Hillsborough e Garotos do Ninho, as tragédias que unem Liverpool e Flamengo na dor

Vencer, conquistar, celebrar... sem esquecer do luto. O ano de 2019 fez o Flamengo conviver com sentimentos extremos. Em campo, a alegria dos títulos carioca, brasileiro e da Libertadores, que pode ter seu ápice neste sábado, na final do Mundial de Clubes . Fora dele, a temporada ficará eternamente marcada pela morte dos Garotos do Ninho, as dez vítimas do incêndio no CT rubro-negro, dia 8 de fevereiro. Aprender a conviver com a dor de uma tragédia é algo que acompanha o Liverpool há 30 anos, desde que 96 torcedores morreram no estádio de Hillsborough, antes da semifinal da Copa da Inglaterra de 1989.

Tragédias de Hillsborough e do Ninho do Urubu unem Liverpool e Flamengo na dor — Foto: Arte: Infoesporte

Tragédias de Hillsborough e do Ninho do Urubu unem Liverpool e Flamengo na dor — Foto: Arte: Infoesporte

A década de 80 foi especialmente trágica para o Liverpool, e a derrota por 3 a 0 para o Flamengo na final do Mundial de 1981 significa muito pouco diante de dramas verdadeiramente devastadores. Perdas que não permitem revanche. O primeiro grande desastre envolvendo o clube aconteceu antes da final da antiga Copa dos Campeões da Uefa (precursora da Champions League) em maio de 1985, mas a dor maior estava do outro lado: centenas de torcedores da Juventus foram pressionados contra um muro do estádio de Heysel, na Bélgica, por torcedores do Liverpool que invadiram o setor adversário, deixando 39 mortos e cerca de 600 ficaram feridos, a maior parte torcedores da equipe italiana.

A tragédia de Heysel levou a Uefa a banir clubes ingleses de competições internacionais por cinco anos. Mas não foi capaz de fazer a Inglaterra rever sua política de segurança de estádios. Até o dia 15 de abril de 1989. Liverpool e Nottingham Forest disputariam a semifinal da Copa da Inglaterra no estádio de Hillsborough, em Sheffield. A superlotação em dois setores da arquibancada e erros na contenção dos distúrbios por parte das autoridades causaram a morte de 96 torcedores do Liverpool, e deixaram mais de 700 feridos.

O desastre é tratado como ponto de partida na transformação dos estádios ingleses em símbolos de segurança e modernidade. E se tornou parte importante da história do Liverpool, ainda que pelo mais triste dos motivos. Três décadas depois, o clube inglês ainda relembra e homenageia seus mortos, e luta ao lado das famílias por punição aos responsáveis - o processo ainda se arrasta nos tribunais, e recentemente o chefe de polícia encarregado da operação na partida foi inocentado da acusação de homicídio.

Mosaico lembra 30 anos da tragédia de Hillsborough — Foto: Reuters/Lee Smith

Mosaico lembra 30 anos da tragédia de Hillsborough — Foto: Reuters/Lee Smith

Para o sociólogo do esporte Bernardo Buarque, pesquisador da FGV/CPDOC, embora Flamengo e Liverpool tenham em comum o luto deixado pelas tragédias, as circunstâncias diferenciam cada situação.

- São casos diferentes, não só em relação ao tempo mas também aos personagens. No caso do Liverpool, o luto tem a ver com os fãs. O clube vinha sendo muito pressionado por conta da tragédia de Heysel, em 85, quando aí sim a torcida do Liverpool teve participação, mas no caso de Hillsborough, foi mais uma questão de gestão de multidões, e a responsabilidade recaiu mais sobre as autoridades públicas.

O debate em Liverpool é em relação a essa cicatriz que ficou. Para o Flamengo é mais difícil, porque a tragédia foi nas dependências do clube, com atletas da base - observa Buarque.

O jornalista inglês Ian Doyle, do Liverpool Echo, principal jornal da cidade, também destaca as diferenças entre os desastres, mas acredita que o Flamengo pode, de alguma maneira, aprender com o exemplo inglês.

- As lições que o Flamengo pode tirar são difíceis de determinar. Uma coisa que definitivamente ocorreu após o desastre de Hillsborough é que o clube começou a ouvir mais seus torcedores e desenvolveu uma forte ligação com eles. O Liverpool, como clube, sempre deu suporte às famílias das vítimas, assim como aos sobreviventes. Nem sempre foi perfeito mas eles sempre tentaram fazer o melhor. Este pode ser um caminho que o Flamengo pode seguir.

Mas não existe um caminho apenas. Cada situação é diferente, tem a ver com compaixão e compreensão humana, tem a ver com nunca esquecer o que aconteceu e sempre lembrar das vítimas - afirma Doyle.
Homenagem garotos Ninho do Urubu Maracanã Fla-Flu Torcida — Foto: André Durão/GloboEsporte.com

Homenagem garotos Ninho do Urubu Maracanã Fla-Flu Torcida — Foto: André Durão/GloboEsporte.com

Em cada jogo do Flamengo no Maracanã, a torcida rubro-negra canta aos dez minutos uma música em homenagem às vítimas do incêndio no CT. Lidar com o luto e a dor passa também pela perpetuação da memória dos mortos, observa Bernardo Buarque.

- Uma das primeiras imagens quando você entra no Museu do Liverpool é logo da tragédia de Hillsborough, e acho que isso é muito digno da parte do clube, eles não escondem essa tragédia da sua história. Isso virou uma marca até mesmo para a cidade. Sabemos que o Flamengo está projetando construir um grande museu, como os dos grandes clubes europeus, e me parece que o mínimo que podem fazer é uma homenagem a esses meninos do Ninho nesse futuro museu, para preservar e materializar esse memória.

Que o clube tome para si essa parte da memória e não omita esse triste episódio. Quando você lembra sua história, você narra as alegrias e também as tristezas.

Oito meses após o incêndio no alojamento das categorias de base no Ninho do Urubu, o Flamengo ainda não resolveu completamente a questão das indenizações às famílias dos dez meninos que morreram - por enquanto, houve acordo com apenas quatro famílias. Para Bernardo Buarque, somente a conclusão definitiva das pendências pode diminuir o impacto da tragédia na imagem do clube carioca:

- Para a opinião pública, fica a ideia de que o clube foi burocrático, até porque é impossível mensurar quanto vale uma vida. O Flamengo deveria ter sido mais propositivo, não apenas esperar que se resolva na Justiça. É um clube que vem sendo superavitário, que se descolou dos outros clubes nesse sentido, então fica esse contraste por não ter conseguido chegar a um acordo com as famílias.

Landim: "Estamos fazendo o melhor"

No Catar, em entrevista ao repórter Eric Faria antes da estreia do Flamengo no Mundial, com vitória por 3 a 1 sobre o Al Hilal, o presidente do clube carioca, Rodolfo Landim, garantiu que a diretoria tenta resolver da melhor forma possível a questão.

- O processo judicial, às vezes, é lento, mas a torcida do Flamengo pode ficar muito tranquila em relação à forma como o Flamengo está conduzindo esse processo. Se a gente for ver os casos que existem dentro do Brasil, as instituições envolvidas elas se afastam, não tentam indenizar num primeiro momento, estendem esse processo na Justiça por anos. Nunca foi esse o interesse do Flamengo e acho até, como forma de reconhecimento, das famílias também. Hoje, só uma família, aliás meia família entrou na Justiça contra o Flamengo. Metade de uma das famílias aceitou o nosso acordo, e a outra metade não aceitou e entrou na Justiça.

Eu, como administrador do clube, tenho a consciência tranquila de que nós estamos fazendo o melhor, o que nós estamos nos propondo fazer é mais do que justo - disse Landim.

Sábado, a torcida do Flamengo pode celebrar novamente, depois de 38 anos, sua mais importante conquista, o título mundial de clubes. E, assim como na festa pela Libertadores, a memória dos Garotos do Ninho certamente será resgatada. Sentimentos distintos que o rival na decisão de sábado teve de aprender a equacionar há 30 anos. Suspensa pela tragédia de Hillsborough, a semifinal da Copa da Inglaterra de 1989 entre Liverpool e Nottingham Forest foi disputada apenas três semanas depois, no Old Trafford. O Liverpool venceu por 3 a 1, e duas semanas depois conquistou o título ao bater o Everton por 3 a 2 na decisão, em Wembley. A primeira conquista após o desastre, ocorrido 35 dias antes.

- Muitas pessoas e alguns jogadores ainda acreditam que a competição não deveria ter continuado após o que aconteceu em Hillsborough, e muitas pessoas envolvidas no caso ainda se sentem mal pelo Liverpool ter tido que jogar em um curto período os jogos que faltavam até o fim da temporada. O Liverpool acabou perdendo o título inglês, sendo derrotado pelo campeão Arsenal com um gol no último minuto. Nove meses depois, o técnico Kenny Dalglish pediu demissão devido ao estresse, em parte por causa do impacto emocional de ter comparecido a tantos funerais de vítimas de Hillsborough e ter dado apoio pessoal a tantas famílias. Ao longo dos anos, ficou claro que o desastre de Hillsborough estava tendo um efeito nas pessoas que não foi compreendido na época - relembra Doyle.

Para o Flamengo, resta o dilema de guardar na memória uma temporada marcada por títulos em campo e uma tragédia que ficará para sempre na história do clube.

- Num ano impressionante de conquistas, em que tudo parece ter dado certo em campo, fica essa mácula que impede que a alegria seja completa - resume Buarque.
Fonte: Globo Esporte
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