On Tour: Às oitavas e além, Mengão

Tenho lido na viagem um pouco de James Joyce – não em livros, mas na parede das velhas tavernas. Numa delas, fundada em 1860 e irlandesa até dizer chega, espremi a vista e me deparei com um trecho do clássico “Ulisses”, numa plaquinha de metal: “Um bom quebra-cabeças seria cruzar Dublin sem passar por um bar”. Por estes dias, o velho Joyce poderia propor outra gincana quase impossível – tentar atravessar a costa leste dos EUA sem passar por uma camisa do Flamengo.

A fanfarra é justa. Não é sempre que metemos três gols num esquadrão azul vindo da Inglaterra – normalmente, eles estão de vermelho. Além do mais, vitórias de virada como a da Filadélfia possuem uma descarga elétrica diferente, que prolonga seus efeitos e sua euforia. Será que Flamengo x Chelsea entrou no ranking dos maiores vira-viras de nossa história, ali ali com o Santos x Flamengo de 2011? Ou já está entre o Flamengo x Grêmio do Hexa e a milagrosa final em Lima?

Tentava puxar da memória essas e outras viradas célebres quando surgiram – adivinhem – um punhado de camisas do Flamengo, em nossa direção. Estávamos na estação de trem e o quarteto acabara de perder o voo para Orlando, precisavam refazer trajetos. Mas quem disse que se abalaram? Entre abraços, ouvimos: “Ih, uma confusão. Alguém quer cerveja? Bora tirar uma foto juntos!” Outro irmão flamengo cofiava a longa barba, enquanto procurava passagens pelo celular: “Moro na América e estava tudo certinho, voo, datas, oitavas pertinho de casa… O Flamengo me ferrou bonito, graças a Deus!”

É o preço a pagar por sermos Flamengo. Após escalas, trens para a Filadélfia, barcas e metrôs para Manhattan e muita perna de lá para cá, nos despedimos dos amigos e do bairro do Brooklin, e de nossos três anfitriões – a chef Fabi e seus gatos, Lucrécia e Dorian Gray. Era hora de voar para a Flórida, e reencontrar Filipe Luís e seus meninos.

Nova cidade, mesma alegria, e o mesmo calorão. Não fiz um censo muito minucioso, mas em Orlando os milhares de torcedores rubro-negros parecem se dividir em dois grupos, zero polarizados mas com convicções opostas. O primeiro invade os parques de diversão com a família inteira, atrás de adrenalina e corridas nas montanhas-russas. Já o segundo se atém a uma atividade que, numa crônica antiga, Luis Fernando Verissimo resumiu bem: ficar “vendo televisão e ouvindo o doce som dos dólares economizando na carteira.” No fim das contas, as camisas do Flamengo acabam todas juntas, nos bares e portas do estádio.

Amigos embarcam de volta, outros chegam para as oitavas – estes preferiram curtir a melodia dos dólares parados ao máximo, no Brasil. Empolgados com a jornada que para eles começa, perguntam sobre expectativas e probabilidades. O Flamengo começou o torneio, segundo os supercomputadores, com 0,3% de ser campeão. Creio que melhoramos um pouco, quem sabe uns 0,9.

O que sei, e digo à turma aqui, é que, se pararmos nas quartas de final, será uma façanha digna de aplausos, e de um belo bicho a todos. Se pararmos na semifinal, é papo de recebermos o time em carro de bombeiros e busto de bronze ao Boto. Se cairmos só na final, é dedo na cara e gritaria, faixa de cabeça para baixo e crise na Gávea, que aqui é Flamengo, mermão.

Preciso fechar a crônica e me despedir. É que a turma já mandou mensagem do bar, me lembrando que é hora de ler James Joyce.

*Marcelo Dunlop é o cronista rubro-negro da ‘On Tour’, coluna do GLOBO que mostra a visão dos torcedores brasileiros nos EUA durante a Copa do Mundo de Clubes

Fonte: O Globo
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