Libertadores 2023: o que acontece no corpo quando se joga na altitude

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A notícia de que Palmeiras e Fluminense vão jogar em La Paz, capital da Bolívia, que fica 3.600 metros acima do mar, e de que Flamengo e Corinthians enfrentarão os 2.800 metros de Quito, no Equador , trouxe um questionamento recorrente antes de jogos da Libertadores em cidades localizadas a grandes altitudes: qual é o prejuízo para o atleta que não está acostumado com a vida nas alturas? E o que acontece no corpo quando se joga ou se faz qualquer tipo de exercício em altitudes elevadas? Qual o impacto no sistema cardiorresporatório, nos músculos, no cérebro?

Mal da Montanha - Altitudes de estádios de futebol no Equador e na Bolívia — Foto: Infoesporte ge
1 de 5 Mal da Montanha - Altitudes de estádios de futebol no Equador e na Bolívia — Foto: Infoesporte ge

Mal da Montanha - Altitudes de estádios de futebol no Equador e na Bolívia — Foto: Infoesporte ge

Nesta quarta-feira dia 5 de abril, o Palmeiras já enfrenta o Bolívar no Estádio Hernando Siles em La Paz, na Bolívia, e o Flamengo joga com o Aucas no Gonzalo Pozo Ripalda, em Quito, Equador. O Fluminense vai encarar o The Strongest em La Paz em 25 de maio, também no Estádio Hernando Siles, e o Corinthians pegará o Independiente Del Valle em 8 de junho em Quito, no Estádio Banco Guayaquil.

Sintomas

O médico do esporte e cardiologista do Vasco da Gama, Mateus Freitas Teixeira, o ortopedista e médico do esporte especialista e medicina de montanha e de aventuras Adriano Leonardi e o fisiologista do esporte Turibio Barros, todos colunistas do EU Atleta, confirmam que o impacto não é pequeno. E que o prejuízo para desempenho e bem-estar é diretamente proporcional à redução da quantidade de oxigênio no ar inspirado. Ou seja, quanto mais alto, pior.

A partir de 1.500m alguns efeitos já podem ser sentidos, mas a maioria das pessoas tem sintomas acima de 2.000m.

Acima de 2.000m

Em Quito, no Equador, há dois estádios a 2.800m de altitude, situação em que a saturação de oxigênio do organismo é reduzida em cerca de 20% em relação ao nível do mar. O Flamengo jogará no Gonzalo Pozo Ripaldo e o Corinthians no Banco Guayaquil. Outro estádio famoso acima dos 2.000m é o Monumental Virgen de Chapi, em Arequipa, no Peru, que fica a 2.300m. Confira quais são os efeitos no organismo:

  • Dor de cabeça;
  • Náuseas;
  • Tonturas;
  • Indisposição gástrica, vômitos;
  • Sensação de falta de ar;
  • Fadiga;
  • Letargia;
  • Maior risco de problemas cardiovasculares, pois o coração é mais exigido. Especialmente entre atletas com algum problema cardíaco prévio do qual não tinha conhecimento, como esclarece o cardiologista Mateus Freitas Teixeira.

Outro tradicional destino de jogos de Libertadores é Cochabamba, onde joga o Jorge Wilstermann, 2.500 metros acima do nível do mar.

Acima de 3 mil metros:
Messi vomitando em campo em La Paz, em 2013 — Foto: Reprodução
2 de 5 Messi vomitando em campo em La Paz, em 2013 — Foto: Reprodução

Messi vomitando em campo em La Paz, em 2013 — Foto: Reprodução

É o caso de La Paz (Bolívia), a 3.600m de altitude, onde a saturação de oxigênio do organismo é reduzida em cerca de 33% em relação ao nível do mar. Nessa condição, os impactos são:

  • Todos os sintomas dos estádios acima de 2.000m, que atingem mais pessoas e de forma mais forte quanto mais alto se subir;
  • Maior risco de edema pulmonar.

Em 2009, o preparador físico da seleção argentina chegou a dizer que “um jogador pode morrer na altura de La Paz". Em 2013, Lionel Messi vomitou em campo durante o empate de 1 a 1 com a Bolívia, pela 12ª rodada das eliminatórias da América do Sul para a Copa do Mundo de 2014.

- É terrível jogar aqui. Quando você faz um esforço ou uma jogada de velocidade, demora muito para se recuperar. Sabíamos que seria assim e jogamos com os atacantes soltos, tentando aguentar - disse o craque na época.

Torcedor do Internacional levou um tubo de oxigênio para La Paz quando o Inter disputou a Libertadores em 2015 — Foto: Diego Guichard
3 de 5 Torcedor do Internacional levou um tubo de oxigênio para La Paz quando o Inter disputou a Libertadores em 2015 — Foto: Diego Guichard

Torcedor do Internacional levou um tubo de oxigênio para La Paz quando o Inter disputou a Libertadores em 2015 — Foto: Diego Guichard

Há estádios ainda mais altos que o Hernando Siles nessa faixa, como o Víctor Agustín Ugarte, também conhecido como Estádio Mario Mercado Vaca Guzmán, em Potosí, também na Bolívia. Ele é localizado a 3.960 metros, praticamente já na faixa dos 4 mil metros acima do nível do mar e é a casa do Nacional e do Real Potosí. Já Oruro está a 3.800 metros e tem o San José como time principal.

Estádios acima de 4.000m de altitude:

O Always Ready, da Bolívia, disputou a Libertadores 2021 e jogou em El Alto, na região metropolitana de La Paz, a uma altitude de 4,1 mil metros. Inaugurado em 2017, o campo foi palco de uma tragédia em 2019, quando o árbitro Víctor Hugo Hurtado morreu ao apitar uma partida entre Always Ready e Oriente Petrolero. Foi o estádio de maior altitude em que se disputou uma partida oficial da Libertadores.

Isto porque o Estádio Daniel Alcides Carrión, em Cerro de Pasco, no Peru, casa do Unión Minas, não chegou a sediar nenhuma até o momento. A 4.380 metros do nível do mar, é o estádio localizado na maior altitude do mundo. Nessa faixa, os sintomas são:

  • Todos anteriores, muito agravados;
  • Risco de edema cerebral. Isso é algo mais comum, no entanto, entre alpinistas, e uma das principais causas de mortes para os que sobem altas montanhas, acima dos 5 mil metros, onde o frio intenso também têm um papel importante.

Jogar em estádios em grandes altitudes é polêmica antiga no futebol, com boa parte dos jogadores, dirigentes e médicos contrária aos riscos que são assumidos nessa condição - e às vantagens que os jogadores locais, já aclimatados, têm em relação aos outros.

Por que esses sintomas se desenvolvem?

A redução da capacidade do organismo de captar oxigênio do ar e distribuí-lo pelos órgãos e tecidos tem um impacto prejudicial direto na capacidade de produção de energia aeróbica, afetando o desempenho esportivo. Além do prejuízo ao desempenho, a exposição aguda à altitude provoca mal-estar durante os primeiros dias de exposição, como dor de cabeça, náuseas, tonturas e indisposição gástrica, entre outras.

Quanto mais alto, menor a pressão atmosférica, mais rarefeito é o ar e mais difícil se torna a captação do oxigênio pelos glóbulos vermelhos e a posterior oxigenação de órgão e tecidos. Algumas pessoas sentem mais os efeitos do que outras, mas nenhuma sai incólume ao enfrentar a altitude sem tempo hábil para uma adaptação.

- Essa reação é muito individual. Você pega um grupo de amigos que vai viajar para a altitude e alguns vão ficar mais abatidos que outros. Mas uma vez que uma pessoa sente isso, sempre que for para a altitude vai ter os sintomas - afirma Adriano.

Muitas vezes, a reação é imediata.

- Você abre a porta do avião em La Paz e no mesmo momento a respiração fica mais acelerada para compensar a falta de oxigenação no sangue. Mesmo assim, não é suficiente - comenta Turibio.

Entenda o que acontece no corpo:

  • Pulmões - A respiração é a primeira a mudar. A hiperventilação acontece quando se respira mais rápido, reação do organismo para tentar captar mais oxigênio no ar. Como mesmo assim não consegue suprir o corpo de oxigênio, há sensações de moleza, letargia, já que há uma menor oxigenação do cérebro, assim como de todos os outros órgãos e tecidos. Em altitudes maiores, pode haver até mesmo risco de edema pulmonar, com acúmulo de líquido nos órgãos;
  • Músculos - A menor quantidade de oxigênio captada pelo sangue gera, consequentemente, uma menor oxigenação dos músculos, o que provoca, nos atletas, perda de desempenho e fadiga muscular precoce;
  • Sangue - Quando ocorre a hiperventilação, além de a oxigenação permanecer insuficiente, a pessoa passa a eliminar gás carbônico numa velocidade maior do que deveria, causando alcalose, que é o aumento do PH do sangue. Esse sangue mais alcalino provoca dor de cabeça e tontura;
  • Pressão arterial - O organismo tenta compensar a falta de oxigenação dos tecidos bombeando mais sangue, o que aumenta a pressão arterial. Em altitudes maiores, especialmente acima de 4 mil metros, isso provoca maior risco cardíaco e de rompimento de um aneurisma cerebral;
  • Coração - O coração é mais exigido na altitude, o que gera risco aumentado de paradas cardíacas, especialmente se o atleta tiver alguma condição prévia e a desconheça;
  • Cérebro - Com o aumento da circulação sanguínea, o cérebro incha, causando dores de cabeça. Em altitudes ainda maiores, pode haver até mesmo edema cerebral;
  • Olhos - A baixa pressão atmosférica também pode afetar os olhos, com o surgimento de edemas oculares.

Adaptações fisiológicas

Glóbulos vermelhos transportam o oxigênio do sangue para os órgãos e tecidos — Foto: Istock Getty Images
4 de 5 Glóbulos vermelhos transportam o oxigênio do sangue para os órgãos e tecidos — Foto: Istock Getty Images

Glóbulos vermelhos transportam o oxigênio do sangue para os órgãos e tecidos — Foto: Istock Getty Images

Para quem mora nesses locais ou tem tempo para fazer uma aclimatação de mais de um mês, há uma adaptação fisiológica importante: há um aumento na produção de glóbulos vermelhos (hemácias), pois quanto maior o seu número, maior será também a capacidade de transporte de oxigênio. Essa adaptação fisiológica tem o mesmo efeito, por exemplo, da eritropoetina (EPO), hormônio que estimula a produção de hemácias, o que permite que o atleta tenha mais energia.

A eritropoetina é produzida naturalmente nos nossos rins. Mas quando feita em laboratórios e consumida por atletas, é considerada doping. Já o aumento das hemácias por adaptação fisiológica não é. Por isso, muitos atletas treinam em altitude nos meses anteriores a grandes competições. No entanto, essa adaptação exige tempo.

Jogadores de futebol que vão participar de partidas da Libertadores nesses estádios não têm esse tempo e acabam prejudicados em relação aos atletas locais, que moram e treinam na altitude.

É possível fazer uma aclimatação?

Estádio Hernando Siles, em La Paz, na Bolívia: 3.600m acima do nível do mar — Foto: Staff Images / CONMEBOL
5 de 5 Estádio Hernando Siles, em La Paz, na Bolívia: 3.600m acima do nível do mar — Foto: Staff Images / CONMEBOL

Estádio Hernando Siles, em La Paz, na Bolívia: 3.600m acima do nível do mar — Foto: Staff Images / CONMEBOL

É, mas, como dissemos, exigiria mínimo de quatro semanas, possivelmente mais. Não há tempo para isso no calendário do futebol. A solução, portanto, é chegar o mais perto possível da hora do jogo e ir embora assim que ele acaba, para que não haja tempo também de o corpo sentir tanto os sintomas.

Em 2017, o então fisiologista da Seleção Brasileira, Luiz Antonio Crescente, contou que a estratégia para enfrentar a Bolívia em La Paz seria passar apenas oito horas na cidade e levar um cilindro de oxigênio para cada titular. Isso porque a cada parada técnica e nos intervalos, os jogadores poderiam usar o cilindro para melhorar a oxigenação.

A estratégia dos clubes brasileiros na Libertadores é semelhante, embora o tempo de permanência não seja tão curto: o Flamengo desembarcou em Quito na noite de segunda-feira (3/4) e fará um treino nesta terça-feira . Como La Paz fica acima de 3.000m, o Palmeiras só chega nesta terça-feira, quando também fará um treino, ficando apenas 24 horas na cidade antes da hora da partida. Ambos jogam neste quarta-feira, dia 5.

Chá de coca

Moradores de cidades localizadas em grandes altitudes e turistas que as visitam costumam mascar folhas de coca ou tomar o chá de coca, usados pela medicina popular tradicional há séculos. Isso porque o chá de coca alivia o mal-estar causado pela altitude, diminuindo as dores de cabeça e a tontura. Por ser um estimulante natural, também reduz o cansaço. E embora não seja um produto proibido, diferentemente de um de seus subprodutos, a cocaína, hoje em dia os atletas não podem aproveitar o alívio por ele proporcionado

Isso porque houve, ao longo das últimas décadas, vários casos em que jogadores foram pegos no doping por cocaína depois de terem supostamente apenas consumido o chá. Um caso famoso foi do goleiro brasileiro Zetti, cujo exame de antidoping detectou traços de cocaína em seu sangue em 1993, após ele ter bebido o chá no hotel em que a seleção brasileira estava concentrada em La Paz para o jogo com a Bolívia pelas Eliminatórias da Copa de 94. O caso foi esclarecido e Zetti não sofreu punições.

No entanto, Turibio lembra que hoje em dia as normas do doping não julgam a intenção, mas o doping em si, o que torna o produto proibido para atletas. Não vale o risco, afinal.

Tanto que recentemente, em 2017, O atacante peruano Paolo Guerrero foi flagrado no exame antidoping em teste feito depois da partida do Peru contra a Argentina, nas Eliminatórias da Copa do Mundo. Ele justificou dizendo que tomou um chá de anis no hotel em que esteve no Peru, provavelmente contaminado ou misturado com chá de coca. Teria sido uma ingestão acidental, mas mesmo assim Guerrro foi punido com 14 meses de suspensão, ficando fora da Copa do Mundo da Rússia em 2018.

Fontes:
Adriano Leonardi é médico do esporte e ortopedista especialista em traumatologia do esporte e cirurgia do joelho. É ainda fundador e ex-presidente da Associação Brasileira de Medicina de Áreas Remotas e Esporte de Aventura (ABMAR).
Mateus Freitas Teixeira é médico cardiologista e do esporte do Vasco da Gama.
Turibio Barros é fisiologista do exercício, tendo atuado no São Paulo Futebol Clube e no Esporte Clube Pinheiros.

Fonte: Globo Esporte