Há décadas, o futebol feminino do Brasil luta por reconhecimento e estabilidade. Quanto mais aliados a modalidade tiver, melhor. E um deles está na cidade de Juazeiro do Norte, a 507 km de Fortaleza. Ronaldo Angelim, ídolo no Flamengo, abriu as portas da própria casa para abrigar os sonhos de muitas meninas que viram o espaço se transformar em lar . O ex-jogador é fundador e presidente do R4 Esporte Clube, time da terceira divisão do Campeonato Brasileiro.
- Meu sonho era ter um lugar para, quando parasse de jogar futebol, poder descansar. Mas também tinha meu pai, que é da roça e foi vaqueiro. Então comprei o sítio para ele passar fim de semana, mamãe veio morar aqui. Vinha visitá-la todo dia. Eu gosto de bola, minha primeira paixão é a bola, e aí inventei de fazer um campo do lado da casa da minha mãe - explicou o ex-atleta, aposentado em 2003, em entrevista ao Globo Esporte.
A ideia era bater uma bolinha e incentivar a família a praticar o esporte também. Foi assim que Francisca Simões, mãe do Angelim, substituiu uma goleira no primeiro racha. Lúcia Simões, tia do ex-jogador, comenta.
- Eu participava muito. Adorava ser jogadora, mas eu já tinha 60 anos. Se eu tivesse conhecido o futebol mais jovem, eu teria jogado de verdade. Eu amava mesmo. Não me importavam as quedas. O melhor tempo da minha vida foi jogar bola - ressaltou Lúcia Simões.
O time iniciou como passatempo, cresceu e virou R4 Esporte Clube, em 2010. Entre os títulos do feminino, estão os do Campeonato Barbalhense, do torneio ASSEAJUNO (Associação de Apoio ao Esporte Amador de Juazeiro do Norte), além de outros amadores da região. Em seguida, nasceu a parceria com o Guarani de Juazeiro com foco na disputa do Cearense Feminino (2022).
A agremiação leva a inicial do nome de Angelim e o número usado por ele como atleta profissional. O símbolo do time também carrega a imagem. O uniforme traz as mesmas cores do Flamengo, clube no qual o jogador cearense fez história, além da cor amarela.
Vestindo a camisa Rubro-Negra, o ex-zagueiro conquistou a Copa do Brasil (2006), o Campeonato Carioca (2007, 2008, 2009 e 2011) e o Brasileirão (2009), onde marcou o gol do título. Pelo Fortaleza, ganhou quatro Cearenses (2001, 2003, 2004 e 2005). É possível ver a paixão pelo time carioca e o carinho pelo Tricolor em todos os espaços da casa dele.
O time realizou o primeiro ano de atividades no CT do Guarani de Juazeiro após uma parceria. Em seguida, a casa de Angelim virou alojamento . Vinte jogadoras chegaram a morar no local. A maior parte vem de cidades vizinhas a Juazeiro e outros estados. Além da sala de troféus com as memórias do Magro de Aço, o espaço tem área de lazer, três quartos com seis camas de beliche cada, cozinha e os demais ambientes de uma moradia comum.
- Pensei numa solução, e a única foi alojar as meninas na minha casa. Acho que nenhum outro presidente faria isso. Como era uma casa que tinha seis quartos foi o que deu para fazer e não deixar de ter as atletas treinando todo dia. Não poderíamos ficar sem disputar as competições (Sub-15, Sub-17 e adulto). Adaptei minha casa colocando beliches em quartos. Deixei algumas meninas dormirem no meu quarto, inclusive durmo às vezes na cozinha, no colchão, para dar conforto e elas tenham 100% de desempenho - ressaltou.
E toda casa tem regras. Na parede da cozinha, a lista dos afazeres com os horários de cada uma: quem limpa o espaço, quem tira o lixo, lava a louça e prepara as refeições.
- Cada uma tem sua obrigação. Elas cumprem. Isso é um projeto sem fins lucrativos, e precisamos da ajuda de todos. Enquanto o sub-15 e o sub-17 jogam, as adultas cozinham. Quando o profissional se apresenta, aí contrato uma cozinheira porque precisa estar todo mundo agregado e focado para as coisas acontecerem - ressalta o ex-jogador.
- Pensando no bom convívio, a gente divide (as tarefas) certinho para todo mundo, ninguém fica sobrecarregado e cada uma faz sua parte - completou Amanda Alencar, volante do Sub-17.
Medalha de prata nas Olimpíadas de Paris 2024 com o futebol feminino, o Brasil vai receber a Copa do Mundo da modalidade pela primeira vez. Em Juazeiro do Norte, as meninas do R4 também constroem uma rotina de entrega ao esporte. De segunda a sábado, em dois turnos, são comandadas pelo técnico Arclébio Soares, que também trabalha como motorista. As atividades seguem no CT do Guaraju.
- É uma oportunidade de me tornar goleira profissional. Agradeço ao Ronaldo por treinar a gente todos os dias e nos ajudar - afirmou Ana Priscila, do Sub-17.
- Estou aqui para ajudar a minha família, ser uma grande jogadora. Eu vivo e acordo pensando nisso - reforçou Emily Laís, atacante do Sub-17.
Elas veem jogos ao lado de Angelim, que também conversa sobre as partidas como um treinador. Os pais dele participam da rotina de cuidado das jogadoras. Seu Antônio, aos 84 anos, já apareceu nas redes sociais do filho enquanto preparava uma grande panela de comida para o grupo.
- A gente procura sempre valorizar a garotada, dar oportunidade. Tanto que a nossa equipe profissional é uma das mais jovens nas competições. Esse ano temos atletas com 15, 16, 17 anos. A gente enxerga o talento, trabalha e procura colocar em prática - explica Arclébio.
O R4 estreia no Campeonato Cearense feminino no dia 26 de outubro, quando enfrenta o Crato. Outras quatro equipes participam da competição: Ceará, Fortaleza, Juasal e The Blessed.
Além de presidente do clube, o ex-defensor também financia a equipe. Parte das jogadoras recebe ajuda de custo ou gratificação, a depender da competição. Outras recebem um salário mínimo. O rateio de alguma premiação também é feito com a comissão técnica.
Também há parcerias com empresas e patrocínios. No entanto, o ex-atleta promove sorteios em busca de arrecadar fundos e contribuir na continuidade do trabalho. O grupo também participa de amistosos para arrecadar alimentos.
- A despesa é alta. Temos nutricionista, psicóloga, fisioterapeuta, treinador, auxiliar, treinador de goleira. Temos uma estrutura bacana, mas tudo isso tem um custo. Por isso vivo trabalhando, fazendo eventos. O povo pensa que a gente faz para ganhar dinheiro, mas é para dar qualidade de vida melhor às meninas. Eu não preciso. Tudo que ganhei no futebol é investido, guardado. Todo ano faço jogo para colaborar com o projeto, meus amigos vêm. Faço rifa de camisa e chuteira, que amigos que eu joguei junto me deram. Inclusive Imperador e Pet. E a torcida do Flamengo ajuda da melhor maneira possível a diminuir nossos custos - explicou Angelim.
O time joga profissionalmente há dois anos. Disputou a Série A3 do Brasileiro e o Campeonato Cearense. No torneio estadual, ficou em terceiro lugar duas vezes, superado por Ceará e Fortaleza, que disputaram as finais.
Ronaldo iniciou a construção de um Centro de Treinamento para o R4 no próprio sítio. Parte da verba usada para a obra veio do jogo realizado no ano passado, também com os amigos ex-jogadores.
- O recurso foi pouco, do jogo do ano passado. O pessoal veio de graça para o jogo, inclusive o Zico . Mas a despesa é grande, é mais do meu bolso. O que sobrou só deu para fazer uma mureta, mas já é grande coisa. Agradeço aos meus companheiros. Esse ano sobrou bem menos, porque tivemos que dar cachê. Mas continuo batalhando pelo projeto, em prol de dar o melhor para elas, tentar construir o CT com alojamento e três campos. Devagarinho vou fazendo uma rifa aqui outra ali para que esse projeto um dia se torne grande - finalizou o flamenguista.