O Fluminense até emitiu uma nota com pedido de desculpas pelo comportamento de sua torcida no clássico com o Flamengo , na última quarta-feira (29).

Na vitória sobre o arquirrival, pelo Campeonato Carioca , os tricolores cantaram "time assassino" para os rubro-negros, em referência ao incêndio que vitimou dez garotos das categorias de base do Fla, em fevereiro de 2019.

O incidente, contudo, está longe de ter sido um caso isolado. Na história do futebol brasileiro, gritos ofensivos são praxe. Os sexistas, em especial, objetificando mulheres e usando sexualidade como forma de ofensa são mais do que comuns.

Caso, por exemplo, do grito de "bicha" para os goleiros, em cobranças de tiro de meta. Ou dos muito comuns gritos de "Jogador/ Juiz/ Técnico 'veado'", e suas variações, como "galinhada' e "bicharada".

Mas a apologia e a normalização do uso de drogas e do assassinato, além da glamurização de confrontos nos cânticos de "incentivo" aos times também são comuns.

Do começo dos anos 1980 até o fim dos 1990, inclusive, não é exagero dizer que a maioria dos cantos buscava mais ofender o torcedor rival do que a exaltação do próprio time, num fenômeno nacional.

Nos anos 2000, na esteira de ações do Ministério Público contra as torcidas organziadas, músicas mais violentas começaram a se tornar raras.

Mas, em festas fechadas, nas sedes de algumas delas, as músicas ainda são entoadas, mostrando que o sumiço é menos fruto de conscientização do que de receio de sanções contrárias.

Futebol x Vida Real

Gritos como o da torcida do Fluminense trazem à tona um revanchismo calcado no ódio, algo que é inerente às relações de fanatismo e que não precisaria fazer parte do esporte, acredita Maurício Murad, autor do livro A violência no futebol (Editora Benvirá, 2017 ).

Para o sociólogo, é o fanatismo, em detrimento da esportividade, o que faz com que a rivalidade se torne uma relação de inimizade.

"E contra um inimigo, não há limites na hora de 'se vingar' As relações entre as torcidas saem da esportividade e entram em um campo mais complexo", diz.

"O futebol é um reflexo aumentado da realidade social. De um jeito ou de outro, sempre haverá algo nas sociedades que levará torcedores fanáticos a projetar no esporte outras questões".

No momento, a faísca desse processo é a intensa polarização política. "Mas daqui a alguns anos, será outro motivo, como foi no passado", afirma.

Ele já defendeu a tese de que a violência exarcebada no cenário futebolístico decorre do clima geral de impunidade que paira sobre crimes ligados ao esporte.

"A multidão tocada pela paixão é muito propícia a exageros, transgressões e ultrapassagem dos limites razoáveis da vida, da convivência humana", disse em entrevista ao site Goal.

"São minorias estúpidas, com um grau de irracionalidade, violência e ódio muito intensos e que pensam que o universo do futebol permite tudo; que em um estádio ou no meio da multidão você pode tudo que você não pode na, digamos, vida real", completou.

E o que faz com que esse sistema funcione como um moto perpétuo é o fato de o futebol ser uma espécie de mundo à parte, onde impunidade e relativização dão aos fanáticos a impressão de que "tudo pode".

No caso do incêndio do Flamengo há ainda um outro ponto, diz ele. A mistura do sucesso com sobras do time nos campos, somado à não solução da questão das famílias dos garotos, gera uma revolta nos demais torcedores.

"Logicamente que o canto de 'time assassino' é péssimo. Mas, dentro dessa falta de limites do 'mundo à parte', é um modo de atingir o inimigo onde ele é vulnerável. O torcedor entende que, desse modo, está ajudando seu time a vencer em campo", afirma. "Ele compensa, na arquibancada, a diferença técnica do jogo com a arma que tem", diz.

Veja abaixo alguns exemplos de cantos absurdos já entoados em estádios nacionais que exemplificam, essa ausência de limites:

Violência geral

"Viemos do Morumba,
E muitas vezes tivemos que parar, parar, parar
Parar pra dar porrada
Dar porrada em Gavião (2x)
Gambá, vou te matar"

(Da uniformizada Mancha Verde, do Palmeiras , para a torcida do Corinthians )

"Plunct, plact, zum: E a Independente matou mais um"

(Da uniformizada do São Paulo , em referência às mortes do corintiano Rodrigo de Gásperi e do palmeirense Sergio Vivaldini, em confrontos com são-paulinos, em 1992)

"É ritmo de festa que balança o coração:
A gente mata Independente e enterra Gavião
Hey, Hey, Hey: Ritmo É ritmo de festa""

(Da Mancha Verde)

Sexismo e objetificação da mulher

"O X vagabunda, eu vou comer sua b.
E sua b.
Eêêêêê ê, vou chupar suas tetas"

(Música cantada pela torcida do Palmeiras nos anos 1990, tendo como alvo a então esposa de Ronaldo, goleiro do Corinthians à época)

"Ô, Júlio César, como é que é?
O Ronaldinho já comeu sua mulher"

(Canção disseminada nos anos 1990 e 2000, tendo como alvo como o goleiro Júlio César, ex-Flamengo, casado com a modelo Susana Werner, ex-namorada do Fenômeno)

Desrespeito com caso de mortes e tragédias

“Ih, tu 'comeu' o travesti
HIV tu vai pegar
E a família toda chora
Não tem remédio pra curar!
Eh, Tu vai morrer, tu vai morrer”

(Canto da torcida do Flamengo para Ronaldo Fenômeno, em 2009, em referência à morte da travesti Andréia Albertini, que se envolveu em polêmica com o jogador em um motel no Rio, em 2008. Andreia morreu em decorrência de AIDS, em 2009)

"Ronaldo, Viúvo!"

(Da torcida do Grêmio , sobre o mesmo assunto)

Foi numa festa na Inajar de Souza
Que a sua fama porco acabou
Os porco imundo correu rapidinho
Tanta barrada que vocês tomou
Meu coração pulou de alegria
Quando mandei o Lezo pro caixão
O porco imundo morreu em um segundo
Eu vi seu sangue escorrer pelo chão

( Da organziada Gaviões da Fiel. Em março de 2012, na Zona Norte de São Paulo, os palmeirenses André Alves Lezo e Guilherme Vinícius Jovanelli Moreira foram mortos com golpes de barras de ferro e pedaços de pau após confronto com alvinegros)

“Ó vascaíno, por que estás tão triste?
Mas o que foi que aconteceu?
Foi o Dener que bateu na árvore, quebrou o pescoço e depois morreu”

(Torcedores do Flamengo cantaram essa música para cruzmaltinos me 1994, em referência à trágica morte do meio do Vasco da Gama , no mesmo ano)

“Não é mole não, cê (sic) vai cair igual o Fernandão”

(Grito dos alvinegros durante Corinthians x Internacional , de 2016 em referência ao acidente de helicóptero que vitimara o atacante Fernandão, ídolo colorado, dois anos antes)

“Ão ão ão, abastece o avião”

(Da torcida organizada do Criciúma, durante o jogo com a Chapecoense , pelo Campeonato Catarinense de 2017)

"Fora Globo, fora do Brasil: E vai queimar criança na puta que pariu"

(Música cantada por vascaínos na final da Copa João Havelange de 2000, em 2001, fazendo referência a incêndio no Projac, no estúdio onde era gravado o programa Xuxa Park )

"E a Independente, mais uma vez vai predominar
(e a porcada) A porcada como sempre já correu e chorou muito
Chorou muito o ano inteiro depois que o Sérgio
Um tal de Sérgio morreu
Assim a história segue em frente
Mais um capítulo da história"

(Trecho da música O Rei Mandou, da torcida Independente, do São Paulo. Pedro Mauá, membro da torcida, foi acusado da morte do palmeirense Sérgio Vivaldini, em crime ocorrido em setembro de 1992, com uma facada no peito)