Bayern de Munique fez um jogo sem trégua, e Flamengo não foi derrotado no terreno das ideias

Pelos próximos anos, as memórias do torcedor do Flamengo relativas à Copa do Mundo de Clubes vão se concentrar nos erros técnicos e de tomada de decisão que conduziram a três dos quatro gols do Bayern de Munique. A questão é que não é possível tratá-los como um aspecto isolado do duelo tático, do imenso desafio que a partida impunha ao time rubro-negro — como, aliás, iria impor a qualquer equipe do mundo.

É até possível argumentar que o jogo mal começara quando Rossi errou o chute que terminou na sequência de escanteios do primeiro gol do Bayern, uma cabeçada de Pulgar contra o próprio gol. Mas a rebatida de Luiz Araújo para a frente da área no 3 a 1, a decisão do mesmo Luiz Araújo de tentar o lance individual numa região perigosa do campo no 4 a 2, e mesmo o desarme sofrido por Arrascaeta no 2 a 0 de Harry Kane, nada disso pode ser isolado de um fato: o Flamengo, dono de enormes méritos no jogo, estava sendo apresentado a uma pressão executada numa intensidade que não faz parte da sua rotina no futebol brasileiro ou sul-americano.

Então, o desafio não é apenas o acerto técnico, a melhor tomada de decisão. É fazê-lo sob o constante acosso de um adversário implacável em encaixar individualmente uma pressão pelo campo todo. O que os jogadores do Flamengo vivenciaram em Miami foi a experiência de uma partida de futebol que não dá trégua, que não respira. E precisavam acertar cada ação sob a sensação sufocante de qualquer erro seria punido, ou sob a exigência física de um jogo exaustivo. Luiz Araújo, por exemplo, trabalhara demais — e bem — até a falha no quarto gol dos alemães.

O que o jogo também exibe é a diferença entre o que o dinheiro compra, e o que ele não compra. O Flamengo não foi derrotado no terreno das ideias, Filipe Luís não foi superado por um plano superior. Houve passagens importantes do jogo em que o time brasileiro mostrou saber como queria sair da pressão, com dinâmicas trabalhadas para progredir no campo. Quando levou a bola ao campo do Bayern, juntando passes com Jorginho, o excelente Gérson e Arrascaeta, construiu seu gol e encontrou o pênalti. Ao final, teve 52% da posse, muito mais do que o Bayern costuma permitir, e arrematou 12 vezes contra sete do rival. São números que talvez nenhum time da América do Sul obtivesse. Nem é sobre capacidade, é sobre identidade. O Bayern é melhor do que o Flamengo, que teve o mérito de estar à altura da ocasião e de propor um tipo de duelo pouco usual contra os gigantes europeus.

Mas aí entra o que o dinheiro compra, e a patologia do futebol mundial chamada desigualdade. Vale para o Flamengo, valeria para qualquer time sul-americano. A bola que cai no pé de Harry Kane costuma ter como destino inevitável o gol. A capacidade de Kimmich para direcionar o jogo, evitar pressões e dar passes como o do 4 a 2 é da mais absoluta elite. Da mesma forma, a presença de Goretzka seguindo Gérson, a capacidade de Olise, a impressionante partida de Stanisic... tudo isso retrata ume elite econômica do jogo, o que gera um outro ambiente competitivo.

E neste nível de exigência, aparecem os tais erros. Wesley era importante nas corridas em profundidade contra uma defesa adiantada, mas sofreu quando precisou participar dos primeiros passes. Assim como Rossi, e assim como Arrascaeta não conseguiu fazer seu jogo aparecer numa partida com este ritmo: o uruguaio sucumbiu, e só apareceu bem quando o Flamengo se colocou no campo ofensivo num jogo um pouco mais cadenciado.

Ninguém escolhe o resultado. O que se escolhe é a forma de buscá-lo ou, na pior hipótese, a forma de perder. Sai da Copa do Mundo um Flamengo muito bem treinado, com um grande time dentro da realidade sul-americana. Na ordem econômica do jogo atual, novamente não foi suficiente.

Fonte: O Globo
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