Quando o sorteio da Copa do Brasil colocou o Flamengo no caminho do Grêmio, a sensação de disparidade de forças fez com que se debatesse, inclusive, se a eliminatória chegaria indefinida ao Maracanã. Pois a goleada rubro-negra em Porto Alegre, sob este aspecto, tem um ar de vitória prevista. Mas acabou conseguida através de um roteiro absolutamente inesperado.
Porque enquanto os times estavam no vestiário, no intervalo do jogo, as discussões tinham muito pouco a ver com um jogo que terminaria 4 a 0 para os visitantes. Os primeiros 45 minutos exibiam a melhor versão do Grêmio em 2021: num ano delicado, de projeto esportivo cheio de mudanças de rota e com uma reconstrução de time longe de estar estruturada, o tricolor fora superior ao melhor time brasileiro das últimas temporadas.
Rafinha e Everton Ribeiro disputam a bola na Arena do Grêmio — Foto: Lucas Uebel/Grêmio
E o fez explorando deficiências do rival. Até ali, a atuação rubro-negra reacendera um tema posto em segundo plano por vitórias recentes. Nos últimos tempos, nesta curta passagem de Renato Gaúcho no comando, o time mostra virtudes, é óbvio. Mas entre elas não está a capacidade de controle, de impor aos jogos o ritmo e o estilo que interessam a este time, a identidade e cultura de jogo que caracterizam o Flamengo das últimas temporadas. É comum a percepção de que o rival molda o tipo de jogo, e o Flamengo tenta se adaptar quando consegue.
Por vezes, há partidas que viram sucessões de golpe e contragolpe, ou jogos em que o Flamengo se vê obrigado a defender mais atrás. Saber se adaptar é virtude, mas a questão é que nem sempre a equipe parece confortável, com controle da situação. Houve dois lances idênticos e emblemáticos. Com um tiro de meta a favor, o Flamengo viu o Grêmio pressionar com seus três homens ofensivos. No lugar de apostar no modelo de saída de bola, o rubro-negro escolheu o chute longo e devolveu a posse ao rival.
O jogo ainda ressaltava uma questão estrutural recorrente. Após a perda da bola, a sensação de um Flamengo partido em dois, com muitos espaços entre quem ataca, ou quem tenta pressionar na frente para retomar a bola, e a linha defensiva.
O Grêmio foi bem ao explorar tudo isso. Primeiro com Diego Costa ora recebendo aberto, ora buscando o centro. Depois, com seus três atacantes forçando a linha defensiva do Flamengo para trás, movendo zagueiros e laterais de lugar e buscando tabelas para atacar o espaço. Isla, exposto no combate, acabou expulso num momento em que o Flamengo melhorara com a bola, embora ainda defendesse mal. Estava reforçada a sensação de um segundo tempo difícil para os cariocas.
Mas o panorama se altera brutalmente por acertos do Flamengo e de Renato Gaúcho, mas também por sérias questões que ainda acompanham este Grêmio. Renato fizera uma escolha arriscada na parte final da primeira etapa, ao esperar o intervalo para mexer. Sem um lateral após Isla receber cartão vermelho, quase sofreu um gol pelo setor direito da defesa. No entanto, foi bem no intervalo ao colocar Matheuzinho na direita e, no meio-campo, trocar Diego por Thiago Maia. Ganhou presença física, imposição num setor em que o titular perdia duelos e se via envolvido. Fez o Flamengo marcar mais atrás, com duas linhas de quatro homens e Gabigol mais adiantado.
Éverton Ribeiro assumiu o jogo nos momentos em que o Flamengo precisou reter a bola, sair de trás; Thiago Maia teve muita presença no jogo e Gabigol trabalhou bem como apoio, recebendo de costas para o gol e permitindo avanços dos companheiros. Michael, que entrara no primeiro tempo após a lesão de Bruno Henrique, era outro escape de contragolpe.
Mas a goleada não se constrói apenas porque o Grêmio errou barbaramente numa bola parada e o chute de Bruno Viana contou com um desvio da defesa. Ela acontece porque o tricolor se viu em crise de identidade. Com um jogador a mais, o que deveria ser um trunfo virou um problema para o Grêmio. A necessidade do protagonismo, do comando das ações, da criação contra uma defesa bem colocada atrás, induziram o jogo para algo distante do modelo a que se propõe o time de Felipão. Este Grêmio, que mal consolidou uma defesa forte e um jogo de ataques rápidos, como até chegou a mostrar na primeira etapa, naturalmente ainda não tem mecanismos para ditar a partida e tentar criar em organização ofensiva. A cada bola perdida, passou a oferecer generosos espaços, que apenas se ampliaram conforme Felipão foi acumulando atacantes. E, com espaços, a qualidade do Flamengo tende a transformar partidas difíceis em goleadas.
É importante que, em vitórias deste peso, o Flamengo perceba que este não é um time sem defeitos, totalmente estruturado taticamente. Mas que tem talento para disputar todas as competições que se apresentam. Assim como, antes de concentrar a análise de uma derrota tão dura em Felipão, vale lembrar que, dos cinco últimos confrontos, em três deles o Grêmio permitiu ao rival marcar quatro ou cinco gols. Retrato de que a questão vai além: há uma diferença de elencos, de estágios dos dois clubes neste momento.