Pilares invisíveis: conheça a história de dois Zés, funcionários que vivem há meio século no Flamengo

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Longe dos holofotes e dos salários milionários que cercam o futebol profissional, há trabalhadores que constroem a rotina de um clube. São os pilares invisíveis. Não aparecem nas entrevistas coletivas ou nas transmissões de TV, mas são a história viva da instituição. No Flamengo , dois desses profissionais chamam a atenção pela longevidade nos seus cargos.

José Cardoso Santana, o Cacá, é funcionário do Remo há 50 anos. José Pinheiro dos Santos está no Flamengo há quase 47 anos e é o chefe de segurança do clube. Neste 1º de maio, o ge compartilha as histórias dos Josés que dedicaram suas vidas ao Rubro-Negro. Conheça:

Cacá Santana e José Pinheiro, funcionários do Flamengo há meio século — Foto: Infoesporte

Dos 69 anos de vida, Cacá Santana dedicou 50 ao Flamengo. Aliás, cinquenta anos e sete dias (desde 24 de abril de 1975) - porque, para o funcionário do Remo, cada segundo vivido no clube importa.

— A gente está fazendo essa entrevista com 50 anos e 5 dias. Eles foram todos diferentes. Inclusive hoje, o quinto dia depois dos 50, está sendo diferente. Especial como todos os outros. Todo dia eu chego aqui e começo a trabalhar como se fosse o primeiro.

Cacá conduziu a reportagem do ge em uma volta de barco pela Lagoa Rodrigo de Freitas, onde fica localizada a sede náutica do clube. Ele tirou a habilitação para embarcações não só para trabalhar no Flamengo, mas também para atuar nos Jogos Pan-Americanos de 2007 e nas Olimpíadas de 2016, ambos eventos realizados no Rio de Janeiro.

— Eu fui o piloto número um das Olimpíadas. Teve uma prova na Lagoa com o comandante da Marinha. Eles fizeram um teste com todos os pilotos, e eu me destaquei. Conheço toda a Lagoa, seus cantos e profundidades. Aqui, onde a gente está, tem 15 metros de profundidade. No fim, o comandante anunciou que eu era o número um. Não podia errar, tinha que dar tudo certo. E deu — contou ele cheio de orgulho.

Cacá Santana é funcionário do Remo do Flamengo há 50 anos — Foto: Emanuelle Ribeiro

Do "nada" ao maior clube do Brasil

O orgulho é compreensível. José Cardoso Santana tinha 19 anos quando cruzou o país sem certezas sobre o futuro. Saiu de um povoado em Alagoa Grande, no interior da Paraíba, em busca de trabalho, como tantos nordestinos que viajaram para o Rio de Janeiro na década de 1970. Sem emprego, hospedado na casa da irmã e já tomado pela angústia, topou com os remadores do Flamengo num encontro que pareceu ser obra do destino. Mas foi resultado da perseverança:

"Eu nasci no meio do nada, sem nada, sem perspectiva nenhuma de nada, no meio da escassez. Com 19 anos, eu olhei à minha volta e não vi nada. Não tinha estudado, não tinha comida, não tinha água. Já seria um milagre minha mãe ter me tido ali, sem médico, sem acompanhamento. Meu primeiro banho não foi com água, foi com uma lama.

Tinha um dinheirinho e comprei a passagem para o Rio sem contar para ninguém. Depois de duas semanas no Rio, comecei a ficar um pouco agoniado. Peguei um ônibus aqui na rua para ir até o final da linha e voltar. Desci perto da Lagoa e vim caminhando. Não tinha essa sede do clube ainda. Eu não sabia de clube, não torcia pra nada, não entendia nada de esporte. Era um zero ao quadrado. Vi os atletas, me aproximei um pouco e fiquei parado, assustado, com medo de me tirarem dali.

O Buck, que era o técnico na época, me viu e pediu para um atleta ir falar comigo. Ele me perguntou se eu estava esperando alguém ou queria falar com alguém. Eu disse que não. Perguntou o que eu queria então. Eu disse: quero trabalhar. O atleta voltou para a lancha e, em seguida, o Buck veio até mim e me fez a mesma pergunta. Eu disse de novo que queria trabalhar. Ele ficou impressionado, olhou para o Cristo Redentor, abriu os braços e disse: 'Cristo, pela primeira vez alguém quer trabalhar'. Ele disse que não tinha vaga, mas me daria uma oportunidade".

Cacá Santana é funcionário do Remo do Flamengo há 50 anos — Foto: Emanuelle Ribeiro

No dia 24 de abril de 1975, o Flamengo abriu as portas para Cacá, que retribuiu. Desde então, o funcionário acorda todos os dias às 4h30 e não teve uma ausência sequer registrada no seu histórico.

— A primeira briga do dia é com o despertador, às vezes o corpo quer dormir mais um pouco, mas já risquei as palavras "cansaço" e "parar" do meu dicionário. Até hoje, nenhum médico pegou a caneta para assinar um atestado para mim.

Cacá começou como barqueiro. Hoje é operador geral. Já fez de tudo no clube: preparou embarcações, organizou eventos, orientou atletas e até raia para competições ele montou na Lagoa, tendo que mergulhar a 15 metros de profundidade para desengatar uma corda, mesmo sem saber nadar bem: “Aprendi ali, na força”. Além de todas as funções indicadas no contrato, ele é uma espécie de pai para os atletas que passam todos os dias pelos esportes náuticos do Flamengo.

— Perder não está no meu dicionário, só vencer. O hino do clube diz "vencer, vencer, vencer. Flamengo até morrer". Eu prego para os atletas isso, e eles falam para mim antes de competirem: "Eu vou vencer e vai ser para homenagear você". Isso é uma alegria.

"Beijo do Cacá"

O comprometimento no Flamengo levou o paraibano a um dos programas de entrevistas mais icônicos da televisão brasileira. Em julho de 2014, Cacá foi entrevistado por Jô Soares (veja acima) .

— Foi a primeira vez que andei de avião. Eu tinha uma ficha sendo avaliada pelo Guinness ( funcionário de um clube de futebol com mais tempo sem faltas, 40 anos na época ), e a produção do programa do Jô teve acesso a esse registro e entrou em contato com o clube. Me ligaram para eu ir. Perguntaram se eu queria hotel, eu disse que não, era ir e voltar no mesmo dia porque tinha que trabalhar.

— Foi uma emoção enorme. Depois, andando na rua, as pessoas me reconheciam: “Você foi no Jô!”. Até hoje me pedem o link da entrevista. Ninguém sabia o que era Alagoa Grande, onde nasci. Hoje sou mais conhecido que o prefeito de lá. Mas não digo isso para me gabar. Apenas consegui um feito que ninguém tinha conseguido.

Cacá Santana recebeu homenagem do Flamengo pelos 50 anos de trabalho — Foto: Emanuelle Ribeiro

Convívio com Zico

Em 50 anos, muita coisa mudou no Flamengo. O time de futebol profissional, por exemplo, treina hoje no Ninho do Urubu, centro de treinamentos na zona oeste do Rio. Mas quando Cacá chegou ao clube, as atividades eram na Gávea, o que proporcionou a ele conviver com grandes estrelas, entre elas Zico, o maior ídolo da história rubro-negra.

— Convivi com o Zico em vários momentos. Quando os jogadores terminavam o treino, ficavam debaixo de um pé de manga que tem lá na entrada do clube fazendo churrasco. Eu parava lá e ficava um pouco com eles. Um dia teve o aniversário do Fagner cantor, ele estava aqui, e eu sou muito fã. Eu cantei para ele, ele cantou junto. Ele me deu um LP autografado. Olha só quanta coisa o Flamengo me deu.

Cacá Santana recebeu homenagem do Flamengo pelos 50 anos de trabalho — Foto: Emanuelle Ribeiro

Família náutica e estudiosa

Das coisas que o Flamengo deu a Cacá, talvez a mais valiosa seja a porta que abriu para as filhas do funcionário. As três meninas foram atletas do clube, inspiradas no trabalho do pai. Seguiram depois outros caminhos e tornaram-se também inspiração para ele.

— Tenho três filhas: Tayana, a mais velha; Larissa, a do meio; e Laura, a caçula. As três foram campeãs. A Larissa continuou, formou-se em Educação Física, é professora e técnica de Remo aqui na Lagoa. Tem até carteira de Arrais (habilitação para conduzir embarcações). Ela me copiou. As outras também foram campeãs, mas não seguiram carreira. A Laura foi campeã de canoagem, ficou em terceiro lugar no Brasileiro, mas depois parou.

— Quando vi as três se formando, voltei a estudar. Terminei o fundamental, o ensino médio e hoje estou no terceiro período de Psicologia. Senti que precisava me entender. Saber quem sou, qual o sentido da minha existência. Para poder compreender, acolher e amar todos ao meu redor.

Amar e ser amado. Foi o que o ge viu Seu Cardoso fazer durante o tempo que acompanhou a rotina do funcionário mais antigo do Flamengo. Um recorte pequeno, mas representativo do comportamento dele nos últimos 50 anos e sete dias.

Há 47 anos, em 1978, Pinheiro assumiu o cargo de segurança do Flamengo. Era um dos únicos funcionários no setor. Hoje, como chefe do departamento, coordena mais de 70 colaboradores em todas as áreas do clube: das competições de natação aos jogos de futebol no Rio de Janeiro e fora de casa. É um dos poucos homens que viram a transformação acontecer de perto.

— Muita gente viu a banda passar. Eu não. Eu vim no meio da banda.

— A gente fazia o que dava para fazer. Era segurança, mordomo, tudo. Pegava roupa, levava para lavar, levava carro no mecânico, buscava em casa. Era uma caixa de isopor com papel laminado e 80 sanduíches para os jogadores. Hoje é nutricionista, almoço, jantar, profissional. Antes, era artesanal.

Ele trabalhava fazendo o policiamento do Saara, no centro do Rio, onde conheceu George Helal (ex-presidente do Flamengo) e o advogado Michel Assef. Depois de alguns serviços particulares para Helal, Pinheiro foi convidado para trabalhar no clube.

Pinheiro começou como segurança do Flamengo em 1978 — Foto: Emanuelle Ribeiro

Os quadros pendurados na parede exibem prêmios e mensagens de reconhecimento ao quase meio século de serviços prestados ao Flamengo. Fotos antigas com Zico, Bebeto e Romário misturam-se a uma imagem recente de Pinheiro no gramado do novo Maracanã - em comum, só o bigode, marca registrada e que resistiu ao passar dos anos. Na mesa, mais troféus, placas e medalhas, presentes de torcidas organizadas, com quem o segurança criou relação de respeito. No olhar, a emoção de quem foi convidado a participar da festa de encerramento do Campeonato Carioca de 2025.

— O Flamengo me trouxe. Sou hoje um cara superconhecido. Se fosse de outro clube, ninguém me conheceria. Jogador quer tirar foto comigo. O Flamengo mudou minha vida. Eu tenho cinco filhos, 14 netos e quatro bisnetos. Só um filho que eu tenho, de criação, que já chegou para mim botafoguense. Não conseguimos mudar. Todos os outros são Flamengo, até o que vai nascer. Já assinou contrato.

Pinheiro trabalha no Flamengo há 47 anos — Foto: Arquivo pessoal

Época de "gatos" magros

Pinheiro começou em um tempo em que os jornalistas frequentavam o vestiário do Maracanã e andavam soltos pela Gávea. Os jogadores reuniam as famílias para resenhas e usavam o tempo na concentração, em uma casa em São Conrado, para jogos interativos.

— Antigamente, nem existiam essas máquinas modernas para tratar lesão. O massagista ia na casa do jogador e colocava toalha quente para ele se recuperar para jogar no jogo seguinte.

Pinheiro com Zico, maior ídolo do Flamengo — Foto: Arquivo pessoal

Hoje, tudo mudou. O acesso à imprensa é restrito. Os atletas se concentram em quartos de hotel e são transportados em ônibus privativos, separadamente dos funcionários. O patamar também é outro.

— Antes, a gente tinha a maior torcida… e a maior dívida. Hoje temos a maior torcida e mais dinheiro que todo mundo. Deus sorriu para a gente.

O sucesso financeiro e esportivo do Flamengo facilita o trabalho dos seguranças, que por muito tempo tiveram que conter a torcida em momentos de crise do time dentro de campo.

— Eles me respeitam muito. Eu peço, e eles atendem. Não uso arma. Não gosto que batam em ninguém. Onde tem Flamengo tem um amigo. Às vezes dizem que sou patrimônio... tombado, só se for (risos).

Pinheiro exibe homenagens de torcidas do Flamengo em sua sala — Foto: Emanuelle Ribeiro

O bom humor sempre esteve presente na vida de Seu Pinheiro, hoje com 78 anos. Dos causos que contou à reportagem, muitos foram sobre a convivência com sua equipe, e as pegadinhas que os seguranças faziam entre si. Nos tempos de vacas magras, em que os funcionários ficavam meses sem receber salários, as brincadeiras, mesmo que duvidosas, eram válvulas de escape.

— Um dia, eles pegaram o gato de uma funcionária aqui, esconderam e ligaram para ela pedindo R$ 100 de resgate. Fizeram até imitação do gato gritando. O episódio virou manchete no Jornal O Dia: “Funcionários do Flamengo, sem dinheiro, desesperados, sequestram gato (risos)”.

Pinheiro (com o rosto apoiado na mão) com jogadores da geração do Flamengo campeã da Copinha de 1990 — Foto: Arquivo pessoal

Em uma das fotos exibidas com orgulho, Pinheiro está sentado à mesa perto de Djalminha e Marcelinho Carioca, nomes do time campeão da Copa São Paulo de Futebol Júnior de 1990. O homem que guardou as gerações de Zico e Gabigol faz questão de estar presente em todos os cantos.

— Natação, basquete, ginástica, futebol... Eu estou em praticamente todos os eventos. Não gosto de ouvir sobre o problema, gosto de ver o problema, porque aí é mais fácil de eu saber como resolver.

Pinheiro com Bebeto na volta do jogador ao Flamengo — Foto: Arquivo pessoal

José Pinheiro também sabe a hora de falar sério, seja para chamar atenção de algum colaborador ou até mesmo para puxar a orelha de jogadores, principalmente os criados no Flamengo, com quem ele convive desde as categorias de base e conhece até as famílias.

— Já dei muito conselho. Os jogadores de antigamente ainda vêm muito aqui e sempre falam comigo. Zico, Júnior, Cantareli, Léo Moura... João Gomes, que foi para a Inglaterra, é um dos mais novos com quem criei amizade. Uma das coisas que eu sempre falo para todos é "ajuda sua mãe, compra uma casa para sua família", porque eu vejo o perrengue que as mães passam trazendo eles para o clube desde pequenininhos. Já vi muita carreira dando errado por causa de bobeira.

— Vejo que o Filipe Luís ajuda a mudar isso. É uma pessoa muito educada com todos, cumprimenta todo mundo, é um exemplo para os jogadores.

Pinheiro correndo com Romário no Flamengo — Foto: Arquivo pessoal

Ele atravessou presidentes, elencos, títulos e situações financeiras. Do sanduíche na caixa de isopor aos banquetes, hoje Pinheiro caminha entre centros de excelência, jogadores internacionais e orçamentos milionários. O tom de voz e o brilho no olho entregam que ele ainda não está pronto para dizer adeus, mas, depois de milhares de fins de semana longe da família para servir ao Flamengo, o descanso será merecido.

— Até os 80 dá para ir. Depois vou aproveitar um pouco, apesar de que minha mulher ainda fala: "Vai para o Flamengo, vai" (risos). Isso aqui (apontando para os quadros na parede e mesa) vai ficar para meus netos. Eles têm orgulho de falar que o avô trabalha no Flamengo.

Pinheiro, diretor de segurança do Flamengo — Foto: Emanuelle Ribeiro

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Fonte: Globo Esporte