Valnir da Silva Medeiros, o Pintinho, tinha 11 anos quando trocou o campo do Cabuçu pelo da Gávea. Mais ou menos dois anos depois, deixou a família em Nova Iguaçu e foi morar na concentração do Flamengo . Rapidamente havia se tornado a principal promessa rubro-negra, a ponto de receber de Zico as chuteiras que o maior ídolo do clube usou em seu jogo de despedida.
A partida que marcou o adeus do camisa 10 completa 35 anos nesta quinta-feira. O Galinho foi festejado em um amistoso entre Flamengo e um combinado de grandes estrelas nacionais e internacionais, no dia 6 de fevereiro de 1990. As mais de 95 mil pessoas no Maracanã viram Zico dar sua benção a Pintinho, à época com 14 anos.
Em 2001, prestes a completar 26 anos, ele deixou o Flamengo sem sequer jogar uma partida pelo time profissional. Por que a promessa não se concretizou? O ge entrevistou Pintinho, Zico e outras pessoas que conviveram com a joia no clube para contar a história deste talento que não vingou.
Pintinho com Zico no Flamengo — Foto: Arquivo pessoal
Pintinho, nascido em 10 de julho de 1975, é um dos 10 filhos do casal Manoel Ferreira Lima Neto e Adir da Silva Medeiros. O pai, feirante, faleceu em 1988, enquanto a mãe, a razão pela qual a ex-joia do Flamengo sonhava com uma carreira de sucesso no futebol, morreu em 2013.
- Meus irmãos e eu dormíamos no chão, em cima de cobertores. Minha mãe não tinha nem sofá para sentar em casa. Demorei anos para comprar uma televisão para ela. Às vezes o time liberava a gente no domingo, e eu não tinha dinheiro para pegar ônibus e ir para Cabuçu. O pouco que eu ganhava mandava para ela - recordou Pintinho, que hoje está com 49 anos e vive no Maranhão, ao ge .
Casa da mãe de Pintinho em Nova Iguaçu — Foto: Arquivo pessoal
A chance de mudar de vida apareceu em 1987. Pintinho foi descoberto pelo treinador Paulo César "Fala Fino", que realizava um trabalho de descobridor de talentos para o Flamengo nos municípios da Baixada Fluminense. Aos 11 anos, ele chegou à Gávea e impressionou de cara.
- O Pintinho tinha um potencial enorme. Jogava em uma categoria acima da dele, porque sempre foi diferenciado. Foi um atleta excepcional em todos os aspectos. Em 1989, fui para o juvenil (agora sub-17) e perdi um pouco do contato com ele. Ele tinha um status muito alto no clube, tanto que estava inserido no Projeto Soma, que oferecia um acompanhamento especial para os atletas com potencial maior - comentou Claudio Bonavita, que treinou Pintinho nos três primeiros anos do jogador na Gávea.
Pintinho foi uma das grandes promessas do Flamengo no século passado — Foto: Arquivo pessoal
No juvenil, Pintinho formou dupla de ataque com Sávio, que anos depois explodiu no profissional do Flamengo , transferiu-se para o Real Madrid e conquistou três vezes a Liga dos Campeões.
- Moramos juntos alguns anos na concentração. Estávamos sempre juntos, era um menino muito legal, muito educado, a gente se dava super bem. Jogava muito. Em 1990, a gente fez o ataque do sub-15 e, depois, fomos campeões carioca e brasileiro no sub-17. Ele pegava sempre seleção de base. Um jogador muito talentoso, era rápido e tinha um drible curto - afirmou Sávio, que completou:
- Eu imaginei que Pintinho fosse ter uma carreira legal, porque ele era muito talentoso, era trabalhador. Fiquei surpreso por ele não ter chegado.
Pintinho acumulou convocações para as seleções de base — Foto: Arquivo pessoal
A surpresa é compartilhada por outros colegas dos tempos de base na Gávea.
- Pelo futebol que ele tinha, era para ser igual ao surgimento do Neymar. Tiveram muitas pessoas que atrapalharam a carreira do Pintinho. Ele jogava muito. Ele era o jogador que seria o sucessor do Zico, mas não teve as chances que deveria ter. Achei que faltou esse cuidado do clube - destacou Michel Rodrigues, volante que chegou a estrear no profissional do Flamengo em 1995.
- Um fenômeno jogando bola, nunca vi igual lá. Era um jogador rápido, liso, dava um tapa na frente e ninguém conseguia alcançá-lo. Um garoto super do bem, todos gostavam dele. Tinha sido 16 vezes campeão na base do Flamengo e não deram oportunidade para ele, não o deixaram vingar. Aquilo poderia ter mudado a vida dele - acrescentou André Bahia, lateral-direito que posteriormente foi levado para o Japão por Zico.
Michel, Pintinho e André Bahia em pelada de fim de ano organizada pela ex-joia do Flamengo — Foto: Arquivo pessoal
O maior ídolo do Flamengo repetiu naquele dia um gesto que também havia acontecido quando ele surgia no clube. Em 1969, dois anos antes de estrear no time profissional, Zico recebeu as chuteiras de Carlinhos Violino no jogo de despedida do ex-volante.
Zico em seu jogo de despedida do Flamengo no Maracanã, em 1990 — Foto: Reprodução
O Galinho correspondeu e entrou para a história do Flamengo . Na Gávea, ele foi campeão do Carioca (7x), do Brasileiro (4x), da Libertadores e do Mundial de Clubes. O sucessor de Zico teria trabalho, e o ídolo sabia que o simbolismo da entrega do par de chuteiras poderia ser um peso para um garoto de 14 anos.
- Eles me pediram para fazer essa entrega, e eu tinha a preocupação de passar uma responsabilidade muito grande para ele. Falei para analisarem com muito carinho. Tinha o receio de colocar uma esperança muito grande num menino que estava começando. Eu não tinha como acompanhar o que acontecia nas categorias mais jovens - lembrou Zico, em conversa com o ge .
Pintinho ainda guarda chuteiras que ganhou de Zico — Foto: Arquivo pessoal
Pintinho era de uma geração que estava três anos atrás do grupo formado por nomes como Junior Baiano, Marcelinho Carioca, Djalminha, Paulo Nunes e Nélio. Geração que é considerada por muitos como a melhor leva formada na Gávea depois da de Zico e companhia.
- Esse time tinha acabado de ser campeão da Copinha e, mesmo assim, foi o Pintinho que recebeu as chuteiras do Zico. Da base toda, o Pintinho foi o escolhido, porque na época ele era o maior artilheiro do Flamengo de todas as categorias, além de ser a grande promessa do clube - frisou Bonavita, o primeiro técnico de Pintinho na Gávea.
Depois do episódio, Zico acompanhou momentos da trajetória da promessa na base rubro-negra. Em 1995, levou o camisa 10 para alguns jogos do time máster na Ásia. Pintinho atuou com o ídolo e outros craques do Flamengo , como Junior, Andrade, Adílio e Nunes.
- Ele tinha muito talento, mas acho que jogaram uma pressão muito grande em cima dele. Não sei o que aconteceu de fato, porque a gente não sabe tudo o que se passa na vida dos garotos. Acho que o biotipo dele não desenvolveu, ele continuou muito franzino, e isso pode atrapalhar quando você sobe de categoria e tem que igualar na parte física com outros atletas - comentou Zico.
Pintinho guarda lembranças dos tempos de Flamengo — Foto: Arquivo pessoal
O meia-atacante guarda as chuteiras até hoje. Estão junto com outras lembranças, como medalhas e faixas de campeão, na casa da família, em Nova Iguaçu.
- Lembro o que o Zico me falou: "Não tenta ser igual a ninguém, seja você mesmo". Ele é insubstituível. Depois do Pelé, o melhor de todos os tempos para mim é o Zico - contou a ex-joia, que continuou:
- Minha vida continuou igual, como se nada tivesse acontecido. Foi um símbolo que não me trouxe nada. Hoje, penso em fazer um leilão.
A declaração de Pintinho não esconde a mágoa que o ex-jogador carrega pelo Flamengo . Mágoa é a palavra que ele mesmo citou algumas vezes durante a entrevista ao ge . O sentimento do ex-camisa 10, reforçado pelos colegas Michel e André Bahia, é de que faltou cuidado do clube.
- Fui campeão 16 vezes pelas categorias de base do Flamengo , ganhei tudo o que tinha para ganhar. No profissional, eu só ficava correndo em volta do campo. Eu cobrava meu salário e eles falavam: "Calma que ainda não é hora de você ganhar dinheiro". Quando você é criança e a vida é uma brincadeira, você joga por diversão. Quando você começa a virar homem e abre olho para a sua situação, tendo que alimentar família e não tem dinheiro, você vê que está tudo errado - desabafou Pintinho.
Pintinho se desvinculou do Flamengo em junho de 2001 — Foto: Arquivo pessoal
A falta de espaço o deixou desanimado, e Pintinho chegou a considerar desistir da carreira. Faltou a alguns treinos e questionou a condição de reserva. O último título na base foi a Copa Saprissa, na Costa Rica.
- Já estava chateado, tinha pedido para me mandarem embora e não quis aparecer nem na foto do título. Eu estava no banco, o time estava perdendo por 1 a 0. Entrei e iniciei a jogada do gol de empate. No finalzinho, eu fiz o gol da vitória.
Pintinho não apareceu na foto do time campeão da Copa Saprissa — Foto: Arquivo pessoal
Técnico da base do Flamengo entre 1990 e 1998, Marcos Paquetá treinou Pintinho nos juniores (agora sub-20) e avalia que o ex-jogador não se adaptou às mudanças de categoria:
- Ele sempre foi um jogador muito bom. Durante essas passagens de categoria sempre há diferença de idade, de evolução física e cognitiva. Isso tudo influencia na adaptação do menino. Pintinho estava numa época meio conturbada. A leitura que tenho é que colocaram muita pressão nele, uma exigência muito grande para um menino em formação. Ele teve alguns problemas de ordem disciplinar, normal nesse processo de maturação. Era promissor, tinha boas qualidades, era criativo, mas não evoluiu para jogar nos juniores em um nível alto e chegar ao profissional.
Com o passe vinculado ao Flamengo , Pintinho começou a rodar por outros clubes. Destacou-se no Ceará em 1996, quando foi artilheiro do campeonato estadual e virou manchete na imprensa local:
Jornal destaca desempenho de Pintinho no Ceará — Foto: Arquivo pessoal
No ano seguinte foi parar na Venezuela, onde ajudou a levar o Carabobo para a primeira divisão nacional. Em 1998, marcou 17 gols no Campeonato Venezuelano. Virou ídolo lá e parou nos braços da torcida. Foi onde recebeu o maior salário como jogador: R$ 4,5 mil dólares.
- Eu voltei campeão e não queriam nem saber como eu fui. Em vez de ficar correndo em volta do campo no Flamengo , eu fiquei rodando. Isso até 2001, quando me deram meu passe. No fim eu nem treinava, só fiquei esperando o dia de sair - recordou Pintinho, que concluiu:
- Cheguei no clube criança, tinham carinho comigo. Pensei que quando chegasse no profissional iam ajudar a mudar minha vida. Acabou o carinho.
Pintinho ganha destaque na imprensa venezuelana em passagem pelo Carabobo — Foto: Arquivo pessoal
Depois de se desvincular do Flamengo , em junho de 2001, Pintinho rodou por alguns times de menor expressão. Encerrou a carreira no Maranhão, onde também trabalhou como dirigente no Moto Club e no São José. Ainda vive em São Luís e, há 10 anos, trabalha para um templo maçônico.
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