo isso no gigantesco spa particular do complexo do palácio real.
Todo dia, Márcio passa pelo protocolo rígido de segurança para entrar na residência da família real. Lá, diz não ter encontrado a suntuosidade fantasiada pelas pessoas.
— Eles são sofisticados, gostam do melhor, mas não é uma ostentação de ter ouro por todo lado. E tratam as pessoas com uma educação impressionante. É muito prazeroso estar com ele.

O sonho de Márcio era viver do futebol, o que quase o fez recusar o convite. Hoje, percebe que tirou a sorte grande. A começar pela remuneração muito acima do mercado.
— Não é a cultura saudita, em que o sheik te dá um relógio de presente. Mas tenho uma casa que poucos estrangeiros têm. Até o combustível eles pagam. A cada dois anos dão um carro novo — conta ele, que chegou para a entrevista numa caminhonete Porsche. — Mas acima do material, ele me dá o reconhecimento que um profissional pode querer. Dou o sangue por ele.
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A rotina inclui acompanhar al- Thani também em viagens, o que estreitou laços. Ele recebeu recomendações para ser discreto quanto a detalhes da vida pessoal da família e da vida no palácio. Segundo Márcio, “para não misturar as bolas”, prefere atender apenas “al- Thani e a primeira dama”, embora este seja um conceito um tanto elástico — o Emir tem três esposas, cada uma vivendo em uma casa dentro do complexo palaciano. A cada noite, al-Thani dorme na casa de uma. Mas Márcio trata por primeira dama Sheika Jawahir bint Hamad al-Thani, prima do Emir, com quem tem um bisavô em comum. Quando alguma das outras mulheres quer um treinamento, Márcio prefere indicar outro profissional.
Não pode falar árabe
Não é ele o único brasileiro a conviver com os soberanos qataris. Há 13 anos, Alethea Thomas mudou-se para o Qatar após concorrer a uma vaga como aeromoça da família real, dona de cinco aviões de grande porte para suas viagens. Um dos requisitos para o emprego era não falar árabe, justamente para não entender as conversas da família nos voos.
— Doha era só deserto na época. Minha mãe dizia que eu iria ser sequestrada. Era um lugar desconhecido — recorda Alethea.
Ela teve que passar pelo difícil período de adaptação para uma mulher mudando-se sozinha para o Oriente Médio.
— O choque cultural não é só a vestimenta, ter que cobrir pernas, ombros. A cultura árabe é feita para o homem. E o dia a dia envolve reaprender a se comportar, todo o gestual. A mulher não deve sorrir para um desconhecido, pode ser interpretado como uma abertura excessiva — diz ela, que acabara de chegar de Ruanda.
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Alethea passou a viver em função dos deslocamentos do núcleo familiar, inclusive para eventos como Copa do Mundo, Jogos Olímpicos e a última Copa América no Brasil, em que o Qatar competiu como convidado. Nas viagens, a equipe de comissários, hoje comandada por ela e toda composta por estrangeiros, aprende a respeitar a cultura local.
— Não pode, na época do Ramadã, aparecer um tripulante comendo na hora do jejum. E precisamos ter discrição. Não posso falar sobre eles, há uma distância hierárquica, mas o tratamento deles conosco é fantástico, um respeito enorme — afirma Alethea, que vive em um bairro de luxo na região de Doha conhecida como Pérola, um arquipélago artificial que começou a ser construído em 2004 ao custo estimado de US$ 15 bilhões.