Junior entra na sua casa pela TV há quase três décadas. Certamente você sabe que o comentarista do grupo Globo foi um craque, ídolo do Flamengo e da seleção brasileira. Mas talvez nunca tenha ouvido falar que ele vendeu mais de meio milhão de cópias num samba que uniu a nação em torno do futebol encantador do Brasil de 1982.
Menos ainda sabe que Leovegildo Lins Gama Júnior nasceu em João Pessoa, veio para Copacabana ainda criança e seguia a carreira de estudante de administração de empresas quando decidiu se arriscar nos campos.
O Capacete, que mais tarde também ficou conhecido como Maestro, jogou até os 47 anos em alto nível na praia, sua primeira e grande paixão. Conheceu a esposa num pagode às vésperas de viajar para a Espanha. Sofreu ofensas racistas em campo na Itália e alimentou as chances de ir para a Copa de 1994, a do tetra, até leve atrito com Zagallo próximo do Mundial.
Na semana passada ele completou 70 anos em viagem a trabalho na cobertura da Copa América nos Estados Unidos e repassou a trajetória no Abre Aspas do ge .
ge: como você chega aos 70 anos?
Junior: — Se tem uma palavra que eu posso falar é gratidão. Eu consegui fazer aquilo que gostaria, que é uma coisa muito difícil você trabalhar naquilo que você gosta, tendo resultados, tendo alcançado objetivos e principalmente ter o reconhecimento das pessoas pelo trabalho que foi desenvolvido e que foi feito. É realização junto com gratidão, porque nessa trajetória toda foram muitas pessoas que, desde lá de trás, quando a gente começa, que te ajudaram.
Como se relaciona com essa passagem do tempo?
— Talvez até pelo fato de eu ter tido uma longevidade acima da média dos meus contemporâneos, não sofri tanto. Parei de jogar em 1993. Mas no mesmo ano começou o futebol de areia. Pude prolongar minha carreira, até os 47 anos ainda estava competindo. Tive um processo bem tranquilo. É lógico que existem os limites em função da questão física. Eu brinco sempre, toda vez que eu entro no Maracanã. A gente fica pensando: "caramba, o Maracanã está cada vez maior. Como é que a gente virava o jogo de um lado para o outro, né?" Lógico, muito menos idade, você estava preparado pra aquilo ali. Eu procuro, por uma questão de saúde, sempre fazer alguma atividade física. Seja jogando um vôleizinho na praia, seja andando de bicicleta, sempre fazendo alguma coisa, porque eu acho que o próprio corpo da gente, quando você passa muito tempo fazendo essas coisas, sente falta. E eu sinto falta. Quer dizer, para mim foi tranquilo, não tive, vamos dizer, esse problema de "ah, porque vou chegar aos 70..." Se eu estou chegando aos 70 anos bem, então é exatamente porque eu devo ter feito alguma coisa lá atrás que me deu essa possibilidade.
No fim de carreira, o Fernando Vannucci falava muito "Junior, o Vovô-garoto". Incomodava?
— Muito pelo contrário, quando o Fernandinho falava isso, o vovô-garoto, que não era pejorativo, ele estava exaltando um cara com mais idade e ainda conseguindo acompanhar principalmente a rapaziada mais nova. Isso veio também até mesmo pelas companhias que eu tive no final de carreira. Júnior Baiano, Djalminha, Marquinhos, Nélio, Piá, essa molecada toda. Quer dizer, a cabeça vai tentando acompanhar um pouco tudo aquilo que eles faziam.
O apelido de Maestro também já surgiu mais velho e reflete bem essa fase né?
—Acho que os grandes responsáveis (pelo apelido) foram exatamente os garotos, essa molecada toda ali, né? Porque pra que eu pudesse ter rendimento, comportamento forte naqueles anos, eles foram grandes responsáveis não só dentro de campo, mas fora também. Porque eu acho que era uma obrigação, não só minha, mas também dos mais velhos, por tudo que a gente armazenou durante a nossa carreira, poder passar para esses caras. Dizer para eles da importância, a dimensão que era jogar no Flamengo e buscar objetivos, como a gente alcançou durante aquele período. E eu acho que essa obrigação, ela se transforma numa coisa extremamente gratificante. Eu acho que o fato de estar com eles no dia a dia, de orientar, principalmente, e dizer pra eles.
— Eu era o irmão mais velho deles. Porque eles estavam começando uma coisa que eu já estava terminando. E contava histórias pra eles. A gente teve a sorte de ter um treinador, um cara também que os conhecia muito bem, que era o Carlinhos. Quer dizer, as coisas se encaixaram de uma forma que a gente pode conduzir, de uma maneira, que até hoje a gente tem o nosso grupo no celular, a rapaziada se fala, caso alguém tenha alguma dificuldade, alguma coisa, a gente mantém o contato.
Você veio de João Pessoa, na Paraíba, para o Rio com cinco, seis anos. Lembra de alguma coisa dessa transição? Seu pai cuidava da fábrica de azulejos do seu avô.
— Lembro de pouca coisa. O meu avô tinha essa fábrica de azulejos, era mestre de obra. E quando ele faleceu, deixou para o meu pai. Só que o meu pai não tinha tino comercial. Quem não tem tino comercial, normalmente, não consegue continuar com o negócio. O meu avô vendeu e a gente se transferiu, a família, aos poucos veio para o Rio.
— Eu morava na rua Domingos Ferreira, em Copacabana. Quando cheguei eu era muito pequeno, as coisas só foram acontecendo, na verdade, 3, 4 anos depois.Comecei a sair de casa com o meu irmão mais velho. Ele jogava no infantil do Juventus (da praia), então eu o acompanhava para ver os jogos na praia. Ali você vai tomando gosto. É aquela coisa que a gente nem sente quando acontece. Quando eu tinha 9 para 10 anos já estava jogando no infantil do Juventus.
Você tinha mais paixão pelo futebol de praia do que do campo?
— Tinha não, tinha não... Tenho, porque até hoje o nosso pessoal lá do Juventus, lá de Copacabana, a gente tem uma pelada. Na verdade a pelada é um motivo pra gente se encontrar, que é tudo amigo de mais de 50 anos, que crescemos juntos ali em Copacabana. E aí a gente se junta pra jogar essa peladinha, mas na verdade é pra tomar um chope depois e falar um pouco da vida. E o futebol de praia para mim foi a primeira grande diversão que eu tive. Acompanhando o meu irmão, conhecendo as pessoas. Eu não gostava muito de jogar futebol de campo, porque as chuteiras naquela época eram muito arcaicas mesmo. Toda vez que eu calçava uma chuteira era bolha pra tudo quanto é lado, quer dizer, eu não me ficava muito à vontade, mas por contingências da vida acabei indo para o campo.
Você também se apaixonou cedo pelo samba. Como entrou a música na sua vida?
— Meu tio Vavá, irmão da minha mãe, fazia umas rodas de samba em casa. A gente já tinha essa idade (de acompanhar), mais ou menos. Quando minha mãe deixava a gente ficar acordado, eu ficava acompanhando ele. E ele tocava muito bem pandeiro. Eu aprendi a tocar olhando ele tocar. Outra coisa que veio junto também foi o fato de, como a gente morava ali perto da Ladeira dos Tabajaras, tinha a escola de samba, a Vila Rica lá em cima. Então muita gente que morava lá no morro jogava com a gente no Juventus. Quando começava o período de Carnaval, dos ensaios, a gente ia lá para cima, para a quadra. O futebol e o samba começaram juntos na minha vida.
Você chegou a iniciar faculdade de administração e sempre teve marcação dura em casa para estudar. Era coisa da sua mãe?
— Minha mãe trabalhou no Banco Nacional de Habitação, o BNH, durante um bom tempo, era Caixa Econômica Federal, depois trabalhou no BNH. Esse era o compromisso que a gente teve que assumir junto com ela. Porque nunca teve esse negócio de "ah, não vai jogar futebol", isso nunca teve. A obrigação primeiro, na verdade a prioridade, pode colocar assim, era o estudo. Tanto que eu fiz Primário, Ginásio, Científico na época sem repetir de ano. Era aquele 5,5 ou 6 que passava de ano. E tinha a grande paixão que era exatamente futebol, mas o boletim no final do ano ele tinha que ficar azul, senão... Se fizesse alguma coisa errada, a primeira coisa cortada era a bola. "Não vai jogar na praia". "Não vai jogar salão, não vai fazer nada disso". Era a forma que eles encontraram, na verdade, para que a gente tivesse responsabilidade.
Como foi sua chegada no Flamengo ?
— Eu tinha feito teste no Botafogo, levado pelo Neném Prancha, que era muito amigo do Tião, que era dono do Juventus, né? Fiquei um período no Botafogo. Depois fui levado pelo irmão do Giulite Coutinho, que era nosso vizinho, para ficar no América. Mas, na verdade, já estava desistindo porque a concorrência era grande, as dificuldades eram grandes e tal. E eu já estava com 18 pra 19 anos. Aí eu resolvi, "vou parar, vou fazer vestibular". Mas terminou um amigo do meu tio, que jogava vôlei com ele na (rua) Constante Ramos, "ah, vamos lá no Flamengo , vou te levar, o (Modesto) Bria (ex-jogador e treinador paraguaio) é meu amigo..." Eu fui muito mais pra agradar meu tio.
— No primeiro dia para ir ao teste, o seu Bria olhou pra mim - eu com aquele cabelo black power: "isso aí é guitarrista ou é jogador de futebol?" E eu pensei: "meu Deus do céu, onde é que eu fui meter?"
— Aquilo foi uma forma até de descontrair, porque o seu Bria foi muito importante quando cheguei no clube em 1973. Ele e o Jaime Valente me convenceram a mudar de posição, porque eu jogava no meio de campo e tinha feito jogo no juvenil de lateral-direito: "ó, você está na idade que vai subir para o profissional, a concorrência no meio-campo é muito grande e a lateral direita tá com uma certa carência". Terminei aceitando. Eu joguei o segundo turno todo do Campeonato Carioca como lateral-direito e no final do ano subi para o profissional como lateral-direito..
Você estudante na facultade certamente teve que fazer escolha difícil para conciliar estudos e uma vida de jovem em Copacabana e o futebol, que requer sacrifícios. Como foi isso?
— Na verdade, o diabinho ficou aqui, né? No ombro.Eu treinava no sábado de manhã. E de tarde tinha os jogos do Juventus, na praia. Quando eu estava indo pra concentração, o pessoal estava no bar. Normalmente comemorando. Eu ia para a Atlântica, pegar um ônibus para São Conrado. E a galera com aqueles convites de sempre (risos).
— Só que, na minha cabeça, era questão de oportunidade. Depois eu não teria mais em função da idade. Isso que me moveu de não parar ali. Conheci muitos outros que tinham condição de serem profissionais só que se deixaram levar por essa fragilidade, entendeu? Eu acreditei sempre que poderia. Até mesmo pelas pessoas que me orientavam. Para estudar eu tinha oportunidade depois. Mas mesmo assim eu terminei passando para administração, fiz quatro períodos na Cândido Mendes... Só larguei porque em 1976 eu fui convocado para a Seleção Olímpica. Ia ficar um grande período fora. E eu me lembro que o reitor se chamava Sérgio Pereira. Eu falei: "vou ter que trancar a faculdade." Ele falou: "não, a gente ajuda daqui, ajuda dali. Dá pra você continuar". Eu falei: "não dá, pô. Vou fazer um mês de excursão. Depois de tem mais dois meses e pouco com a preparação para Olimpíada." Mas eu falei: para estudar eu vou ter tempo, essa oportunidade que está aparecendo para mim, não sei se vai acontecer novamente. De repente eu até volto, mas não consegui voltar, porque depois a carreira deslanchou.
Você desenvolveu praticamente uma ambidestria. Como treinou para se tornar lateral-esquerdo?
— Eu usava a perna esquerda para fazer lançamentos, para chute a gol, mas era muito mais para passar com a perna de apoio. Estava há dois anos no profissional na lateral direita, aí me aparece doutor Francisco Horta com aquela história do troca-troca. Só que ele manda para o Flamengo o Toninho Baiano, que era jogador de seleção brasileira. Eu falei: "caramba, agora que estou ambientado, vou ter que esperar. Chegou um cara com muito mais bagagem que eu". Só que nesse período o nosso treinador era o Carlos Fromer. Ele me perguntou se eu jogaria na lateral esquerda. Eu falei: "posso tentar, mas nunca fui lateral-direito, agora o senhor está querendo que eu vá para a esquerda..." E tinha o Vanderlei (Luxemburgo). Ele jogou o primeiro tempo num jogo contra o Brasil de Pelotas e eu joguei o segundo tempo. Aí vi que tinha condição. Só que eu tinha essa dificuldade muito grande de chegar na linha de fundo e fazer o cruzamento com a esquerda. Tinha um paredão de madeira lá na Gávea, que a gente ficava batendo - como se fosse de tênis mesmo. Fui treinando, praticando. Até o dia que você consegue fazer o cruzamento do jeito que você quer. Terminei até batendo córner de canhota.
Sócrates uma vez disse você era o mais completo entre todos os craques de 1982. Concorda?
— O Magrão era amigo mesmo (risos). Eu fui aperfeiçoando, vamos dizer, todos os fundamentos pelo fato de ter começado na praia e como ponta-direita. Depois passei a jogar no meio de campo, quando fui para o campo fui para a lateral. Joguei bom tempo futebol de salão no qual você precisa ter noção de marcação. Tudo isso me ajudou para que eu pudesse desenvolver todas essas ferramentas para poder chegar onde cheguei. E aquela coisa, eu era bem objetivo. Não coloca desafio que eu topo. Eu fui sempre movido a esses desafios.
— Até mesmo para poder chegar jogando até os 39 anos. Cada contrato que eu renovava eu falava: "vou parar esse ano". Mas aí tinha desafio a mais. E fui movido a esses desafios. Mas o Magrão foi extremamente generoso.
Na final contra o Botafogo, em 1992, são dois dribles seus que parece que transformam aquele duelo. Você nunca encarnou no Renato Gaúcho com aquele lance?
— Nunca falamos sobre aquele lance porque não tem nada a ver, né? Renato era meu vizinho, jogamos juntos na Seleção e tivemos várias passagens. É um lance atípico. Lembro que fui na palestra do Pedrinho Salomão, que é amigo do meu filho, e ele disse: "Eu tenho uma coisa para te contar. Em 1992, eu tinha 12 anos e estava subindo a rampa com meu amigo, nós entramos atrasados, e tinha um senhorzinho na frente quando escutamos esse urro. Encostamos e perguntamos: o que houve, quem foi que fez o gol? E o senhorzinho respondeu: "Não foi gol, não. Foi o velho que deu dois dribles no Renato (risos)".
— Ficou marcado porque o Renato era a grande referência do Botafogo naquele ano. O Botafogo vinha fazendo um ano excepcional em todos os sentidos, e o Renato era o cara do momento. Aquele drible e aquela jogada certamente criaram um clima de confiança na torcida do Flamengo que fez com que o jogo descambasse para um resultado que a gente jamais poderia imaginar, que seria fazer três gols em 23 minutos.
Em 1992, já existia fisioterapia e alguns cuidados. Mas muito pouco comparado a hoje, que tem nutricionista etc. Como eram seus cuidados para chegar com quase 40 bem fisicamente?
— Eu sempre disse para a garotada: você tem hora para tudo. Não adianta você querer fazer uma coisa na véspera do jogo porque a consequência vai ser no dia do jogo. Sempre tive uma vida social tranquila, mas toda regrada. A gente não tinha acompanhamento de nutricionista, no final de carreira já tinha uma pessoa que fazia todo um cardápio para que se pudesse ter o melhor rendimento. Acho que é muito mais orientação de dentro de casa, de fazer as coisas certas nas horas certas. Mais do que qualquer outra coisa, o fato de eu ter começado a jogar na areia desde os 8 anos de idade me deu a possibilidade de passar toda a carreira sem ter um problema de joelho ou tornozelo.
— Eu não machucava, não tive o que meus colegas e amigos tiveram, de ter contusão grave e ter que parar por muito tempo. Nunca tive contusão de ter que parar por um mês. Acho que exatamente porque toda minha estrutura muscular e óssea foi formada na areia. E isso me deu a possibilidade de poder jogar aos 39 anos com um bom nível.
A gente lembrou da final contra o Botafogo, mas em 1989 tem outro jogo marcante em que falavam do Flamengo "dos velhos", com você, Zico, na estreia do Bebeto pelo Vasco. O que lembra daqueles 2 a 0 com gols do Bujica?
— Eu quase briguei com o Valdir Espinosa (risos). Na concentração, ele falou: "Sabe como é que é... Dois caras com 35 anos jogando no meio-campo..." E eu falei: "Ô, Valdir, que história é essa?. E ele: "Não, não dá". E eu: "Como não dá?". Ele: "Então eu vou te botar para jogar de beque central". Eu falei: "Tá de brincadeira, né? De beque central para marcar Bebeto e companhia?"
— Ele falou: "É, po, eu vou deixar o Zico no meio e coloco você ali atrás para fazer a saída de bola". Aquelas coisas de convencimento. Eu falei: "Tá bom, vai ser a primeira e a última". Aí termina com a gente fazendo um jogo realmente espetacular, com o Bujica fazendo os dois gols. Mas não foi a última, não. Depois na despedida do Zico, em Juiz de Fora, contra o Fluminense, eu também joguei de beque central.
— Na Itália, eu tinha jogado de líbero, que é diferente. Eu não precisava sair caçando os centroavantes, ficava muito mais na sobra. Usei um pouco daquela experiência que tive no Pescara, em que joguei de líbero duas vezes. Porque quando o cara ia fazer o lançamento e baixava a cabeça, eu já tinha ideia de onde ele ia lançar. Eu saía na frente, ganhava uns dois segundos, que era o suficiente para poder ganhar dos caras muito mais jovens do que eu. Mas aquele jogo ficou marcado porque os dois veinhos de 35 anos conseguiram dar conta do recado.
Você gravou antes da Copa de 1982 o samba que marcou aquela geração. O "Povo feliz", do refrão "voa, canarinho, voa". Como surgiu aquilo?
— Eu tenho um disco de ouro, de platina, de 500 mil cópias vendidas. É um privilégio. Um dos compositores dessa música é o saudoso Memeco, que foi contemporâneo do meu irmão jogando vôlei. O Alceu Maia, que é meu compadre e jogou salão comigo no Flamengo , recebeu esse cassete e ligou para a Toca da Raposa, onde a gente concentrava: "Pô, cara, tem uma música para a Seleção que é a tua cara. Quem fez foi o Memeco, amigo do teu irmão Lino e do Nonô do Jacarezinho".
— Eu falei: "Pô, Alceu, estou aqui na Toca, a Copa do Mundo é daqui a 15, 20 dias, estou mais preocupado com isso". Ele falou: "Eu vou te mandar, escuta aí". Ele mandou o cassete, e eu chamei o Edevaldo, lateral do Fluminense, meu parceiro. Quando a gente escutou, o Edeva falou: "Isso aí é a tua cara". A gente foi escutando, e o refrãozinho vai entrando na sua cabeça.
— Aí Alceu me liga, e eu disse: "A música é legal, Alceu, mas não tem tempo. Estou aqui treinando, vou chegar na sexta-feira, e a gente embarca domingo para Portugal". Aí ele falou: "Deixa isso comigo, canta o refrão para eu poder pegar o tom". Aí eu cantei o refrão, ele pegou o tom e falou: "Deixa comigo"- E eu estou levando isso muito mais numa brincadeira, num hobby. Cheguei na sexta-feira e tinha um pagode na Bartolomeu Mitre, no Bar do Kalil, e lá tinha o Telinho, que tocou cavaquinho com a gente lá no Japão. Fui com o Edevaldo. Por coincidência, nesse dia conheci minha mulher. A gente ficou e se conheceu nesse dia.
— No outro dia, eu tinha que gravar e botar a voz. O Alceu falou: "Fica devagar na sexta-feira porque você vai botar a voz no sábado de manhã". Falei: "Tá legal, Alceu". Que nada, emburaquei no pagode, cheguei em casa três ou quatro horas da manhã. E de manhã cedo já estava na RCA Victor para gravar de manhã.
Mas saiu boa a gravação...
— Quando chego na gravadora, eu ainda estava com a voz quente do pagode do dia anterior. A gente matou o negócio e, em três ou quatro horas, o disco estava pronto. Eu sempre digo que o "Voa, Canarinho" ("Povo feliz") pegou uma senhora carona na seleção brasileira. Conforme ia ganhando, os caras iam me mandando um telex: "Aí, já vendeu 150 mil". Eu não tinha ideia o que era aquilo. As pessoas foram me falando: "Você sabe o que é isso, cara?". Terminou com o disco vendendo 750 mil cópias em 23 dias, que foi o período do início da Copa até sermos eliminados.
Como é a história do Moisés, zagueiro, que ficou na bronca com você?
— (Risos) Quando eu volto da Copa do Mundo, encontro o Moisés, o Xerife (zagueiro). E o Moisés diz: "Pô, você me arrebentou, cara". Eu falei: "Eu, cara? Faz tempo que eu não te vejo". Ele falou: "É, sabe por quê? Eu ia na Zona Sul, comprava aquele monte de disquinho, levava para a Zona Norte, vendia pelo dobro do preço e ia me arrumando. Quando vocês perdem para a Itália, eu tinha comprado uma quantidade que pensei que ia me dar bem. Aquela porcaria encalhou, eu tive que sentar no meio-fio e pegava aqueles disquinhos e dizia "Voa, seu canarinho filho da mãe" (faz o gesto de arremessar o disco). Eu falei: "Bem feito, você não me pediu autorização para vender os discos" (risos).
Hoje existe muito esse debate sobre comportamento de jogador fora de campo, se isso tira foco, etc. Isso também aconteceu naquela época. Você escutou muito isso em 1982?
— É normal. Mas um problema muito grande é que eu não recebi um centavo de direito autoral da música que vendeu discos e era tocada nas rádios. Quem falou isso foi o cara que era o presidente do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) na época. Ele dizia: "O cara quer cantar em vez de jogar bola". Que que tem uma coisa a ver com a outra?
— Eu tinha direito a receber e recebi da gravadora, a RCA Victor. O negócio não era para mim porque eu tinha outro atividade, mas sim para os compositores. Eles, sim, deveriam ter recebido pela quantidade de vezes que a música foi tocada no Brasil todo. E não era pouca coisa, não, a receber. Infelizmente faleceram os dois e não receberam os direitos que eram devidos através da música.
Você também gravou o CD do centenário do Flamengo . Como foi?
— Ali foi o seguinte: somente trabalhou naquele CD quem era rubro-negro. Tanto que teve muito amigo que ficou na bronca. A gente chama João Bosco, Ayrão, Neguinho da Beija-Flor, Bebeto... Tem uma música que adoro que é Flamengo e Mangueira, que essa é um pouco da minha vida. Fala exatamente da paixão pelo clube e pelo samba. Eu adoro aquele CD. É um CD que as pessoas até hoje procuraram exatamente porque tem um lado muito sentimental em relação ao clube.
A gente falou pouco da sua passagem pela Itália, que também foi importante, depois da Copa. Eu li em entrevista que você sofreu episódio duro de racismo lá. O que aconteceu?
— Eu era do Torino e a torcida da Juventus, no dérbi da cidade (de Turim), colocou uma faixa: "Junior negro sujo". Aí meu colega falou: "Você já viu aquela faixa?". E eu disse: "Ah, deixa isso pra lá, a gente tem que jogar e ganhar o jogo". Termina, a gente ganha o jogo, e um jornalista vem e me pergunta: "Você viu a faixa?". E eu respondo: "Melhor ser negro sujo do que ser juventino". O cara falou: "Ah, é assim?". E eu falei: "É assim". Ofensa vai por ofensa. Hoje eu não responderia dessa forma, mas foi a única maneira que encontrei de retribuir a ofensa que tinham feito à minha pessoa.
Você foi a duas Copas, mas tinha esperança em 1990 e até em 1994?
— Quando o treinador na Seleção, no caso o Lazaroni, diz que não vai olhar para idade e vai dar possibilidade para todo mundo, e você jogando num bom nível, naturalmente você alimenta a esperança de fazer parte. Até mesmo porque na despedida do Zico em Udine teve uma convocação oficial da seleção brasileira, e eu estava lá. Joguei aquele jogo. Depois as escolhas foram outras, lógico que você fica meio chateado porque você passa fazer certas coisas com a esperança de poder acontecer, mas sabe que isso e injustiças fazem parte do futebol. E acontecem muito.
— Depois, em 1992, eu fiz parte do grupo que jogou eliminatórias. Participei da formatação daquele grupo. Teve torneio nos Estados Unidos, excursão para a Europa. Mas no jogo contra a Inglaterra, o Zagallo falou para mim: "Em 1994, não vai ter ninguém com 40 anos jogando no meio-campo e tal".
— Respondi: "Não estou entendendo". Ele falou: "Não é?". Falei: "Não sei, estou aqui em atividade e ainda fazendo a minha parte". Terminou com eles fazendo outras opções.
— Não estou dizendo que iria para jogar, mas que eu poderia estar no grupo contribuindo, eu poderia. Terminou que eles me chamaram para participar do grupo em outra função, que era de observador. Tive uma conversa com o Parreira, ele perguntou se eu gostaria de ir, eu estava como treinador do Flamengo . Eu falei: "Claro, vai ser uma experiência legal, vou fazer outra função e vou ver a coisa como funcionar". Terminou sendo uma experiência extremamente agradável, até porque o objetivo foi alcançado, que era ser campeão.
Como foi estar naquele grupo, por que na época existiu um debate inflado até na imprensa de choque de estilos - 1982 x 1994? Romário chegou a falar em geração perdedora... Houve conversa entre vocês, houve algum problema?
— Não, zero (problema). Isso foi declaração externa. Nunca escutei isso. Comigo nunca teve esse problema. Até mesmo porque esse tipo de discussão eu não vou entrar, jamais. Cada um pensa aquilo que acha.
— Você pode ser vencedor sem ganhar título. E isso tenho certeza que a gente foi. É lógico que nós gostaríamos muito de ser campeões do mundo. Mas você ser vencedor sem ganhar título não é fácil. Quando você vê o maior de todos, dos últimos tempos, o Pep Guardiola, falar que o avô e o pai falavam daquela seleção de 1982 já reconforta um pouco. Se o maior de todos fala isso, não tem motivo nenhum para que qualquer um daqueles que participaram daquela seleção se sintam inferiores.
Numa entrevista um tempo você disse que ali, no Sarriá, aprendeu a jogar com o regulamento, pois o Brasil precisava do empate. Foi uma lição?
— Aquele time foi orientado e marcado para jogar de um jeito. Episódios durante o jogo terminaram fugindo completamente daquilo que foi planejado. Não vou falar dos episódios, mas quem acompanhou viu. Naturalmente isso tem peso grande no final. Pelo que vinha se fazendo e pela evolução durante a competição, isso deixa um pouquinho de "será que?". O "se" não adianta, tem que ser no momento. Falavam do Batista, e o Batista não estava nem no banco.
— (O Brasil) ia jogar 50 vezes naquele dia, mas acho que infelizmente a coisa não iria acontecer.
Você foi treinador em passagens curtas, mas nunca pensou em seguir carreira?
— Nunca tive essa vontade de virar treinador. A minha ideia maior, como vi em alguns trabalhos durante cinco anos na Itália, era o trabalho de diretor esportivo, que é o cara que monta a comissão técnica e, junto com ela, monta o elenco de jogadores para disputar a temporada. Era uma coisa que me fascinava muito mais e que acabou acontecendo só lá em 2004 com a ideia do Márcio Braga de fazer o Fla Futebol, um departamento todo profissional.
Mas você foi treinador do Flamengo pouco depois de parar. Como te convenceram?
— Vieram na minha casa Cantarele, que era treinador de goleiros, com Paulo Angioni e o Paulo Dantas, que foi meu vice-presidente nas grandes conquistas do clube. Disseram: "Só tem você para assumir aquilo ali". Eu disse: "Gente, vocês estão de brincadeira comigo. Primeiro que eu não fui preparado para assumir uma coisa desse tipo". Uma coisa é você ser líder, outra é você ser comandante. Aí eles falaram: "Só pode ser você". Terminei aceitando.
— Primeiro dia de treinamento estão na porta do vestiário Junior Baiano, Marcelinho e Marquinhos. Quando estou chegando para entrar no vestiário, não sei qual deles falou: "Ih, lá vem o homem". Eu falei: "Que homem, cara?". É o mesmo homem que há dois meses estava com vocês aqui.
— A cabeça de quem está do outro lado começa a funcionar de outra forma. Tinha o Cantarele, que era um amigo de muito tempo e ajudou nesse período. A gente vai tentando ajustar as coisas com pessoas que têm mais experiência. Fui pego meio de surpresa até aparecer o convite do Parreira para ir trabalhar na seleção brasileira durante a Copa de 94. Acho que isso veio em função até mesmo das boas apresentações que o Flamengo fez durante aquele período, inclusive fazendo com que tivesse um pouco de visibilidade porque foram resultados bastante expressivos logo no início.
Acha que um título da Supercopa ou do Brasileiro de 1993 salvaria aquela geração?
— Não sei seria o suficiente para eles permanecerem no clube, porque naquele período já tinham saído Leonardo, Zinho e depois Djalminha e companhia. O clube passava por um período financeiro bastante complicado. Na verdade, essas vendas foram para tapar alguns buracos naquele momento. Não sei, mas que eles mereciam, mereciam. Principalmente pelas campanhas, ainda mais na Supercopa, em que a gente fez dois ótimos jogos com o São Paulo e acabou perdendo nos pênaltis.
Depois de parar, você se torna comentarista de futebol. Existiram espinhos nessa transição?
— Não era normal jogadores se transformarem em comentaristas naquele período. Eu tinha tido experiência lá na Itália, comentei alguns jogos da Liga dos Campeões da Uefa. Comentei alguns jogos com a RAI e com a Telemontecarlo, que era uma repetidora da Globo. Tinha o Ricardo Pereira como diretor, e ele me chamou algumas vezes para eu comentar. Eu até gostava porque sempre fui um cara que busquei o lado tático do jogo. Aquilo ali me deixava bastante satisfeito. É lógico que o maior prazer é jogar. Depois as coisas foram acontecendo naturalmente.
— Em 1995, foi a minha primeira participação comentando em alguns jogos da Supercopa da Libertadores. O segundo jogo da final do Campeonato Brasileiro em São Paulo, entre Santos e Botafogo, eu já estava comentando pela TV Globo juntamente com o Galvão. Aí em 1998 foi quando eu fui contratado pela primeira vez para trabalhar na Copa do Mundo. Foi quando o Armando falou comigo isso de "elogiar sem bajular, criticar sem ofender". E ele falou para mim muito mais no sentido de ser um ex-jogador, porque talvez isso não servisse muito para um jornalista, mas para um ex-jogador. Para um ex-jogador serve muito, acho que é uma linha que a maioria dos ex-jogadores que se transformam em comentaristas precisam ter isso na ideia.
Isso era algo que te preocupava?
— Porque você já passou por essa situação. Eu falo sempre o seguinte: se você pode fazer uma colocação que "hoje o fulano não está bem" é diferente de "hoje o fulano está mal". Isso soa diferente no ouvido da mulher, da mãe, da namorada e de qualquer. Acho que como os jogadores estão sempre na mira de todo mundo, quando você tem uma palavra um pouco menos agressiva te ajuda, te humaniza. Teu comentário fica muito mais humanizado. Não é que estou dizendo que quem faz diferente está errado. É um estilo. Eu procuro, através dessa frase que o Armando falou, seguir um pouco essa linha. Já tem bastante tempo que sigo essa linha. Acho que fui pela linha correta, independentemente de qualquer coisa.
Obviamente você é identificado com o Flamengo , mas respeitado pelos torcedores. A que atribui?
— Eu sou pago para comentar, não sou pago para torcer. É para ver, analisar e buscar para quem gosta de futebol uma alternativa ao pensamento do cara. Porque tem muita gente vendo o jogo querendo que você diga aquilo que ele gostaria. Às vezes não é assim. Você tem formas e formas de fazer essas colocações. O grande lance é você procurar simplificar um pouco.
— Lógico que o cara que vai assistir a um canal de esporte, ele está querendo assistir ao futebol. Se você está num canal que não é somente de esportes, tem variedades, é preciso ter um coloquial diferente. Nem todo mundo está ali para assistir ao futebol, está por uma circunstância.
— Já num canal de esporte você pode falar de tática e ir muito mais pelo lado técnico porque as pessoas estão ali solícitas para que você fale alguma coisa. Não vou dizer que é fácil ainda mais hoje com rede sociais, mas acho que se você for por uma linha simples e objetiva, as chances de poder dar certo acho que são muito grandes.