Entenda o Jogo de Posição, filosofia de Domènec Torrent, novo técnico do Flamengo

A espera enfim acabou: Domènec Torrent é o novo técnico do Flamengo . Com larga experiência como analista de desempenho e auxiliar, Dome terá como missão manter o alto patamar estabelecido por Jorge Jesus e continuar com a rota vencedora do Flamengo.

Domènec Torrent - se pronuncia "Domeneque Torrên" - faz parte de um seleto grupo de treinadores adeptos do "Jogo de Posição". Pep Guardiola, Louis van Gaal, Jorge Sampaoli e Arteta fecham a relação. Muito falada, essa filosofia tem como algumas premissas a posse de bola, a formação de linhas de passe por todo o campo e movimentos coordenados entre todo mundo.

O que é esse tal de Jogo de Posição? Vai mudar muito o time do JJ?

A melhor maneira de entender o Jogo de Posição é como um caminho diferente de Jorge Jesus, mas que tem o mesmo objetivo: um time ofensivo e que dê gosto de ver. É como se fosse um idioma diferente. Um alemão vai ler “eu te amo” e não entender nada, mas se ler “ich liebe dich“, entende a mesma coisa que você. A mensagem é a mesma, o que muda é a rota até ela.

Setores ao redor da bola e funções sem a posse: os princípios básicos

O nome “Jogo de Posição” causa uma certa confusão. Parece que o time precisa ficar lá na frente paradão, com os laterais abertos e os atacantes pelo centro. Algo como a Era Zé Ricardo e a Era Barbieri. Na verdade, a posição é o local onde a bola está. A partir do local onde o jogador com a posse está, é possível traçar alguns círculos. Cada círculo representa uma orientação diferente ao jogador: como posicionar o corpo, como se mover o que fazer no adversário. O mais correto seria "Jogo de Localização": o local da bola.

Os chamados Espaços de Fase dentro do Jogo de Posição — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
2 de 12 Os chamados Espaços de Fase dentro do Jogo de Posição — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Os chamados Espaços de Fase dentro do Jogo de Posição — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Cada círculo representa uma orientação diferente ao jogador: como posicionar o corpo, como se mover o que fazer no adversário. Quem está com a bola vira o centro do jogo na zona de intervenção. Quem está próximo a esse jogador está na zona de ajuda mútua. Aqui, o papel é se aproximar e colocar o corpo virado para o jogador. Os mais distantes ficam na zona de cooperação, onde devem se movimentar para quebrar a defesa ou ficarem atentos a uma virada de jogo.

Note: os espaços mudam quando a bola muda de posição. As zonas se redesenham constantemente em campo. Por isso que não é estático. A sacada toda está em esperar a bola dentro de cada zona. A bola vai até o jogador. O jogador não pode ir na bola. Todo mundo deve esperar as mudanças desses círculos até ser sua vez de participar do jogo.

Os setores se movem conforme a bola  — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
3 de 12 Os setores se movem conforme a bola — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Os setores se movem conforme a bola — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

"Ele sempre falava: a bola é que tem que chegar para você. Eu tocava na bola no primeiro tempo cinco, seis vezes, mas eram três chances de gols. Ajudava muito a equipe”, relembra Héber, ex-atacante do New York City, ao ge .

Para que a ideia de Torrent funcione, é preciso cumprir um papel primeiro sem a bola e só depois receber ela. O próprio técnico postou um vídeo no qual Xavi fala sobre isso 👇

Fixar, atrair e arrastar: o que o jogador precisa fazer?

A razão do Jogo de Posição existir é fazer o time ficar com a posse de bola por mais tempo possível. A ocupação de espaço dos times de Torrent deve ser extremamente pensada. Milimétrica: os jogadores tem que ficar próximos, mas não podem ficar no mesmo setor. Quem não está com a bola precisa participar intensamente, mas vamos ver isso mais lá na frente.

Perceba que o começo das jogadas é bem parecido com o Flamengo: saída de três, igual Willian Arão faz.

Parks era o volante que, assim como Willian Arão, fazia a saída de três no New York City — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
4 de 12 Parks era o volante que, assim como Willian Arão, fazia a saída de três no New York City — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Parks era o volante que, assim como Willian Arão, fazia a saída de três no New York City — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Depois que a bola passa do meio-campo é que as coisas mudam. Aqui era normal ver Éverto Ribeiro buscando no pé do Gérson. Ou até o Rafinha vindo por dentro quando o Arão avançava. Nada disso é permitido no Jogo de Posição. Os jogadores devem esperar em suas zonas. Aí está o segredo: essa espera não é ficar de costas. Os caras têm que se movimentar para deformar a defesa do rival e abrir espaços no gol.

A sacada está em entender esses movimentos sem a posse, longe de onde você sempre olha no campo, que é a bola. São movimentos divididos em:

  • Atrair um ou dois adversários para longe da defesa
  • Fixar jogadores numa determinada zona de campo e abrir espaço
  • Arrastar um marcador
  • Achar o chamado Homem Livre (aqui complica e teremos um texto aqui no ge só sobre isso)

Vamos aprender pelo exemplo. Dá uma olhada no Héber. Ele esperou o tempo todo no espaço. Quando a bola chegou perto dele, ele saiu da área, virou de costas e foi dar uma linha de passe ao cara que apareceu. Ao fazer isso, ele arrasta um zagueiro para fora da área e fixa mais um marcador ao seu lado. Veja que quem está ao seu lado não vai buscar a bola. O cara na direita fixa dois oponentes, e o mais avançado na esquerda fixa mais dois.

Héber aproxima e o restante do time espera a bola — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
5 de 12 Héber aproxima e o restante do time espera a bola — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Héber aproxima e o restante do time espera a bola — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Qual que a lógica de ficar arrastando e fixando? Você mantém o adversário ocupado enquanto prepara a jogada. É simples: o jogo é sempre onze contra onze. Se um jogador é capaz de chamar a atenção de dois ou até três adversários, alguém ficará livre para receber a bola e fazer o gol. O Jogo de Posição é matemático. Científico. Nada é em vão. Você já se perguntou o porquê de Xavi e Iniesta conseguirem muitas vezes passar por uma defesa inteira? Porque eles estavam fixando e atraindo enquanto todo mundo olhava o Messi 🤯🤯

Em cada momento tem que ter um jogador que cubra cada posição. Não é que ele não possa se mover. Ele pode, mas em todo momento tem que haver alguém que ocupe a posição que outro companheiro abandonou - Marti Perarnau, autor de livro sobre Pep Guardiola

Na prática: o Jogo de Posição no New York City

Pode parecer meio básico até aqui, mas o futebol que Torrent propõe é extremamente complexo. É um jogo que tem regra pra tudo: onde se movimentar, quando avançar e quando recuar...até a distância para o companheiro é milimetricamente pensada. E a referência é sempre os círculos no campo: a zona de intervenção, de ajuda mútua e de cooperação.

Por exemplo: o meia que anda no pontilhado está na "zona de ajuda mútua" e precisa criar uma distância segura para o zagueiro passar a bola. É um espaço vazio e ele deve ocupar para ajudar o time a avançar.

Meia direito do New York City anda uns metros para preencher o espaço — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
6 de 12 Meia direito do New York City anda uns metros para preencher o espaço — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Meia direito do New York City anda uns metros para preencher o espaço — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Na sequência, a região onde quem deve se movimentar muda. Lembra que as zonas mudam conforme a bola? Então é hora dos atacantes irem para um setor onde podem atrair ou arrastar um adversário. Aqui é fundamental não chegar tão perto da bola, para manter as chamadas distâncias de relação. Linhas de passe. Um verdadeiro diagrama no futebol.

Movimentações são sempre longe do jogador com a bola — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
7 de 12 Movimentações são sempre longe do jogador com a bola — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Movimentações são sempre longe do jogador com a bola — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Nessa parte as mudanças em relação ao Flamengo são muito visíveis. Jorge Jesus não seguia o Jogo de Posição: ele gostava de um estilo mais rápido, com maior liberdade aos jogadores e muita velocidade nos ataques. A aproximação era rápida e quem estava na frente atacava as costas dos defensores.

Exemplo: na imagem abaixo, se fosse Jogo de Posição, Filipe Luís não poderia estar tão aberto, Gérson teria que estar mais distante de Éverton, Bruno Henrique e Gabigol precisariam ficar na mesma linha e Arrascaeta tinha que ficar um pouco mais fechado.

Ataque do Flamengo não seguia o Jogo de Posição. — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
8 de 12 Ataque do Flamengo não seguia o Jogo de Posição. — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Ataque do Flamengo não seguia o Jogo de Posição. — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

O detalhe nos times do Torrent era sempre ficar se movendo sem a bola até ela chegar em você. Olha o meia que estava com o corpo virado: como tem um jogador vindo por ali, ele percebe que teria que criar uma outra distância (dentro da zona de ajuda mútua) e começa a ir para outro espaço.

Detalhe na movimentação do meia — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
9 de 12 Detalhe na movimentação do meia — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Detalhe na movimentação do meia — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Até chegarmos ao momento do gol. Olha como as distâncias são simétricas. Como a linha de passe é igual pra cada jogador. Enquanto o adversário está atento a isso, um outro jogador (lá na zona de cooperação) se movimenta sem a bola para aproveitar um espaço nas costas...é ele que faz o gol.

Lançamento que gera o gol do New York City — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
10 de 12 Lançamento que gera o gol do New York City — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Lançamento que gera o gol do New York City — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Flexibilidade e defesa com problemas no New York City

Você deve estar se perguntando: será que Dome vai mudar tudo? Será que ele não viu o time de Jesus e vai querer manter algumas coisas?

Dá sim para ser flexível. O Jogo de Posição não é algo estático ou muito rígido. É uma filosofia, uma linguagem que dá caminhos e modos de pensar ao jogador. Há jogadores que podem ter papéis mais definidos e outros que podem ficar mais soltos em campo. Dome tem um perfil mais flexível, e já no Barcelona mostrava isso: sugeriu Fábregas como falso-9 e mudou a posição de Daniel Alves. Depois, teve a ideia de colocar Lahm e Alaba como meiocampistas no Bayern. E por fim, a solução que ele e Pep acharam para tornar o Jogo de Posição menos estático foi posicionar Kevin de Bruyne como um jogador bem solto no Manchester City.

Foi assim também no New York. Rápido e com grande visão de jogo, o Maxi Moralez tinha bastante liberdade para circular pelo campo. Ele nem sempre precisava seguir os espaços e pedia a bola. Nesse momento, o resto do time se organizava em torno dele, que colaborava com lançamentos e passes mais rápidos ao ataque.

Mesmo sendo um time de muita posse de bola, o New York City se caracterizou por gols de circulação bem rápida. A equipe fez 111 gols em 60 jogos na passagem de Dome, uma média de quase 2 gols por jogo.

Morales era uma espécie de "De Bruyne" no NYC FC — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
11 de 12 Morales era uma espécie de "De Bruyne" no NYC FC — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Morales era uma espécie de "De Bruyne" no NYC FC — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Se o ataque era positivo, o que interrompeu a passagem de Torrent na Big Apple foi mesmo a defesa. Em 60 jogos, o time levou gols em 46. Desses, foram 22 jogos sofrendo dois ou mais gols. Por mais que a intenção era fazer uma marcação alta, era comum levar gols nas costas. Havia pouca sincronia entre a defesa e o meio que subia e subia até fechar todo o espaço de jogo. É uma mudança grande. Com Jesus a referência era totalmente o espaço, a ponto de não ver Rodrigo Caio e Mari precisando dar um carrinho.

Linha de defesa alta, mas longe do meio-campo — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda
12 de 12 Linha de defesa alta, mas longe do meio-campo — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

Linha de defesa alta, mas longe do meio-campo — Foto: Reprodução/Leonardo Miranda

O contexto da chegada do espanhol ao Brasil é completamente diferente. Jesus chegou na parada da Copa América e teve 20 dias de treinos (lembra do tá mal, Arão?). Recebeu quatro reforços de peso que mudaram a cara do time. Teve tempo para colocar suas ideias de jogo e preparar o time fisicamente.

Dome chega num país ainda fechado por conta de uma pandemia e com apenas cinco dias de treino até a estreia do Brasileiro. Ele também não fala português fluentemente, e por mais que Rafinha e seu auxiliar sejam seus tradutores, não é a mesma coisa.

Talvez leve mais tempo. Talvez precise de rodízio. Tudo muito incerto ainda. Só ema certeza: substituir Jorge Jesus é uma missão ingrata e quase impossível. Agora é com Dome e seu Jogo de Posição.

Fonte: Globo Esporte