Que o casamento entre Flamengo e Jorge Jesus é um sucesso estrondoso até agora, todo mundo sabe. O que poucos sabem, principalmente no Brasil, é que um escândalo no futebol português acabou por ajudar o técnico a dar um salto e mudar de patamar na carreira.
Trata-se do 'Caso Mateus', uma mancha gigantesca na história do futebol luso.
Mas antes de chegar a ele, é preciso contextualizar aquele momento. Era início da temporada 2005/2006, e com cinco rodadas de Campeonato Português , o União de Leiria agonizava: três derrotas (uma delas a goleada por 4 a 0 para o Benfica) e dois empates, com apenas um gol feito e oito sofridos. Logo, dois míseros pontos ganhous em 15 disputados.
O presidente João Bartolomeu, então, demite o técnico José Gomes e contrata... ele mesmo, Jorge Jesus. Era já o oitavo clube diferente da carreira de 15 anos como treinador do filho de seu Virgolino António de Jesus, que foi atleta do Sporting, iniciada em 1990 - Amora, Felgueiras, União da Madeira, Estrela da Amadora, Vitória de Setúbal, Vitória de Guimarães, Moreirense e, agora, o time de Leiria.
"Ele chegou no nosso time porque o técnico anterior não estava bem. Ele assumiu o time e disse que iríamos brigar na parte de cima da tabela. Logo nos primeiros treinos, ele já impôs a marca dele em relação aos sistema tático. Eu não o conhecia, mas já diziam que era muito bom quando chegou. E vi que era mesmo", disse ao ESPN.com.br o meia Harison, 39 anos, cria da base do São Paulo da mesma geração de Kaká e que estava no clube português naquela época.
O União de Leiria vinha de um 15º lugar [entre 18 equipes] na disputa nacional anterior, tendo se livrado do rebaixamento por ter somado apenas quatro pontos a mais [38 a 34] que o Moreirense, o primeiro degolado [Estoril e Beira-Mar, cada um com 30 pontos, foram os outros que desceram].
Jesus faz milagre
"Na época 2005/2006, acabam finalmente os percursos montanha-russa, ou seja, ficam para trás, em definitivo, as subidas e descidas, o viajar entre a Primeira e a Segunda [divisões da] da Liga. A partir deste momento, mágico, começa a caminhada, sempre a subir, de Jorge Jesus", escreveu Luís Garcia na página 39 do livro 'Jorge, amado e desamado - A incrível história do treinador do Flamengo', da editora Chiado Books.
Jesus fez aquele time desacreditado de Harison, Maciel, Lourenço e companhia jogar. E jogar bem. "Nós fizemos excelentes jogos contra os grandes, como Benfica, Sporting e Porto", recordou o ex-meia do São Paulo.
Duas derrotas apertadas para Sporting [2 a 1 fora e 1 a 0 em casa] e Porto [3 a 1 em casa e 1 a 0 fora] e vitória por 3 a 1 sobre o Benfica que serviu para mostrar naquela 21ª rodada, a quarta do returno, que a equipe era muito diferente daquela que tomara de 4 a 0 no turno, ainda sob o comando do antigo comandante.
Na partida final, o União de Leiria goleou o fraco e já rebaixado Rio Ave por 5 a 2, chegou a 47 pontos e fechou o Português em uma incrível sétima posição - atrás de Porto [campeão], Sporting, Benfica, Braga, Nacional e Boavista.
Era o primeiro grande trabalho de Jorge Jesus.
O escândalo
É no fim daquela temporada que surge o que ficou conhecido como 'Caso Mateus'.
Em campo, Belenenses, Rio Ave, Vitória de Guimarães e Penafiel foram os rebaixados. Mas o primeiro entrou com recurso contra o Gil Vicente , que terminara a disputa em 12º lugar, alegando inscrição irregular do atacante angolano Mateus Galiano da Costa.
Em resumo, o atleta tinha sido registrado como profissional no Felgueiras e quando transferiu-se para o Lixa, foi registrado como amador. De acordo com o regulamento da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), "o jogador que tenha mudado da classe profissional para amador terá de permanecer pelo menos uma época [temporada ou ano completo] como amador".
E aí estava o problema. Não se passara um ano entre o seu registro no Lixa e sua ida para o Gil Vicente.
Tanto a Comissão Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), responsável pelo futebol profissional de Portugal, como o Conselho de Justiça da FPF decidiram por rebaixar o clube gilista, com a manutenção do Belenenses na primeira divisão.
Na área esportiva, estava resolvido. Mas o Gil Vicente recorreu à Justiça comum, e o caso durou anos e anos [leia mais abaixo], com até ameaça da Fifa de impedir a seleção portuguesa de participar de competições.
E é com esta 'virada de mesa' ou 'tapetão' que Jorge Jesus entra na história. Ou se aproveita dela.
A troca Liz por Belém
Após a campanha surpreendente, esperava-se que Jorge Jesus seguisse no União de Leiria.
"No final da temporada, eu lembro que o presidente do clube queria manter o Jesus, mas não conseguiu. Não me lembro de nenhuma conversa antes do final da temporada de que ele poderia ir ao Belenenses", disse Harison.
Mas Jesus foi. Trocou o time de Liz pelo de Belém.
"Recebeu uma proposta de outro clube, muito superior ao que o Leiria poderia pagar", explicou à época o presidente do Leiria, Joao Bartolomeu.
Não foi possível precisar se Jesus acertou com o Belenenses antes ou depois do desfecho do 'Caso Mateus' na esfera esportiva, mas é no clube que ele, enfim, faz sua carreira decolar: com bons trabalhos e, algo primordial, chamando a atenção da imprensa.
É com o que faz na nova casa no Português 2006/2007 que passa a ser tema de grandes reportagens, perfis, ter seu passado de jogador que virou treinador com um convite ainda em campo do presidente rival revelado, etc.
Tudo isto graças ao escândalo!
Ou Jesus teria assumido o Belenenses na segunda divisão? E se tivesse, teria repetido o ótimo trabalho? Ainda que sim, teria tido a mesma atenção da grande mídia, a portuguesa principalmente?
A consolidação
Ok, bom trabalho no União de Leiria, mas agora era preciso provar. Acabar com a gangorra que marcara sua carreira de técnico até ali. E Jesus provou!
"Cheguei neste ano aí, entendeu, ele pediu minha contratação lá, o Jesus. Graças a Deus, a diretoria conseguiu manter o Belenenses na divisão de elite, e nós fomos muito bem no campeonato nacional e ficamos em quinto. Só atrás dos grandes e do Braga", afirmou ao ESPN.com.br o ex-atacante Roma, de passagem pelo Flamengo entre o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000 e que chegou ao time português vindo do Pumas, do México.
E o Belenenses, apesar de não vencer nenhum dos seis jogos contra o trio Porto-Sporting-Benfica (cinco derrotas e um empate), foi bem mesmo. Para um time que acabara de ser rebaixado na bola, terminar o Português com 49 pontos e só atrás das superforças e do Braga (50 pontos) era algo surpreendente.
Destaque para a sequência de sete jogos invicto no segundo turno, da 19ª à 25ª rodada, com seis triunfos e um empate. 19 pontos ganhos em 21 disputados.
Era o trabalho de Jesus se consolidando.
Consolidação que poderia ter sido até coroada com um título. O Belenenses do Mister chegou à final da Taça de Portugal naquela temporada, fez jogo duro contra o forte Sporting, mas tomou um gol do brasileiro naturalizado português Liédson e teve de se contentar com o vice.
"A gente conseguiu acesso para disputar a Copa da Uefa no ano [temporada] seguinte", relembrou Roma, cujo apelido é por conta da semelhança física que tinha com Romário quando chegou ao Flamengo - seu nome é Paulo Marcel Pereira Merabet.
Conseguir vaga para a segunda mais importante disputa continental era um prêmio.
Evolução e língua afiada
Em 2007/2008, nada de trocar de clube. Jesus seguiu no Belenenses e já na pré-temporada mostrou que evoluía também no trato com a imprensa, em saber dar respostas fortes.
Após o amistoso pelo Troféu Teresa Herrera contra o Real Madrid, em 8 de agosto de 2007, que acabou com derrota dos portugueses por 1 a 0 com gol de Robinho já aos 45 minutos do segundo tempo, o técnico não fez questão alguma de se valorizar.
Para isto, atacou o colega de profissão, como bem destacou Luís Gracia em 'Jorge, amado e desamado'. "Com os jogadores que o Real [Madrid] tem é preciso mais. Se não o faz, o problema é do treinador.
"Com os jogadores dele, fazia três no começo, virava com cinco e acabava com dez", disparou na entrevista coletiva.
Falava do ex-jogador e técnico alemão Bernd Schuster.
No Português de 2007/2008, manutenção do bom rendimento para uma equipe como a do Belenenses e sétimo lugar geral, à frente do Braga (oitavo). Na Copa da Uefa [atual Liga Europa], duas derrotas [1 a 0 e 2 a 0] para o poderoso Bayern de Munique, da Alemanha, e eliminação.
"Então, ele quem construiu todo o time, ele quem indicou as contratações e diante disto a gente foi muito bem. O dedo do Jesus. Ele foi muito pontual nas contratações, na direção e logística do clube, e a carreira dele depois disso aí só fez crescer", disse Roma.
Daí em diante, é história bem conhecida. Primeiro, uma temporada no Braga, depois, seis anos no Benfica, outros três no Sporting, algum tempo no Al Hilal, da Arábia Saudita, e o Flamengo.
E o escândalo?
O 'Caso Mateus' seguiu por anos e anos e só chegou ao fim com início da atual temporada do Português. Logo após a decisão no campo esportivo, em 2006, o Gil Vicente recorreu à Justiça comum.
Primeiro, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga rejeitou o pedido alegando considerar o assunto de âmbito desportivo. Mas o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa pegou o caso.
E dez anos depois (!), sim, uma década depois, decidiu em 25 de maio de 2016 que o clube gilista estava certo e que as punições a ele aplicadas deveriam ser anuladas.
Em julho de 2016, foi a vez de o Belenenses recorrer.
A saga jurídica chegou ao fim em 12 de dezembro de 2017, quando os dois clubes assinaram um acordo que previa o acesso do Gil Vicente à primeira divisão do Português na temporada 2019/2020.
No mesmo dia, LPFP e FPF determinaram o retorno da equipe gilista à elite na jornada acordada. Para isto, definiram que três agremiações, e não duas, como de costume, seriam rebaixadas na disputa de 2018/2019.
Ainda assim, viveu-se mais quase um ano e meio de dúvidas sobre o fim do imbróglio, uma vez que vários lados, com novos participantes, inclusive, não concordaram com a decisão final e sentiram-se desrespeitados, como mostrou excelente reportagem do fim de março deste ano do portal português SAPO .
E assim foi: Chaves, Nacional e Feirense caíram; Paços de Ferreira e Famalicão ascenderam da Segunda Liga, nome da segunda divisão portuguesa; e o Gil Vicente completou a trinca, vindo do Campeonato de Portugal de 2018/2019, disputa referente à terceira divisão do país - todos os seus resultados foram ignorados para efeito de pontuação.