Em pesquisas de torcida, a estratificação pode ser muito mais interessante do que brigar por meio ponto percentual

Pesquisa de opinião no futebol dá briga sempre pelo mesmo motivo: qual clube tem mais torcedores. Por mais que se esforce para incrementar a exposição dos dados — e O GLOBO tem sido exemplar na tarefa, em respostas abertas com casas decimais, margens de erro individualizadas e infográficos didáticos —, alguém vai arrumar confusão porque o time dele tem meio ponto percentual a mais ou a menos. Vai um conselho? Deixe a comparação de maiores torcidas de lado e foque no detalhamento.

A confecção do perfil do torcedor conforme o engajamento (página 4) é mais útil para quem trabalha com futebol, por exemplo. Porque é legal ter gente que diz torcer para o seu time, ao responder uma pesquisa. Mas é ainda mais legal quando essa gente se relaciona mais intensamente com o clube, o que pode envolver consumo de serviços e produtos, mas não apenas. Uma pessoa que lê as notícias, assiste aos jogos na TV aberta e fica de mau humor quando o time perde não gasta um centavo, mas torce.

A pesquisa O GLOBO/Ipsos-Ipec determinou que, entre os muitos brasileiros e brasileiras, aquele que pontua mais na escala de fanatismo tem o seguinte perfil: homem, jovem, nordestino, preto, de cidade do interior e pequena, com renda inferior a 1 salário-mínimo. Enquanto o perfil que ocupa o outro extremo da escala, do torcedor ocasional, é composto por mulheres de meia idade, brancas, sulistas ou sudestinas, residentes das periferias de grandes cidades, com renda superior a 5 salários-mínimos.

Eis o que me parece. O fanatismo está relacionado com a cartela de entretenimentos à que a pessoa tem acesso. Um cidadão com menos de R$ 1.518 por mês para se sustentar tem menos possibilidades do que outro que ganha mais de R$ 7.590. Cinema, teatro, literatura, espetáculos musicais, balada. Quanto menos ele e o círculo social dele ganham, mais restritos ficam ao mesmo tipo de entretenimento que os pais e os avós: futebol. Do jeito que der, de graça, com camisa pirata e televisão a gato.

Quase todas as características do torcedor engajado, segundo a pesquisa, reforçam essa noção de que menos dinheiro leva a mais futebol. O sujeito residente de uma cidade pequena, do interior, tem menos opções de entretenimento do que o de uma metrópole. O homem preto ou pardo é também pobre, em infeliz maioria, devido à maneira como o Brasil se formou socialmente. A baixa escolaridade, a predominância no Nordeste — uma região populosa, mas pobre quando distante das capitais.

O único fator que me parece indicar algo mais é o gênero. Se o homem é mais fanático do que a mulher por futebol, o dinheiro pode fazer parte da equação, pois mulheres em sua maioria são também prejudicadas nesse sentido em relação aos homens, mas pesa também a cultura do próprio esporte. A prática do futebol profissional foi negada a elas até poucas décadas atrás, não havia espaço para a profissional feminina na mídia até poucos anos atrás, e entre o público a normalização do hábito pode demorar mais.

Se o fanático é homem, jovem, preto e pobre, o clube pode já ter o coração, mas deve encontrar meios para se aproximar dele, sem exigir um consumo desproporcional à sua realidade. E se o perfil desengajado é da mulher, de meia idade, branca e maior poder aquisitivo, será, mesmo, que ela não gosta de futebol? Ou só não gosta do entretenimento que apresentaram para ela a vida toda? É por essas e outras que esse lado da pesquisa, sobre engajamento e estratificação, pode ser muito mais interessante do que brigar por meio ponto percentual na página sobre maiores torcidas.

Fonte: O Globo
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