Tzvetan Todorov talvez nunca tenha batido um pênalti na vida. Nascido na Bulgária e radicado na França, esse filósofo e historiador ganhou fama por refletir sobre como os europeus lidaram com os povos indígenas da América na época dos descobrimentos. Além de jornalista, tenho um passado de historiador — e seu livro "A Conquista da América: A questão do outro" é um dos meus favoritos dessa “outra vida”. Todorov não escreveu sobre futebol, mas poderia.
O filósofo explica que, mais do que espadas ou cruzes, os espanhóis trouxeram ao Novo Mundo uma dificuldade crônica de reconhecer o outro. Não o outro como alguém exótico ou estranho, mas como um sujeito legítimo, com voz própria e razão de ser. No fundo, o que ele diz é que os europeus não souberam lidar com a diferença — ou pior: tentaram apagá-la. A história seguiu, o Velho Mundo envelheceu ainda mais, mas o incômodo diante do que não se entende persiste. Inclusive nos gramados.
Avançamos para o século XXI. A Fifa decide reinventar o Mundial de Clubes — agora mais longo, mais pomposo, mais global. E lá vêm eles de novo: os conquistadores modernos. Visual alinhado, staff completo, uma prancheta digital a cada canto do campo. Eles têm tudo mapeado. Tudo, menos a alteridade.
Porque o futebol sul-americano, convenhamos, é um “outro” difícil de explicar para quem não cresceu entre arquibancadas fervilhando e campos com marcação feita à base de chinelo. O europeu chega com GPS, controle de carga e uma impressionante capacidade de planejamento — virtudes que, aliás, já importamos com gosto e que têm feito diferença por aqui também. Mas o que se soma a isso, do nosso lado, é outra lógica: o improviso onde falta espaço, a vontade que dribla o cansaço, a entrega de quem enxerga na Copa do Mundo de Clubes algo maior do que um simples torneio. Um Igor Jesus que parece exausto, mas está apenas à espreita do passe decisivo. Um Flamengo que não se abate e se faz presente em cada canto do campo. Não por acaso, é justamente essa criatividade instintiva misturada à vontade de vencer na vida que leva tantos dos nossos a serem contratados por eles.
E eles se encontram — ou se desencontram — com esse novo mundo nos estádios meio cheios, meio vazios dos Estados Unidos. E então, como em 1492, o outro resiste.
A imprensa europeia — e alguns jogadores e treinadores, muitos torcedores —, após as primeiras surpresas, corre em busca de explicações: o calor, o gramado, o fuso horário, a falta de motivação. Muitos preferem justificar o imprevisto a reconhecer um fato simples: do outro lado também tem gente jogando bola. E jogando bem.
Sim, a vitória do Botafogo contra o PSG, o amasso do Flamengo diante do Chelsea, o empate do Fluminense diante do Borussia, podem ser, para muitos, uma surpresa — e não há problema em admitir isso. Não significa que o futebol sul-americano seja superior, mas apenas que o esporte, criado na Inglaterra, não é uma equação exata. É tal qual a História. É jogo. É risco. É erro e brilho. E o mínimo que se espera de quem participa de uma competição global é respeitar isso. Porque a bola é redonda, e quando rola, pode ir para qualquer lugar — inclusive onde ninguém espera.
Luis Enrique, técnico do PSG, saiu da coletiva com a elegância que se espera de um treinador europeu, mas sem rodeios: o Botafogo, disse ele, foi o time que melhor defendeu contra o campeão da Europa em toda a temporada. Nem na Ligue 1, nem na Champions, alguém havia marcado com tamanha precisão. Reconheceu os méritos do adversário, elogiou o posicionamento, a intensidade e a leitura tática dos brasileiros. Nada de culpar o calor ou o calendário. A derrota, para ele, foi consequência de um adversário que soube jogar — e que mereceu. Fez, talvez sem perceber, um pequeno gesto de reconhecimento da alteridade: às vezes, é preciso respeitar o jogo do outro como ele é. E com tudo que ele tem.
O Mundial de Clubes virou um laboratório ético, onde europeus têm a chance de fazer o que os conquistadores não fizeram: ouvir, observar e, por que não, aprender. Não significa que são piores. Nem que estamos melhores. Não se trata de perder ou ganhar, mas de perceber que há outras maneiras de entender o jogo, o mundo e o próprio sucesso. O “outro”, afinal, não é menos porque é diferente. Ele é mais — justamente porque é.
E se Todorov estivesse entre nós, talvez não escrevesse uma nova teoria. Bastava ver o toque de Wallace Yan para dar números finais à virada rubro-negra. Ou dar um pulo na arquibancada do Rose Bowl, pedir uma cerveja gelada e observar, em silêncio filosófico, o momento exato em que Igor Jesus — com um toque de leveza e um drible de corpo — desmonta a zaga (tod sul-americana, veja só!) do milionário time parisiense. A bola ainda desvia, caprichosa, antes de entrar, como quem diz: "aqui tudo é possível!". É aquele instante em que o “outro” deixa de ser mistério e vira puro encantamento.
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