Poucos dias antes da pandemia do novo coronavírus colocar os brasileiros em quarentena, Rogério Hetmanek, 71, viajou de Curitiba para o Rio de Janeiro para lançar a “Origem da Corrupção”, quarto livro escrito por ele desde 2015. Aqueles que o encontraram talvez não soubessem, mas a inspiração do ex-jogador tem relação com a Copa do Mundo de 1970.
Há 50 anos, o então promissor ponta-direita do Botafogo estava no time titular da seleção brasileira que viajou ao México, formando o tridente ofensivo com Pelé e Tostão, mas uma contusão não só o tirou dos gramados como mudou totalmente a sua trajetória de vida.
O ex-camisa 7 dedicou-se a uma busca impossível para muitos: sanar as próprias dúvidas existenciais. O estímulo não veio apenas da frustração em não jogar a Copa em um momento que estava no auge, mas também pela triste perda do filho recém-nascido, em 1971, e pelo encerramento precoce da carreira, em 1972.
Formado em Direito, mestre em Filosofia e com longa trajetória na Igreja Messiânica, Rogério celebra neste ano as bodas de ouro do título de 1970 . Embora não tenha jogado, ele “atuou” como observador técnico ao lado de Carlos Alberto Parreira, então com 27 anos.
A pedido da ESPN Brasil , Rogério narrou a própria experiência a partir do início de 1970 até o recente lançamento do livro, compartilhando também verdadeiras relíquias daquele Mundial, como algumas páginas de um dos relatórios que fez para Zagallo. Confira:
ESPN – Como o senhor começou o ano de 1970?
ROGÉRIO:
Começou com grande expectativa de ser convocado para a Copa do Mundo. E essa expectativa, quase certeza, se fundamentava numa unanimidade, segundo a "Revista Futebol" de 1969. Somente o meu nome e o do Marco Antônio figuravam nas listas do time ideal dos mais expressivos nomes da crônica esportiva brasileira. Aos 21 anos, meu desejo era dar sequência à minha ascensão técnica no México, onde desde a primeira excursão pelo Botafogo, em 1967, fui considerado como revelação e destaque nas competições, repetidas em 1968 e 1969.
A minha ascensão e efetivação no time principal do Botafogo, como titular da ponta-direita, ocorreu nessa primeira excursão, em 1967. Um ano antes, fui campeão juvenil sob o comando do Zagallo. Nessa época, eu não jogava na ponta; jogava na frente, e me destacava fazendo gols.
"Somente o meu nome e o do Marco Antônio figuravam nas listas do time ideal"
No final de 1966, o time principal disputou o último jogo do Campeonato Carioca contra o Bonsucesso, em General Severiano. Muitos titulares estavam machucados e sem motivação para simplesmente cumprir a tabela. Foi aí que surgiu uma vaga na ponta-direita. O Neca, que foi um grande treinador da escolinha de formação do Botafogo, sugeriu que eu pudesse preencher a vaga. Nesse jogo eu conquistei a torcida e, em seguida, a vaga de titular do time na excursão que o Botafogo fazia anualmente ao exterior, com o México sempre incluindo no roteiro.
Já meu plano pessoal sempre foi o da maioria dos jovens que vem da baixa classe social: oferecer à família melhores condições de vida e estudar para ter um futuro melhor.
Rogério (centro) com a faixa de campeão juvenil treinado por Zagallo (crédito: Arquivo Botafogo.com.br)
ESPN – Qual foi a sua participação na seleção até o Mundial?
ROGÉRIO:
Foi me submeter, na maior parte do tempo, a um intensivo tratamento médico e fisioterápico sem forçar a musculatura inferior da coxa direita. As aparentes melhoras pareciam caminhar para a cura, mas quando o músculo era submetido a um maior esforço sobrevinha a fisgada muscular que me impedia de prosseguir. Eu acreditava que o meu caso era simples e tinha solução.
Por sua vez, os médicos e os preparadores físicos também acreditavam não ser um problema grave sem solução. Só que a solução não aconteceu durante o longo período de preparação para a Copa. E o problema se estendeu, após a Copa, até o segundo semestre de 1971.
"Saldanha dizia que me esperaria até a Copa, pois ele contava comigo. Quando ele saiu e o Zagallo entrou, recebi o mesmo apoio. Acredito que, se eu não tivesse a unanimidade da mídia e o apoio do Zagallo, eu teria sido cortado aqui no Brasil."
João Saldanha dizia que me esperaria até a Copa, pois ele contava comigo. Quando ele saiu e o Zagallo entrou, recebi o mesmo apoio. Acredito que, se eu não tivesse a unanimidade da mídia e o apoio do Zagallo, eu teria sido cortado aqui no Brasil, após o último jogo de preparação contra a Áustria, no Maracanã. Pois saí de campo sentindo a persistente fragilidade muscular.
No México, eu não via nenhum progresso na minha recuperação e sofria à medida que o tempo ia passando, e eu não estava participando da preparação física cada vez mais intensa e ideal.
O tratamento consistia na aplicação de quimioterapia e fisioterapia, que aliviavam as dores no local do estiramento muscular, mas não promoviam a sua cura definitiva nem fortalecia a musculatura para suportar a carga exigida pelos exercícios. O fato é que essa contusão se tornou crônica.
ESPN – Por ser crônica, a contusão continuou a incomodar depois da Copa?
ROGÉRIO:
Houve uma relativa melhora. Ainda convivendo com o mesmo problema de fragilidade muscular na coxa direita, fui jogar no
Santos
por um período de empréstimo envolvendo uma troca com Carlos Alberto, no primeiro semestre de 1971. Mesmo ausente de alguns jogos, fiz cinco gols em partidas decisivas. No semestre seguinte, o Botafogo negociou o meu passe com o
Flamengo
.
Sob a avaliação física do saudoso e competente professor José Roberto Francalacci, responsável pela excelente preparação muscular do Zico, foi que eu fiquei sabendo que o meu problema muscular era muito simples de ser resolvido: bastava alongar e fortalecer toda a musculatura da coxa; e não simplesmente parte dela como o tratamento que recebi durante todo o tempo.
Sua orientação foi que eu subisse num banquinho e com dois pesos nas mãos, alongasse a musculatura da perna afetada, pois havia uma pequena diferença de medida entre as duas pernas. Resolvido o problema muscular, fui acometido de uma grave leucopenia (redução dos leucócitos, glóbulos brancos) provocada por tratamentos à base de quimioterapias e radioterapias.
"Eu ouvia comentários como 'Ele é jogador de vidro'"
Este diagnóstico me mostrou o por quê de eu não conseguir voltar a minha forma física anterior, sempre experimentando um cansaço anormal nos treinamentos e nos jogos. Há muito tempo eu vinha jogando com baixa imunidade e pouca resistência orgânica.
Comentários do tipo: ‘o problema dele é psicológico’; ‘é um jogador de vidro’ etc., eram feitos até por alguns que tentaram mas não conseguiram resolver o meu problema. Em nenhum momento eu responsabilizei os que tiveram o meu problema nas mãos e não conseguiram dar a devida solução. Penso que eles fizeram o melhor que podiam dentro de suas possibilidades e competências profissionais.
O Botafogo do final dos anos 60 com Rogério (esq. p/ dir.), Gersón, Roberto, Jairzinho e Caju (crédito: Arquivo Botafogo.com.br)
ESPN – Relembra como foi que recebeu a notícia que estava fora da Copa?
ROGÉRIO:
À medida que se aproximava o dia de definição dos 22 jogadores, eu sabia que não teria condições de jogar. E revelei para alguns companheiros a minha decisão de pedir desligamento, a fim de permitir que outro jogador viesse para fazer o que eu desejava, mas estava impedido pela contusão. Alguns companheiros, solidários com meu empenho pela recuperação, sugeriram que eu não antecipasse a minha decisão. Mas eu não achava justo ficar fazendo parte do grupo, sem dar a contribuição para a qual fui convocado.
"A conversa com o Zagallo foi muito franca. Ao admitir que ainda estava sentindo a contusão, ele não teve alternativa. Após a comunicação do corte, eu me preparei para voltar ao Brasil, mas no dia seguinte recebi a comunicação que não voltaria."
A conversa com o Zagallo foi muito franca. Ao admitir que ainda estava sentindo a contusão, ele não teve alternativa. Após a comunicação do corte, eu me preparei para voltar ao Brasil, mas no dia seguinte recebi a comunicação que não voltaria.
Soube que o capitão Carlos Alberto liderou um movimento para que eu ficasse no grupo, pois poderia ser útil de alguma forma. Foi aí que recebi fui informado que iria atuar na observação dos adversários do Brasil ao lado do Parreira.
ESPN – Quem merecia ser convocado para a ponta-direita?
ROGÉRIO:
Muitos se destacavam: Natal, Palhinha, Paulo Borges, Manoel Maria, Valdomiro, entre outros. Dentre eles, quem merecia por estar em excelente forma era o Manoel Maria.
ESPN – Como foi trabalhar com o Parreira?
ROGÉRIO:
Foi uma experiência gratificante. O Parreira é uma pessoa estudiosa e de bom caráter. Partiu dele, como professor de Educação Física, o esboço do que deveria fazer parte da nossa observação, conforme as prévias orientações do Zagallo.
Era a escalação; os sistemas adotados; a tática de jogo empregada; a movimentação dos jogadores no esquema empregado; o tipo de marcação adotada; principais manobras ofensivas; a dinâmica do sistema defensivo; o ritmo de jogo e atuações individuais.
Em cima desses itens trocávamos ideias, munidos de binóculos e uma máquina fotográfica, que buscavam captar as posições dos jogadores em campo, as formações de ataque e defesa. Enfim, imagens que pudessem ilustrar o que era encaminhado para o Zagallo.
Primeira página do relatório sobre o Peru, adversário do Brasil nas quartas de final (crédito: Arquivo Pessoal/Rogério Hetmanek)
ESPN – Dentro dessa experiência, teve alguma história que lhe marcou?
ROGÉRIO:
Merece destaque a emoção que envolveu a mim e ao Parreira, quando estávamos observando e fazendo anotações no jogo da semifinal, entre Alemanha x Itália, no estádio Jalisco, na Cidade do México. Na mesma hora, mas em Guadalajara, o Brasil jogava contra o Uruguai. Em determinado momento, os alto-falantes comunicaram o gol dos uruguaios. Houve um silêncio total entre os torcedores. Todos pareciam chocados. Nesse momento levantamos a hipótese de que nossas observações de nada serviriam se o Brasil perdesse.
"Os mexicanos gritavam 'Brasil, Brasil, Brasil'; não havia como conter as lágrimas"
Essa hipótese enfraqueceu quando o Clodoaldo, ao final do primeiro tempo, empatou. Essa notícia projetada pelos alto-falantes provocou uma comoção geral no Jalisco. Todo povo mexicano presente gritava em alto e bom som ‘Brasil, Brasil, Brasil’, repetidas vezes, de modo ensurdecedor! Não havia como conter as lágrimas de emoção ao constatar que o povo mexicano estava torcendo para o Brasil ser campeão. Neste momento trocamos um forte abraço de comemoração e voltamos otimistas para o segundo tempo, confiantes de que as nossas observações não seriam em vão. Previsão que foi confirmada com a vitória do Brasil, no segundo tempo, abrindo o caminho para a grande final contra a Itália.
Emoção renovada aconteceu na vitória do Brasil na final contra a Itália. Muitas das nossas observações foram consideradas pelo Zagallo e por vários jogadores como úteis para o Brasil impor o seu esquema tático sobre o esquema tático italiano.
ESPN – O senhor chegou a imaginar como teria sido jogar aquele Mundial?
ROGÉRIO:
Com 21 anos, submetido à forte e intensa preparação física empregada durante três meses de preparação antes da Copa, eu não tinha dúvida de que estaria em condições de ter uma grande performance. A frustração só não foi maior porque eu pude contribuir de alguma forma.
Anotações de Rogério sobre a movimentação da seleção peruana em 1970 (crédito: Arquivo Pessoal/Rogério Hetmanek)
ESPN – Qual foi a diferença que fez aquele time alcançar o sucesso? Para você, aquele é a maior esquadrão da história?
ROGÉRIO:
O que fez a grande diferença, merecendo o reconhecimento internacional de melhor equipe de futebol, até então, foi o planejamento logístico da comissão técnica.
Todos os integrantes da seleção receberam as melhores condições para fazer um bom trabalho de equipe, com grande antecedência. E uma parte fundamental dessa diferença foi o longo tempo de preparação no Brasil e, particularmente, no México.
Havia uma preocupação natural de todas as seleções que vinham do nível do mar, para jogar no México, numa altitude de 2.240m. A seleção fez seus últimos treinamentos na cidade de Irapuato, numa altitude aproximada de 1.730m.
Enquanto as demais seleções sentiam o problema de altitude superior ao nível do mar, o Brasil se preparou para superá-la. Essa foi a principal razão de a seleção brasileira apresentar um condicionamento físico superior as demais seleções. Todos os jogadores estavam no auge da preparação física e, consequentemente, em condições de colocar em evidência as suas reconhecidas qualidades técnicas, sem apresentar o cansaço habitual. Não foi por acaso que o Brito foi eleito como o jogador de melhor preparo físico daquela Copa.
No quesito técnico, o nível de todos os jogadores era muito bom, individualmente. Por sua vez, Zagallo conseguiu implantar uma liderança que permitiu que os mais experientes, como Carlos Alberto, Gérson, Pelé, entre outros, pudessem ser ouvidos nas reivindicações que fossem úteis para o melhor desempenho do time, sem estrelismos.
No geral, o que percebi e me serviu de aprendizado para a vida foi a importância da excelência de um trabalho de equipe, onde todos dão o melhor de si para o sucesso coletivo.
Não tenho como avaliar se foi a melhor seleção da história. Só sei que foi a melhor da Copa do Mundo de 1970, sem dúvida.
"Um pôster do 'Jornal do Brasil' na recepção da seleção pelo presidente Médici, em Brasília, mostra que por trás de um time vitorioso há uma equipe eficiente"
Pôster de Rogério, a partir de uma foto do 'Jornal do Brasil' com todos os campeões
(crédito: Arquivo Pessoal/Rogério Hetmanek)
ESPN – 50 anos depois: algum arrependimento?
ROGÉRIO:
Tive alguns arrependimentos ligados a minha imaturidade e ingenuidade no trato das coisas. Mas superei todos por reconhecer que eles foram importantes para eu deixar se ser tão imaturo e ingênuo.
Realmente eu acreditava que teria uma nova chance. Mas, na prática eu sentia que não conseguia voltar a minha antiga forma física. Meu organismo não absorvia os treinamentos como antes; eu me sentia sempre muito cansado após os treinos e os jogos.
ESPN – O que aconteceu com a carreira do Rogério depois da Copa de 1970?
ROGÉRIO:
Depois da Copa de 1970, fui convocado para a Mini Copa de 1972, mas não tive nenhuma chance de jogar. O Jairzinho estava em plena forma. Todavia, eu sentia grande dificuldade de readquirir a forma antiga e ideal. Como já disse, o resultado dos exames identificou que eu estava com leucopenia, causa determinante da minha baixa imunidade, baixa resistência física e permanente cansaço.
Após uma consulta com um renomado hematologista, fui medicado com o prognóstico de que tudo voltaria ao normal. Nas primeiras semanas houve um aumento dos leucócitos. Porém, nas semanas seguintes, apesar de estar sob as medicações prescritas, um novo exame revelou que a taxa dos leucócitos havia baixado ao nível anterior. E que diante do resultado do novo exame, eu deveria fazer uma pulsão na medula, a fim de saber exatamente que medicação mais forte eu deveria tomar, durante um tempo indeterminado.
Não concordei com a hipótese de que deveria fazer uso de novas e fortes medicações para resolver meus problemas físicos e mentais.
Resolvi fazer uso de alimentos da agricultura natural, com elevada energia vital sem o uso de agrotóxicos, e a receber o Johrei, uma prática da Igreja Messiânica que atua no organismo do corpo humano como um eficaz elemento de purificação. Em poucos meses superei a leucopenia, com essas duas importantes práticas.
Foi a partir daí que resolvi aprofundar no conhecimento da Filosofia de Mokiti Okada, e obter as respostas que há muito tempo eu buscava para os meus questionamentos existenciais.
Aos 71 anos, Rogério acaba de publicar o livro "A Origem da Corrupção" (crédito: Arquivo Pessoal/Rogério Hetmanek)
ESPN – Não houve nenhum convite para você ingressar na carreira de treinador?
ROGÉRIO:
Eu encerrei minha carreira no Botafogo. Nessa época o presidente Charles Borer me sinalizou com a hipótese de eu ser coordenador técnico das equipes inferiores, mas eu não me interessei. Seria o início de uma carreira como treinador, mas eu queria aprofundar na teoria e prática da Filosofia Messiânica. Por isso, resolvi ingressar na vida sacerdotal, onde eu poderia satisfazer as exigências das minhas buscas existenciais.
ESPN – Gostaria de falar sobre o impacto na sua vida que aquele corte teve e por que dedicou-se à Religião, a se formar em Direito e se tornar mestre em Filosofia?
ROGÈRIO:
O corte da seleção representou um estímulo ainda maior na minha necessidade de obter respostas para as dúvidas existenciais que eu já vinha experimentando. Este estímulo aumentou em 1971 com a morte do meu primeiro filho, após uma semana de seu nascimento, provocada por uma septicemia (infecção generalizada). De certo modo, vários acontecimentos dolorosos contribuíram para me conduzir a buscar respostas nas áreas da Religião, do Direito e da Filosofia.
Após pendurar as chuteiras, atuei como ministro da Igreja Messiânica, presidente da Fundação Mokiti Okada e diretor geral da Faculdade Messiânica. Ao me aposentar, em 2015, assumi a condição de escritor e palestrante, já tendo quatro livros publicados: O Patriarca, O Sócrates Real, O Senhor do Tempo e Origem da Corrupção (o mais recente). Todos explorando o tema Verdade.