"Pai do Fluminense", Roger faz "react" de virada do Flamengo em que ofuscou xará: "De arrepiar"

O hoje multifuncional Roger Guerreiro necessita de muitos minutos de seu dia para realizar todas suas funções. Divide-se entre comentarista de rádio, jogador de times de várzea e da categoria máster e professor na escola de futebol que tem em São Paulo. Em 1º de fevereiro de 2004, porém, precisou de apenas cinco para entrar na história do Fla-Flu.

Em "react" à histórica virada por 4 a 3 do Flamengo sobre o Fluminense há exatos 20 anos, o Roger vitorioso daquela ensolarada tarde de "poeira" se emocionou ao recordar do dia em que colocou o xará mais famoso em segundo plano e começou uma história de carrasco do rival.

- Foi uma apoteose. Até me arrepia, cara, olha (aponta para o braço - veja no vídeo acima). Me lembro muito bem. A torcida toda tirou a camisa e começou a rodar. Cantavam poeira, poeira, poeira, levantou poeira. Foi exatamente isso: a gente deu a volta por cima, sacudiu e levantou poeira.

- Viramos o jogo, e foi um casamento perfeito esse refrão da Ivete com o acontecimento do jogo. E aí eu olhava para aquela arquibancada e falava: "É um sonho que não quero mais acordar". Foi muito sensacional.

O clássico daquele 1º de fevereiro era um simples duelo de terceira rodada do Campeonato Carioca. Os tricolores tinham muito mais motivos para irem ao Maracanã cheios de confiança do que os flamenguistas. O Fluminense montara uma máquina com Romário, Edmundo, Roger e Ramon.

Flamengo e Roger Guerreiro, que à época ainda não havia adotado o sobrenome, puseram uma pulga atrás da orelha dos rubro-negros quatro dias antes. O time de Abel Braga empatara por 1 a 1 com o Friburguense no Maracanã, e o lateral-esquerdo fizera um jogo para esquecer, com direito a muitas vaias.

A discrepância de cenários era tão grande que o Fluminense se permitiu apresentar o último dos reforços do quarteto à torcida: Roger Flores, o xará mais famoso do lateral-esquerdo rubro-negro dentro do futebol brasileiro àquela época. A aparição do ídolo minutos antes do jogo deixou eufórico os tricolores, que gritaram "O lê lê, o lá lá, o Roger vem aí, o bicho vai pegar" e "Recordar é viver, o Roger acabou com você".

Roger foi apresentado à torcida do Fluminense antes do clássico — Foto: Acervo O Globo

O favoritismo tricolor entrou em campo. Depois de o Flamengo começar melhor e abrir 1 a 0, a genialidade de Romário desmontou o rival. Dois gols e uma assistência do Baixinho fizeram os torcedores do Fluminense, que chegavam ao 3x1 aos 19 minutos da etapa final, gritarem "olé".

A sequência é frenética e traumática para os tricolores. O "olé" foi gritado entre os 22 e 23 minutos. Felipe diminuiu, de pé direito, aos 24. Roger empatou aos 25, com uma bela cabeçada, e virou o jogo com uma bomba aos 30: 4 a 3. Nascia ali o grito de "Poeira".

O grito que antes era em homenagem ao outro Roger voltava do lado rubro-negro em tom de provocação: "O lê lê, o lá lá, o Roger vem aí, o bicho vai pegar". Hoje aos 41 anos, o ex-jogador não esconde a importância daquele jogo para o prosseguimento na carreira. Fazia o seu primeiro gol como profissional após uma semana de vaias e um ano anterior em que fora marcado no Corinthians por uma expulsão contra o River Plate, na Libertadores.

Roger Guerreiro voou alto no histórico Fla-Flu de 1º de fevereiro de 2004 — Foto: Acervo O Globo

- Inverteram-se os papeis. Apresentaram o Roger do Fluminense, mas conheceram o Roger do Flamengo . Inesquecível esse jogo. Com certeza está no top-3 da minha vida, se não for o mais importante da minha vida. Claro que tem a estreia no profissional Corinthians, mas a nível de importância, grandeza e acontecimentos, esse Fla-Flu se torna o jogo mais importante da minha vida.

- A música inverteu (risos). A torcida foi para ver o Roger Flores, mas acabou vendo o Roger Guerreiro. Foi um excelente cartão de visitas. Contra o Friburguense só tinham duas mil ou três pessoas, esse jogo com o Fluminense foi o primeiro que fiz com Maracanã cheio e a torcida do Flamengo em peso.

Convidado pelo ge a reagir aos lances daquele Fla-Flu 20 anos depois, Roger admite que teve de segurar as lágrimas, mas foi incapaz de esconder o arrepio na pele. Fazer gols no Fluminense se tornaria uma constante. Vinte e um dias após o 4 a 3, teve novamente o Tricolor pela frente, dessa vez na decisão da Taça Guanabara.

Era o primeiro jogo do quarteto formado por Romário, Edmundo, Roger e Ramon. Nenhum deles balançou as redes. O Roger do Flamengo , sim. Fez o da vitória por 3 a 2, que garantiu a 16ª Taça Guanabara da história rubro-negra. Ele ainda marcaria mais um no Campeonato Brasileiro e deixaria o clube rumo à Europa para defender o Celta-ESP com uma estatística de dar inveja em muito atacante: em 63 jogos, 11 gols marcados, quatro em cima do Fluminense.

- Tenho as matérias de jornal falando em rei do Fla-Flu. Quando o flamenguista me vê fala "esse aí é o pai do Fluminense". Um lateral-esquerdo que não batia pênalti e falta fazer quatro gols numa mesma equipe é um feito inédito. E tudo com bola rolando, de cabeça, pelo chão. Ainda mais em clássico contra um dos maiores rivais que você tem na história. Está marcado e com certeza a música mudou. Se alguém tem que cantar essa música é o torcedor do Flamengo .

Comentarista do programa Sambagol, da Rádio Transcontinental, Roger garante que os colegas hoje em dia só se referem a ele como "pai do Fluminense" e "rei do Fla-Flu".

- Não tem preço. Você ser reconhecido pelo seu trabalho 20 anos depois. Hoje aqui na rádio (Transcontinental) o pessoal fala: "Olha o pai do Fluminense, olha o rei do Fla-Flu". Na época saiu um monte de matéria que eu era o rei do Fla-Flu. Até hoje as pessoas falam isso. Conto para o meu filho, mostro vídeos direto porque, como disse o Bruno Henrique, fazer isso pelo Flamengo é outro patamar. Te deixa em outro patamar.

Roger Guerreiro em Fla-Flu que deu título da Taça Guanabara — Foto: Acervo O Globo

Corintiano de berço, hoje Roger garante que metade de seu coração é rubro-negro. Não só pelo Fla-Flus em que o Flamengo e ele foram o "ai-jesus" (o preferido), mas também por tudo que viveu dentro do clube. A morte do massagista Deni, no início de janeiro, o levou às lágrimas.

Definição da expressão "ai-jesus" de acordo com o dicionário Michaelis — Foto: Dicionário Michaelis

- Rolou (vontade de chorar), mas a gente segura bem. Quando você comentou da reação da torcida e do abraço do Abel, a gente revive sentimentos. Eu tenho uma imagem muito forte do Julio Cesar me levando na torcida (geral) e falando: "Xinguem ele agora, agora vocês têm que aplaudir". Os jogadores me abraçaram, então essas relações humanas do futebol fica para sempre. Tenho uma gratidão eterna a todos do Flamengo .

- Fiquei muito sentido, chorei muito com o falecimento do Denir. Eu brincava que era novo e dizia que não precisava de massagem. Ele falava: "Vem aqui, moleque, porque essa perninha já está me dando muito bicho". Ele dava a mesma moral, não tratava bem somente os jogadores mais velhos. Essas relações afetivas é o que você sente mais falta. Essa gratidão vai desde o roupeiro, das tias da cozinha até o presidente Márcio Braga. Cara, teve reportagem com o Herbert Vianna, e ele beijou meu pé.

O coração dividido o faz escapar de brincadeiras na escola de futebol que mantém em São Paulo. Se uma das duas paixões perde, Roger escolhe a outra.

- Tem um espaço gigante. Até brinco: eu sou Corinthians e Flamengo . Na escolinha, quando as crianças vêm me zoar que o Corinthians perdeu, eu falo: "sou Flamengo " (risos). Quando Flamengo perde, eu falo: "sou Corinthians". Bem sinceramente tem um espaço para os dois em nível até de igualdade. Eu nasci em São Paulo, aprendi a gostar do Corinthians, me tornei profissional no time de coração, e isso não tem preço. Mas com o que eu vivi dentro do Flamengo , que foi o que realmente me projetou para o cenário até mundial, porque eu fui para o Celta de Vigo e depois para a Polônia, o Flamengo tem um espaço gigante na minha vida e no meu coração.

De carreira importante com direito ao primeiro gol da história da Polônia na Eurocopa e passagem pelo Corinthians, Roger será lembrado sempre por aquele 2004 histórico. Essa reportagem lhe dá garantia de que jamais será esquecido.

- Você conseguir fazer história num dos maiores clubes do mundo não tem preço. Olha aí: depois de 20 anos, você está me procurando para fazer essa matéria comigo. É sinal que fiquei marcado na história do clube de alguma maneira.

Roger com o time de master do Flamengo — Foto: Reprodução

Uma palavra para o Fla-Flu de 1º de fevereiro 2004

- Eterno.

- Eterno, inesquecível. Quando eu tiver velhinho, com 90 anos, vou estar contando para todo mundo. Hoje já tem internet e tudo, vou falar: "Tem vídeo, não estou mentindo, não vai me chamar de velho gagá (risos). Eu fiz dois gols no Maracanã marcando o Romário". A gente conta hoje, o pessoal vê as fotos. E você ter jogado ao lado de grandes astro e ídolos que a gente só via pela televisão... Isso aí é o que o dinheiro não paga.

Roger no Fla-Flu em que foi o herói maior — Foto: Reprodução

Virada repentina e rotina no pós-futebol

- Em seis minutos, hoje a gente não faz nada, muito mais fácil jogar futebol. Hoje jogo no futebol amador de São Paulo. Minha vida é uma correria, mas dou graças a Deus e só peço saúde. O jogador de futebol morre duas vezes. Parece clichê, mas é verdade. Ainda mais quando a gente não se preparar para parar. Eu parei por conta dos muitos calotes que levei. Graças a Deus, logo em seguida criei o projeto da minha escola de futebol. Sete anos de escola de futebol. Escola, inclusive, que recebe criança de qualquer nível, crianças que precisam de cuidados especiais. Autistas e com qualquer tipo de síndrome. Para que elas se sintam acolhidas e dentro de um contexto.

Roger campeão no futebol de várzea — Foto: Reprodução

Cronologia daquele Fla-Flu

Festa para o Roger tricolor

- Primeira vez que vejo as imagens dessa festa para ele. Eu estava bem ansioso para essa partida porque eu vinha de um jogo muito ruim contra o Friburguense, estavam pedindo para eu não jogar. Queriam que o Abel improvisasse alguém na esquerda. Festa feita para ele com todo mérito, vinha da Europa, e era normal.

O terceiro gol do Flu e o "olé"

- Torcida começa a gritar olé. No primeiro tempo fiz um duelo muito bom com o Léo Moura. Com 20 minutos, a torcida deles começa a gritar "olé" pra lá, "olé" pra cá. A gente tenta não pensar, mas vem um turbilhão de pensamentos na cabeça. "Poxa, 3 a 1 para os caras, eles vão deitar". Eu já tinha vindo de um jogo ruim. Se a gente perde de 3 a 1, o próximo jogo provavelmente eu não jogaria. O Julio Cesar (outro lateral-esquerdo) não jogou nesse jogo porque tinha sido expulso.

- Eu lembro de uma imagem de matéria com torcedor do Fluminense correndo para um lado e para o outro gritando "olé" (veja no vídeo abaixo). Acabando mexendo, né? Querendo ou não, eles começaram a tocar curto, já meio que cozinhando o galo achando que a vitória estava garantida.

O "inesperado" segundo gol do Flamengo

- Gol totalmente inesperado. Um balão do Julio Cesar, e o Flamengo num três contra um. O Fluminense com 3 a 1 de vantagem não podia tomar um contra-ataque de chutão. E o Felipe fazendo um gol de direita. Com todo respeito ao Maestro, de quem sou fã e é um craque incontestável, mas fazer gol de Maestro com o pé direito era coisa de outro mundo para ele (risos).

- A canhotinha dele valia por cinco pernas, mas a direita... O gol sai mastigadinho, a bola meio lenta, mas foi na bochecha da rede. Aí alimentou mais a nossa esperança, a torcida do Flamengo começou a inflamar depois desse gol. Graças a Deus foi um gol praticamente atrás do outro e conseguimos essa virada em menos de 15 minutos.

O empate que ilustra a função dos alas naquele time

- Comecei e terminei a jogada (risos). Outro detalhe do nosso time é que jogávamos com dois camisas 5, dois cães de guarda, e a maioria dos times jogava com um só. E nós, os laterais, jogávamos como alas e subíamos ao mesmo tempo. Eu toco a bola para o Rafael, e ele faz um excelente cruzamento. Eu tinha essa característica de tocar e partir sem a bola.

- E esse foi o meu primeiro gol como profissional, então não só o jogo, mas esse gol fica marcado para sempre na minha vida. Eu já era profissional desde os 17 anos. Depois de três anos você fazer seu primeiro gol como profissional, num Maracanã lotado, num Fla-Flu cheio de estrelas e eu querendo dar a volta por cima após ano conturbado no Corinthians... Então esse gol foi literalmente uma redenção.

Roger na Rádio Transcontinental — Foto: Reprodução

Virada com chute que "nem cinco luvas defenderiam"

- Aí é o passe do Maestro. Hoje tenho uma escola de futebol e eu falo para os meninos: eu nunca fui um jogador muito rápido, não era o jogador do sprint. Brinco que quem movimenta dá preferência. No lance, eu ameacei passar e brequei duas vezes. O Felipe decidiu dar o passe na minha terceira movimentação, e eu dei aquela bomba, que o goleiro poderia jogar cinco luvas que não iria pegar.

Importância de Abel e de Junior Maestro

- O Abel bancou a minha escalação, lembro de alguns veículos até falavam de improvisar o Felipe ou o Douglas Silva na lateral. Muita gente pediu para eu não jogar. Aí ele e Júnior me chamaram para uma conversa e me deram uma baita bronca sobre o jogo de quarta e me falaram da importância do jogo de domingo, Maracanã lotado, e falaram: "E aí: você vai jogar, vai pipocar?". Respondi que podia garantir que não repetiria a partida ruim contra o Friburguense. Ele perguntou: "Posso te botar para jogar?". Respondi: "Pode, estou aqui para isso". Tenho muito gratidão ao Abel e principalmente ao Junior, que me deu oportunidade de ir para o Flamengo depois de me ver lá no Corinthians. Sou muito grato aos dois por terem me dado a oportunidade de jogar esse jogo, e eu pude retribuir.

Dividindo-se hoje entre os times de master de Flamengo e Corinthians

- Aí você zera o game. Joguei profissionalmente no Corinthians e no Flamengo , os dois maiores clubes do Brasil na minha opinião. Já posso dizer que joguei pelo master dos dois times. Não é para qualquer um, tirando a modéstia de lado. Agradeço aos organizadores por lembrarem do meu nome.

- Fiz minha estreia também no master do Flamengo num jogo na Bahia. Foi uma excelente oportunidade rever grandes amigos. Eu e Jean fizemos a dupla de ataque, então revivemos 2004. Estive com o pessoal da antiga, Adílio, Mozer, Rondinelli, Nélio e todo o pessoal. Foi muito gratificante e estou aguardando novos convites do master do Flamengo . Estamos revezando nos times de master. Estou com quase 42 anos, o cabelo está caindo, e está mais do que claro que sou master (risos).

Como foi reviver aquele Fla-Flu?

- Meu, é indescritível. Hoje os meninos da base falam que o sonho deles é jogar na Europa. Meu sonho era ser um jogador profissional do Corinthians. E eu fui para o Flamengo com esse intuito. "Eu quero jogar bem aqui e fazer história aqui". Eu nunca fiz planejamento de jogar em Europa. Meu objetivo era jogar bem no clube em que eu estava e abrir portas.

Roger é casado com Alyne e o papai da Lara, de 11 anos, e do Lorenzo, de 9 — Foto: Reprodução

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Fonte: Globo Esporte