Conheça zagueiro que fugiu de guerra e tentou carreira de modelo antes de se destacar pelo Nova Iguaçu

Sérgio Raphael estava descansando em seu quarto de hotel quando ouviu sons de tiros e de bombas próximos. Era abril do ano passado e ele estava em Cartum, no Sudão. “A gente que é do Rio está acostumado, eu estava bem tranquilo”. Mas o cenário era pior do que o das ruas cariocas. Percebeu isso quando os conflitos se intensificaram, com tanques militares ganhando as principais vias, aeroportos incendiados e caos nas ruas.

Onze meses depois, Sérgio Raphael vive um dos momentos mais felizes de sua carreira como jogador de futebol. Ele faz parte do elenco do Nova Iguaçu, sensação do Campeonato Carioca, que vai disputar as finais com o Flamengo (o primeiro jogo é às 17h de sábado no Maracanã). Mas vê um filme, não tão alegre, sempre que se recorda do que viveu no Sudão.

Sua chegada ao país do norte da África repete o caminho de tantos outros jovens brasileiros, a saga para mudar de vida.

- Minha motivação foi financeira. O contrato foi muito bom e tinha visibilidade enorme porque o time jogava a Champions da África, poderia se classificar para o Mundial - contou o jogador.

Sérgio Raphael, do Nova Iguaçu, com rebeldes armados — Foto: Acervo pessoal

O técnico Ricardo Heron Ferreira, que tem uma história no futebol do país africano, levou ao jogador o convite para jogar no Al-Merreikh. Sérgio, outros atletas e membros da comissão técnica foram contratados e viviam em um hotel perto do aeroporto de Cartum.

A passagem esportiva pelo clube sudanes se resumiu a cinco partidas. Tão logo o conflito começou, o futebol foi paralisado.

- Os responsáveis pelo clube falaram para a gente ficar tranquilo, que iria passar. Para a gente ficar em casa, evitar sair. Eles até deram um suporte para gente, com mantimentos. Mas achavam que iria passar rápido e não passou - recordou.

Sérgio Raphael, do Nova Iguaçu — Foto: Ronald Lincoln/ge

Os confrontos no Sudão começaram em meados de abril de 2023 depois de uma ruptura entre o Exército e os paramilitares. Em outubro de 2021, os dois grupos se juntaram para dar um golpe que tirou os civis do poder. Dois anos depois, eles entraram em uma disputa pelo controle do país.

Com a situação caótica, começou a faltar mantimentos. A pequena reserva de alimentos começava a rarear e o único mercadinho da região mal abria, para evitar sofrer saques. O fornecimento de energia elétrica e internet também foi afetado.

- Era bomba o tempo todo, drone no céu, sem luz, tudo fechado, a gente quase ficando sem comida e sem a ajuda que a gente esperava do Brasil.

A pressão internacional fez com que as forças opositoras aceitassem um cessar-fogo e criassem um corredor humanitário, e cidadãos estrangeiros começaram a deixar o país. Nesse momento, Sérgio Raphael diz que os jogadores não contaram com apoio diplomático brasileiro, estavam por conta própria.

A situação poderia piorar, os passaportes dos atletas estavam na sede do clube e para chegar lá, os jogadores teriam de cruzar as áreas de conflito na cidade.

- Na data em que eu ia buscar os passaportes, um outro moleque foi comprar comida e foi baleado. Mas no outro dia pela manhã, eu disse que iria, sim. No caminho, os soldados rebeldes me pararam, mas me reconheceram do clube. Eles torciam pelo Al-Merreikh. Eram garotos de 20 anos, com arma - disse o atleta.

Antes de seguir o caminho para buscar os passaportes, Sérgio Raphael ainda teve de tirar uma selfie com os soldados, um deles com uma pistola à mostra. Nenhum desses episódios chegou ao conhecimento da família do zagueiro enquanto esteve no Sudão. Ele foi sozinho para o país e filtrava as notícias que enviava para o Brasil.

Sérgio Raphael, no Al-Merreikh, do Sudão — Foto: Reprodução: Instagram

- A única pessoa que eu passava as informações era minha irmã. Eu dizia que estava bem, mas sabia que não. A situação era desesperadora - afirmou.

O jogador conseguiu recuperar seus documentos. Em seguida, o clube disponibilizou um ônibus para que ele e seus companheiros viajassem até o Egito. No país vizinho, poderiam tomar um avião para retornar ao Brasil.

O percurso até o Egito retratava toda a destruição provocada pelo conflito. Da janela do ônibus, registraram a saga de famílias atravessando a estrada a pé em busca de refúgio. E uma partida de futebol improvisada na fronteira foi uma forma de levar um pouco de alegria às crianças, de atenuar por alguns minutos o gosto amargo da guerra.

Após chegarem ao Egito, enfim, receberam apoio do Itamaraty, que conseguiu um voo para retornarem ao Brasil.

O Al-Merreikh ainda contava com o retorno dos jogadores brasileiros após a guerra. Porém, os momentos vividos no Sudão abalaram o relacionamento de Sérgio Raphael com o futebol:

- Na minha cabeça, eu já não queria voltar. Então, foi difícil a rescisão. Demorou mais de um mês. Eu fiquei um mês no Brasil de férias, eu só queria viver, pensei que era uma segunda chance e não pensava mais em futebol. Queria estar perto da minha família, dos meus amigos.

Sérgio Raphael pensou em investir em outra profissão. Uma alternativa seria buscar trabalhos como modelo fotográfico, ele já havia feito ensaios para marcas de roupas anteriormente. Também cogitou jogar torneios de futebol X-1 ou fazer faculdade de Educação Física para, quem sabe, conseguir um emprego no meio esportivo. Teria de se arriscar por um caminho incerto.

Sérgio Raphael, do Nova Iguaçu — Foto: Ronald Lincoln/ge

Até que um velho conhecido, o preparador de goleiros Ronaldo Santos, soube de todo o drama no Sudão e resolveu ajudar o zagueiro. Santos faz parte da comissão técnica do Nova Iguaçu e indicou o nome de Sérgio.

O projeto apresentado pelo clube empolgou o jogador. Foi oferecida a possibilidade de voltar à vitrine do futebol brasileiro após passar um tempo fora. Também poderia jogar perto de casa. Fazia alguns anos que seus pais não o viam jogar in loco.

Aos poucos, o prazer com o futebol retornou. O Nova Iguaçu começou o Carioca em alta e se manteve brigando na parte de cima da tabela até o fim, terminando a fase de classificação em segundo lugar, atrás somente do Flamengo.

- Passa um filme na nossa cabeça. O futebol é um meio muito difícil de realizar os sonhos. Passei por um episódio muito difícil, de arriscar a vida e poder perder tudo. E estar vivendo isso, é Deus agindo na minha vida, me honrando no que estou fazendo há muitos anos, trabalhando, com os pés nos chão, ajudando minha família.

Na semifinal, o Nova Iguaçu enfrentou o Vasco, um dos times que mais investiu na janela de contratações. O jogo de ida terminou em empate, apesar da grande atuação do time da Baixada Fluminense. Na volta, o Vasco precisava vencer e pressionou bastante, mas o sistema defensivo do Nova Iguaçu conseguiu neutralizar as armas do adversário e, em contra-ataque, Bill fez o gol que garantiu a vaga na final do Carioca.

Agora, o Nova Iguaçu terá o Flamengo e seu elenco milionário pela frente. De pazes feitas com o futebol, o jogador quer ajudar sua equipe a surpreender mais uma vez.

- A gente sabe da dificuldade de enfrentar o Flamengo no Maracanã. O Flamengo é gigante, tem uma torcida que apoia o tempo todo, tem jogadores de Seleção, mas não vamos mudar a forma de jogar. Tudo é possível, vamos trabalhar ao máximo para dificultar a vida deles. Se possível, sair com um título inédito - projetou.

Fonte: Globo Esporte