O poeta Pedro Rocha, 42, carrega dois fascínios desde a infância: o candomblé e o vermelho e preto da camisa do Flamengo . Mas ele não imaginava que, ao Se iniciar na religião, em Senador Camará, Zona Oeste do Rio, em 2002, teria de abrir mão de vestir a camisa rubro-negra. Inclusive na final do Mundial de Clubes deste sábado contra o Liverpool.
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— O orixá que pegou na minha cabeça, como se diz na linguagem do povo de santo, é Oxalá. E todo orixá tem as suas quizilas, que são as suas restrições. É algo que tem a ver com a alquimia, com a realidade poética da religião. E Oxalá, dentre outras coisas, determina que as pessoas consagradas a ele não podem vestir nem preto, nem vermelho – diz Pedro, que se surpreendeu com a situação.
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— Eu, como flamenguista, fui conversar com a minha mãe de santo: Mãe, não vou poder mais usar camisa do Flamengo? E ela disse: não! Não vai poder. Aí lembrei do uniforme branco, da conquista de 81. A mãe de santo consultou o oráculo e ela disse que poderia. Desde então, só uso o uniforme 2.
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Em 2009, a camisa rubro-negro voltou a cruzar o caminho de Pedro. E não era um uniforme qualquer.
— Eu estava apaixonado com o jogo do Petkovic e fui procurar uma camisa na internet. Descobri um leilão em que estavam vendendo uma camisa de 2001, do Pet. Tinha um lance de R$ 400, eu coloquei R$ 405, depois fui dormir. No dia seguinte, recebo um: parabéns! Você ganhou o leilão. Eu arrumei o dinheiro e paguei a camisa do Petkovic, que nunca usei —, relembra, rindo.
Longe da TV

Mordechai Kaczala, 40, é pai de seis filhos e conseguiu passar duas coisas para eles: a paixão rubro-negra e o respeito pelas tradições judaicas na linha mais ortodoxa. Dois lados que se chocarão neste sábado, quando Flamengo e Liverpool jogarem pelo Mundial.
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— Não podemos ligar aparelhos eletrônicos. Regra é regra. Foi o que disse aos meus filhos, que não viram a decisão da Libertadores porque também caiu no shabat (sábado) — disse.
Assim, as crianças foram brincar no playground do prédio, no bairro paulistano de Higienópolis. Graças ao zelador Adenildo de Lima, elas eram informadas dos gols, lances polêmicos, cartões e, quando pôde, ainda opinou sobre o comportamento dos times. A partida, diz Adenildo, se justificava.
— Sempre que tem jogo do interesse deles aos sábados eu faço isso. Já teve vez que fui lá no apartamento e bati na porta para levar a informação — lembrou o zelador, um palmeirense que simpatiza com o Flamengo. — Vou torcer, sim.
Adenildo entende que a família de Mordechai precisava observar o sábado devido às leis da Torá, um dos livros sagrados da religião judaica, que também integram a Bíblia cristã. Segundo a interpretação do livro do Êxodo 20:8-11, trata-se de um dia dedicado à família e à religião, e não se pode trabalhar nem realizar algumas atividades do dia a dia. Ver TV inclusive.
Frequentador do Maracanã com o pai e os irmãos, Mordechai contará com Adenildo e com o preparo físico. Vai descer (de escada, já que não pode usar o elevador) quantas vezes forem necessárias. Os filhos, de férias, não o acompanharão.
Fuso horário a favor
— Como moro em São Paulo, não dá para me basear na gritaria ou nos fogos. Muitos torcerão contra — constatou Mordechai.
Segundo o rabino David Gazale, também flamenguista e ex-frequentador do Maracanã, se uma TV estiver ligada em algum lugar, e algum religioso der uma espiada, não estará infringindo as regras da Torá. Mas estará fora do espírito do Shabat. Ele admite que sabe de ortodoxos que deram “este jeitinho” para ver a decisão da Libertadores, entre Flamengo e River Plate, mesmo após seus conselhos:
— É preciso força de vontade. Eu ficarei tenso, mas tenho controle emocional.

Melhor sorte teve o flamenguista Pessach Grispung, também ortodoxo: como está em Israel, conseguirá ver o jogo por causa do fuso horário – a partida começará no início da noite. Foi sorte: sua mulher comprou as passagens sem se atentar ao evento:
— Ia ficar muito ansioso mas, se não fosse assim, perderia a partida. Não iria ver o jogo se estivesse no Brasil.
Mas não são só os judeus que se impõem limites nos sábados. A psicóloga Laryssa Furtado é cristã da Igreja Adventista do Sétimo Dia, e guarda os sábados para “agradar a Deus e ao próximo”. Por ensinamentos semelhantes aos do judaísmo, também evitará a TV.
— O sábado para mim é um dia diferente, santo, de altruísmo, um dia de adoração a Deus, incluindo amar o próximo. Ver o jogo seria algo do meu interesse, de prazer pessoal, e não é o mote — diz Laryssa, que até poderia ligar a TV, checar o celular, mas deixará para conferir os dados do jogo após o dia de descanso.
Na final da Libertadores, ela estava na igreja. Após o pôr do sol, que tanto na sua religião quanto no judaísmo marca o início do dia seguinte, ela pôde acompanhar o finalzinho do jogo. Viu a melhor parte: Gabigol virou o jogo com dois gols nos acréscimos.