No livro "Outliers" ("Fora de série" no Brasil), de 2008, Malcolm Gladwell popularizou a "regra das dez mil horas", interpretação particular de pesquisa científica de 1993, que analisou as horas de prática de um grupo de violinistas e a influência delas em suas chances de sucesso. Amparado no estudo, o autor britânico postulou que dez mil horas de treino seriam um “número mágico” que tornaria alguém expert em determinado ofício. De lá para cá, outras pesquisas promoveram o contraditório e adicionaram novas camadas à discussão.
Em 2019, Brooke Macnamara e Megha Maitra, acadêmicas de psicologia, revisitaram o estudo de 1993 e concluíram que as horas de prática criam abismos menores do que se pensava entre violinistas bons e medíocres — teriam 26% de influência e não 48% —, ainda que um terceiro grupo, os instrumentistas de elite, praticassem menos que os bons. Talento inato, qualidade e orientação da prática ganharam relevância, mas a quantidade de horas de treino seguiu sendo métrica essencial.
Quando olhamos para uma Copa do Mundo de Clubes em que brasileiros viveram sonhos na fase de grupos, e o Fluminense conseguiu mandar um gigante europeu para casa, a influência desta prática, em qualidade e quantidade, parece fazer muita diferença. Na etapa inicial do torneio, o tricolor e o Botafogo seguraram suas linhas, esperaram os erros adversários para circular rapidamente a bola no próprio campo e atacar as costas das linhas altas de defesa. Tiveram resultados até então impensáveis.
O Flamengo explorou caminho diferente, tentando manter sua identidade ofensiva. Deu certo contra o Chelsea, com imposição física e volume de jogo no último terço compensando e promovendo a também histórica virada. Nas oitavas, porém, desmoronou diante do Bayern de Munique. A cada equívoco dos rubro-negros, os alemães se mostravam prontos para puni-los.
No caso do Fluminense, eliminado pelo Chelsea na semifinal após excelente campanha, a prática de qualidade contra a outra equipe alemã, o Borussia Dortmund, surtiu efeito: a coragem adquirida na estreia premiou o tricolor com um gol cedo e um desempenho coletivo excelente diante da Inter de Milão nas oitavas. Quando errou, o time de Renato Gaúcho sofreu menos do que poderia, ainda que tenha formado uma linha de cinco defensores para isso. Nas quartas, contra o Al Hilal, manteve o mental em dia para subir mais um complicado degrau. Diante dos ingleses, porém, não resistiu a uma partida ruim, algo natural.
O tal “erro zero”, para muitos necessário quando se pretende vencer um grande clube da Europa, é essencialmente utópico. Jogos perfeitos não são estritamente necessários — certamente, o Bochum, lanterna da Bundesliga, não o fez ao derrotar o Bayern em março. É fundamental, na verdade, saber errar. É errando contra adversários de elite que se encontra caminhos para evoluir, formas de minimizar as consequências dos equívocos e, principalmente, o ponto certo das condições físicas e psicológicas para acertar e ser letal. Como as pesquisas sobre os violinistas mostraram, é a experiência que difere o bom do medíocre, ainda que a elite, no caso do futebol mundial, esteja concentrada no Velho Continente.
Campeão da FA Cup 2024/2025, batendo o poderoso Manchester City, o modesto Crystal Palace enfrentou os rivais 20 vezes na era Pep Guardiola, desde 2016. Perdeu 12, empatou cinco e venceu só três. O clube de Londres não teve dez mil, mas as 28,5 horas de prática só contra o City o credenciaram a vencer o último jogo, valendo a taça. Com estilo semelhante ao de Fluminense e Botafogo no Mundial, o Palace tirou pontos também de Liverpool, Arsenal e Manchester United em 16 dos 30 últimos duelos na Premier League.
Como não se disputa uma Copa de Clubes todo ano, a formação de uma liga no Brasil é um primeiro passo para que os grandes times do país possam fazer como o Palace. A valorização financeira do produto, a padronização dos gramados, a distribuição inteligente de receitas e os mecanismos de governança e transparência financeira são requisitos que ajudarão no processo. Nivelar a gestão e a competição por cima fará com que as equipes daqui vivam o altíssimo nível, no melhor que pudermos, diariamente. Da pressão sufocante e troca de passes arrojados dos europeus à inventividade e intensidade dos brasileiros.
Quando boa parte dos clubes do Brasileirão oferecer desafios de elite para que a elite do país pratique a excelência, embates com europeus no Mundial poderão parecer menos tiros únicos que peçam o utópico “erro zero”. Se possível, sem sacrificar coragem e identidade.