Do trabalho com Vini Jr à demissão inesperada: ex-diretor avalia evolução da base no Flamengo

Desligado do Flamengo há um mês, Carlos Noval não nega a surpresa com a decisão do clube, mas tenta aproveitar a nova fase da vida. Depois de 15 anos de serviços prestados, o ex-diretor da base rubro-negra lembra a evolução da categoria no clube, saindo de alojamentos improvisados para uma estrutura que conta com academia e sete campos exclusivos - além de falar sobre nomes como Wallace Yan, Samuel Lino e, principalmente, o xodó Vini Jr.

— Realmente foi uma surpresa. Fizemos a reformulação toda que pediram, conseguimos reduzir os números, a parte orçamentária. Acho que foi uma mudança de filosofia. Eles quiseram botar um europeu ali para tentar essa mudança. Sempre deu certo, há anos, desde que estávamos lá, deu certo, vários atletas sendo negociados, formados. Foi uma surpresa. Mudança de filosofia foi só o que me explicaram. Não (foi o Bap quem conversou), quem me demitiu foi o Paulo Dutra (CEO do clube). Não conversei (com o Bap). O Paulo Dutra chegou lá e falou que tinha uma ordem do presidente para me demitir por mudança de filosofia — disse Noval, em entrevista ao ge .

Noval chegou ao Fla no mandato de Patrícia Amorim, em 2010, ainda com Zico como diretor de futebol. Ele define a missão como "assustadora" no início pela falta de estrutura no Ninho do Urubu.

— O Ninho não tinha nada. Era mato, uma casa muito abandonada onde ficavam seis, sete meninos alojados. Só dois campos praticamente. A porta era uma porteira de fazenda, não tinha muro, nada. Para quem chega hoje lá e vê, não acredita que 15 anos atrás o Flamengo fosse aquilo ali. Com o tempo o clube foi se estruturando, melhorando a parte financeira e orçamentária. Deu para construirmos aos poucos — lembrou.

Carlos Noval comemora o título mundial do Flamengo no sub-20 — Foto: Beto Noval

As mudanças foram acontecendo de maneira gradativa e ao longo do mandato dos últimos três presidentes: Bandeira de Mello, Rodolfo Landim e, agora, Bap. Hoje, o CT possui 10 campos no total, sendo sete utilizados pela base - três desses são de grama sintética. Um desses campos é destinado para o projeto do 'miniestádio' . Além disso, há uma academia e quartos de concentração exclusivos da base. Tudo é totalmente independente do CT do profissional.

— Começou mais pela alimentação, que não tinha. Os que eram alojados, na época, comiam até arroz com linguiça, salsicha, um pedacinho de carne. Era precário. Passamos a realmente dar uma alimentação mais adequada. Dois amigos meus eram donos de supermercado e começaram a ceder essas comidas. Para muitos ali o café da manhã era a alimentação que eles tinham o dia inteiro. Era muito difícil de trabalhar. Hoje tem tudo. Os departamentos estruturados, tudo do bom e do melhor, departamentos funcionando em conjunto. Nutricionista, fisiologista, tudo o que um atleta precisa para se desenvolver e estar no profissional.

— Quem entra hoje não acredita no que era. O Flamengo não tinha uma academia para base. A academia foi montada em 2014 dentro de um galpão de madeira que era o refeitório dos funcionários das obras. O profissional mudou os equipamentos e sobraram alguns mais antigos. Pegamos para montar a academia dos moleques. Era um chão de cimento, mas aquilo foi uma felicidade monstra para todos nós. Um passo a mais. O clube foi se reestruturando, foi ter um orçamento melhor com a venda do Vinicius, dos meninos. Começou atrás até, com a venda do Samir, Jorge. Consegui de a base ter um orçamento só dela. Antes era englobado com o profissional, não sabíamos o que tinha de autonomia para usar ou não para a base. Começou a melhorar e hoje é isso, essa potência. Dois CTs maravilhosos, não tem o que reclamar. O CT da base acho que é melhor que o de vários clubes.

Carlos Noval retomou o protagonismo na base com a eleição de Bap no fim de 2024. Ele assumiu o controle do departamento, mas ficou sob o comando de José Boto, para quem tinha que reportar tudo. Uma das mudanças foi a incorporação do Sub-20 ao profissional, além de ter havido demissões em massa de funcionários e liberação de vários atletas.

— Teve uma conversa entre o presidente, eu e o Boto e foi passado que teria que ter uma redução de atletas e profissionais. O meu entendimento também era que o grupo estava muito inchado de atletas. Chegamos a ter categorias de 38, 40 e poucos atletas. Sempre trabalhamos com 20 a 25 atletas em cada categoria para desenvolver e evoluir mais. Quando a quantidade é menor, dá para ter mais qualidade. O clube estava com 430 jogadores na época e a ideia era reduzir para uns 300. O sub-20 tinha duas categorias inchadas. Teve um entendimento que era necessário fazer essa mudança — explicou.

— Nos profissionais foi também uma questão de ter que reduzir a parte orçamentária. O orçamento da base caiu um pouco, reduziram, então entendemos que tinham que sair porque eu achava que (a quantidade de jogadores) não estava de acordo com o que eu queria naquele momento. O orçamento, se não me engano, foi de R$ 3 a 6 milhões — completou.

Vinicius Jr. ao lado de Carlos Noval: relação antiga e choro na despedida do Flamengo — Foto: Gilvan de Souza / Flamengo

No lugar de Noval, o português Alfredo Almeida foi o escolhido para o cargo . O dirigente chegou ao clube para ser auxiliar de Boto mas, meses depois, assumiu o comando das categorias de base rubro-negra por uma escolha direta de Bap. Com ele, uma mudança de estrutura: não há mais o cargo de transição e o responsável pela base responde direto para o presidente.

— A pessoa que está na base e na transição conhece muito bem esses atletas. Estamos com eles geralmente desde uns 5, 6, 7 anos. Conhecemos toda a parte emocional do atleta, a parte técnica, fica mais fácil quando chega um treinador novo, com filosofia nova, explicar as características do jogador. Ele pode entender o que o atleta vai render para ele se tiver uma pessoa de dentro do clube que sabe explicar o que aquele garoto vai produzir, o que esperar. Conhecemos bem aquele menino. Fora isso, tem a parte de negociação. Você consegue entender quais são os atletas com potencial de estar no profissional, quais realmente são muito bons jogadores, mas que não vão ter espaço no profissional. E aí procura negociar esses meninos para ter um retorno financeiro. Essa parte da transição é muito importante. O Flamengo montou isso e vários outros clubes depois também fizeram. Quando fiz o curso da CBF Academy de gestão, minha tese foi sobre a transição. Acho que serviu de exemplo para muita gente e é um cargo importante.

Uma das relações de que Noval fala com maior carinho no trabalho das categorias de base é a com Vini Jr. Melhor do mundo e cria do Flamengo, o jogador mantém até hoje uma boa relação com o dirigente, que chegou no mesmo ano que ele ao Rubro-Negro e viveu de perto todas as etapas de sua formação.

Para o dirigente, a virada de chave do Fla foi na gestão de Bandeira de Mello, que "realmente entende o que é a base", como ele define. A partir deste momento, o clube fez vendas relevantes com Vini, Paquetá e Reinier, que ajudaram a catapultar o orçamento, a construção do CT e o estado financeiro sustentável vivido atualmente.

— O desafio do Flamengo eram todos. A parte orçamentária, de credibilidade, que não tinha. O clube passou anos e anos sem crédito nenhum. Quando começa a se estruturar, ter credibilidade, ter mais dinheiro, aí os jogadores começam a querer vir de volta. Você começa a conseguir captar jogador. As pessoas não têm ideia do que era o Flamengo antigamente. Houve vários jogadores que não quiseram vir na base. O alojamento do Flamengo não existia, era péssimo. Foi muito difícil. Aos poucos, a cada ano que passava, você dava um passo. Até 2014, ninguém sabia quem era o Vinicius no Flamengo. Os caras não tinham noção. Você falava com eles: “olha, acho que tem um menino aqui embaixo que é monstro, diferenciado demais, de todos os atletas que temos na base, eu nunca vi um igual”. Nem conheciam. Só quem conhecia realmente eram os caras da base que trabalharam com ele. Quando chegou no sub-15, sub-16, começou a participar de competições mais importantes, as pessoas começaram a entender quem era o Vinicius. A base hoje é o coração do clube. Tem que entender que é ali que vai te dar o ativo, ou na parte técnica para o clube, ou na financeira.

Quando Vini Jr se despediu do Flamengo, nem Noval suportou a emoção e chorou ao lado da ainda jovem promessa. O hoje astro do Real Madrid e da seleção brasileira chegou ao Rubro-Negro com apenas 10 anos e se formou durante quase uma década no clube.

— O Vinicius era um menino que fazia muita alegria onde chegava. É muito humilde, um coração enorme, sorriso. O maior perrengue com o Vini era para estudar. Não queria estudar de jeito nenhum. Era uma briga constante. Eu cheguei a tirar ele de uma semifinal Flamengo e Botafogo porque não estava passando de ano. Ele ficou revoltado, o treinador, também. Falei que tinha que estudar. Depois ele foi indo; continuou sem vergonha, mas é um menino sensacional - lembra, contando outros casos de Vini:

- Tem muita história boa dentro de campo. Um Flamengo e Vasco em 2017, ganhamos o primeiro jogo de 4 a 0 lá em São Januário. O profissional do Vasco tinha acabado de treinar e eles ficaram ali assistindo ao jogo. Ele deu uma lambreta, fez gol e os caras do Vasco ficaram loucos da cabeça. Fomos para o segundo jogo na Gávea e eu fiquei na cabeça deles: não ganhamos nada, não tem nada disso. Aí ele: “calma, você está nervoso por quê?”. Falei que não estava nervoso, mas tínhamos que jogar sério e respeitar o adversário. Acabou 6 a 1 o segundo jogo. Quando estava 3 a 0, eu estava na grade e ele passou por mim falando: “calma, velho”. Foi muito engraçado.

A vitória de Vini Jr no prêmio The Best não foi surpresa para o dirigente. Apesar das dificuldades com os estudos e da logística para estar no Ninho, ele estava sempre um passo à frente dos demais garotos da sua idade.

— Se pegarem quatro, cinco anos atrás, eu sempre falei que ele seria o melhor do mundo quando tivesse 22, 23 anos. Na época não, porque era muito novo, tinha uma deficiência ainda na parte de finalização, mas estava melhorando. Não foi obra feita, isso foi falado há muito tempo. Ele realmente era muito diferenciado. Teve uma competição também na sub-15, em que eu estava assistindo ao jogo junto com o scouting do Manchester United. O cara falou: cuida dele fora de campo porque dentro, esquece. Tem que cuidar fora, com a família. Tudo isso é também muito importante. Na base tem que ter isso, um contato, um respeito, uma credibilidade muito grandes com a família, com o atleta, com o empresário. Você assiste ao treino todos os dias, está vendo a evolução dele, se está mal, bem. Às vezes o problema é em casa, não dentro do clube. Tem que entender o momento do atleta, quando está bem, quando chamar para conversar. Tem de ter respeito e confiança para ter essa credibilidade.

Carlos Noval, ex-dirigente do Flamengo, em entrevista ao ge — Foto: Luiza Sá/ge

Depois do sucesso na base, Noval foi convidado por Bandeira de Mello a assumir o futebol profissional em fevereiro de 2018, após a saída de Rodrigo Caetano. Naquela temporada, a equipe terminou em segundo lugar no Campeonato Brasileiro, mas a eleição mudou o cenário. Em julho de 2019, com a chegada de Bruno Spindel, o profissional iniciou o departamento de transição. No fim da gestão de Landim, o dirigente acabou indo para a "geladeira".

— Os que chegavam no sub-20, a gente tinha que ter um retorno financeiro e negociamos bastante atleta com opção de compra, vendendo por valores de 200 mil euros, 300 mil euros. Todo atleta que baixasse no sub-20, tínhamos que ter retorno financeiro. O departamento foi importante para isso. Em 2024 me colocaram para a base de volta por decisão do profissional. Em outubro me tiraram, me deram umas “férias”, não entendi o porquê. Voltei em novembro novamente para a transição. O Bap assume em janeiro e me pede para assumir a base. Fiquei até julho, quando me desligaram — afirmou.

Depois da demissão Noval, aproveita o momento para cuidar da saúde, colocar a vida em dia e curtir como avô. Ele garante estar aberto a novas oportunidades.

Wallace Yan

— O Wallace Yan chegou no sub-17 ou sub-20 do Flamengo da Ferroviária. A personalidade dele é muito forte, sempre foi desde a época da base. Dentro de campo tinha uma personalidade muito forte e a gente até tentava segurar um pouco. Não tem muito o que falar, é a personalidade dele e isso vai ter que desenvolver com o tempo o equilíbrio para não perder realmente o que ele tem de melhor, que é essa agressividade em campo. Uma agressividade que tem que ser de comportamento técnico e tático, não de agressivo e físico. Ele realmente vai ter de se entender nesse equilíbrio, vamos ver. Espero que consiga.

Samuel Lino

— O Samuel Lino veio em um empréstimo de um ano com opção de compra do São Bernardo. Tem a adaptação do atleta também. Ele veio de uma equipe menor e já pegou uma Copa São Paulo, onde tínhamos uma geração muito boa. Jogadores que já estavam mais prontos do que ele naquele momento. Em fevereiro eu saí para o profissional, não sei qual realmente foi a evolução dele nesses meses. Mas, não culpando quem entrou de não ter exigido ele ou não, talvez eu faria a mesma coisa. Acho que ele não teve tempo necessário de adaptação para naquele ano ter a certeza de que podia investir naquele atleta. Acho que não teve essa oportunidade toda, mas não culpando o clube, outros meninos que estavam ali estavam mais prontos no momento. Como era um atleta emprestado durante o ano, tinha que resolver em cima da hora se iria exercer ou não e naquele momento talvez não tivesse enxergado o potencial que hoje tem. Acontece com muitos atletas.

Cuidado mental no profissional

— Às vezes os meninos sobem muito cedo para o profissional, não conseguem concluir a etapa deles nos juniores. Meninos com 17, 18 anos estão subindo, então perdem três anos de base quando eles têm quase um período final de formação. Às vezes escutamos que o menino está pronto, mas não, vai subir três anos antes de completar a formação. Não é só formação técnica, é formação mental também. Acabamos sendo professores, psicólogos, pai. Engloba muita coisa a base.

Ligação com outros jogadores da base

— Acho que tenho ligação com todos esses meninos, mesmo os que saem do Flamengo. A maior felicidade que tenho hoje são eles jogando em outros clubes, já no profissional, e vêm, te abraçam. Tem vários. Vinição, Paquetá, Reinier, Samir, Sávio, Rodrigo Muniz, Yuri César. São muitos que conseguimos formar. É uma felicidade grande entender que tivemos uma pequena participação na formação e conseguimos ajudar esses meninos a chegarem onde estão. Na base você não é bem remunerado igual os profissionais. O que realmente move ali é ver esses meninos jogando, chega na Premier League e fala que ajudou a formar, vai lembrando as histórias dele no clube, as partes táticas e técnicas. É muito legal o reconhecimento depois, deles quando encontram a gente, agradecendo. Outro dia encontrei o Yago Felipe, que jogava no Fluminense e está no Bahia. Ele esteve no Flamengo no sub-14, 15, nesse alojamento que era péssimo. Ele teve que sair, foi para o Ceará. Tivemos que mandar embora por problemas que ele deu. Hoje ele me encontra, me abraça. É uma felicidade ver onde o cara conseguiu chegar. Colocamos R$ 1,5 bilhão para dentro em venda de jogador.

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Fonte: Globo Esporte
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