'Vou ser resultadista e ponto', diz Filipe Luís, do Flamengo, ao projetar futuro como técnico em entrevista

Provavelmente, você conhece bem o jogador Filipe Luís. Mas, por trás do lateral-esquerdo do Flamengo, existe um treinador em formação. Nesta entrevista ao GLOBO, feita dias antes da virada do ano, o "Filipe Luís técnico" revela detalhes de sua preparação, fala sobre a relação com os treinadores que teve na carreira e expõe suas convicções e as dúvidas que ainda carrega.

Reserva: Gabigol admite incômodo de ficar no banco do Flamengo e acha injusta comparação com time de 2019

A carreira como jogador tem recompensas: a conquista, o estádio lotado, a aclamação do público. Que prazer busca como técnico?

Quando começamos a jogar, é muita pressão. A crítica quando você joga mal é difícil. Mas, com 28, 29 anos, percebi que amo essa vida. Quanto mais delicada a situação, mais eu me sentia vivo. Depois, com 31 ou 32 anos, tive lesões musculares. Estava triste e já sentia essa vontade de ser treinador. Eu analisava jogos com o Tiago (português), no Atlético de Madrid. Nós pensávamos o que faríamos se fôssemos técnicos em determinado jogo. Quando voltei a jogar, fiz um pênalti e perdemos de 1 a 0. Estava no chuveiro, triste. Mas logo pensei: estou vivo, é a melhor coisa do mundo, estou onde queria estar. Preciso estar no campo. E tem outra coisa: quando o treinador vai dar preleção, falar como a gente vai pressionar, se colocar no campo, eu percebo "hoje não vai dar certo" ou "hoje eu senti firmeza". E costumo acertar.

Como executar, por vezes, um plano no qual não acredita?

Jorge Jesus tomava decisões táticas com as quais eu não concordava. Mas não é que ele estivesse certo e eu, errado: não tem isso no futebol. Existe o que funciona. Mas a minha função como jogador era fazer o que ele pedia. Quando acabava o jogo, e costumava dar certo, eu ia conversar com os analistas e perguntava por que foi feito assim, se não era melhor fazer da forma que eu imaginava.

Libertadores-2020: Santos ou Palmeiras se juntará a Independiente e LDU como recordistas de títulos internacionais do Maracanã

Quando isso aconteceu?

A gente jogou com o Santos do Sampaoli no Maracanã, e foi o jogo mais difícil para nós. Eles tiveram a bola, dominaram, mas ganhamos de 1 a 0. Eu não concordei, porque, na preleção, ele (Jesus) falou: 'Hoje, nós não vamos jogar, vamos lançar bola longa no Bruno Henrique e jogar a partir daí'. A gente estava voando. Por que não confiar na gente? Mas fizemos tudo o que ele pediu. A bola vinha, e lançava no Bruno Henrique. Um jogo mais direto, vertical. Fui conversar com os analistas, perguntar se não poderíamos ter vencido mais facilmente, e eles responderam que o  Santos era o time que mais tinha feito gols com roubadas de bola no último terço do campo. Viu? Tem muitas coisas que eu ainda não controlo.

Filipe Luís em treino do Flamengo no Ninho do Urubu Foto: Alexandre Vidal/Flamengo/Divulgação
Filipe Luís em treino do Flamengo no Ninho do Urubu Foto: Alexandre Vidal/Flamengo/Divulgação

Você trabalhou com Simeone, Mourinho, Jesus... são muito diferentes. Quais são suas influências na formação como treinador?

É uma mistura de todos os treinadores que tive na carreira. O Simeone é perfeito na parte defensiva, praticamente anula as chances de gol do adversário. Ele vai tomar gol, claro, mas as chances são poucas. Ele fecha espaço, a bola não entra pelo meio. Na área, ele enche de jogadores. Aí conheci o Tite, com uma abordagem bem diferente, bem completa. Tem coisas que o Simeone não tem. O Jorge Jesus tem coisas que o Tite não tem, mas em alguns pontos são parecidos. Aí vem o Rogério com coisas que os dois não têm. Fui pegando um pouco de cada um.

Mansur: Do Vasco x Corinthians ao Santos x Palmeiras, duas eras do jogo em 21 anos

Que futebol gostaria que seu time jogasse?

Digamos que eu comece a treinar o Figueirense, clube que me revelou e é o clube do meu coração também. Proponho o jogo num 4-3-3 com saída sustentada com o goleiro? Ou vou para um jogo mais direto procurando o resultado? Tenho que adaptar meu estilo aos jogadores que tenho. É necessário, com o time lá embaixo, arriscar uma saída de bola? Vão dizer: 'Mas você não tem uma ideia de jogo definida, só dá balão, é retranqueiro…' Eu vou ser resultadista e ponto. Quero ganhar. Se com aqueles jogadores essa forma de jogar vai me colocar mais perto da vitória, então tenho que fazê-los acreditar nisso. Agora, num time grande, é obrigação jogar. Mais do que ter um estilo, é ser mais completo e se adaptar aos jogadores e ao adversário.

“Num time grande, é obrigação jogar, ser mais completo e se adaptar aos jogadores e ao adversário”

Filipe Luís
lateral do Flamengo e futuro treinador

Foram oito anos de Atlético, com as ideias do Simeone. Em dado momento, sentiam que era possível jogar mais? Ser Simeone, mas querer ser Guardiola?

Nós tínhamos uma briga, entre aspas, constante com ele para jogar mais, propor o jogo. Ele era como um pai, um amigo, ficamos muitos anos juntos. Sentava comigo e Godín (uruguaio) e brincava: 'Vocês querem jogar? Fala para mim, o Godín tem bom pé para sair jogando?'. Simeone acredita muito no trabalho. Os onze em campo têm que se esforçar muito. Ele muda esquema no meio do jogo, muda peças de acordo com o adversário. É um treinador muito completo, já o vi ganhar jogo em cima de um jogador adversário. Eu sentia falta de jogar um pouco mais, mas vou dizer o quê? Para o Atlético, é o melhor treinador que existe.

Que treinadores te deram maior abertura para discutir planos de jogo?

Até hoje, o Simeone. O Rogério é bem aberto também. A gente nunca tenta opinar e sim entender o que o treinador quer passar. Com o Simeone, ele dizia: 'Vamos marcar assim'. E a gente pedia para ele explicar por quê. Cada jogo era uma ideia. Com o Jorge, ele não dava muita abertura. O Dome explicava muito, o Rogério dá bastante informação. O Mourinho joga sempre do mesmo jeito, então dificilmente dava abertura.

Da Europa à Série D: Como estão os campeões da Libertadores pelo Santos em 2011

Até que ponto o treinador deve fazer concessões pela opinião dos jogadores?

O treinador tem que escutar os jogadores, mas colocar em campo a ideia dele. Ele está ali para convencer o jogador. Porque, mesmo que a ideia seja errada, se os jogadores acreditarem, pode dar certo.

E como fazer o jogador acreditar?

Primeiro, através da oratória e do diálogo. Saber explicar. É algo em que tenho que melhorar. Não é a mesma coisa explicar para mim, com 35 anos, ou para o Matheuzinho, que tem 20. O resultado também dá credibilidade. Você pode falar: ‘Vamos jogar no contra-ataque e em jogo direto, não vamos atacar nenhuma vez'. Se você ganha três jogos seguidos, vai ter jogador falando que você é o melhor treinador que ele já teve, embora sempre vá haver outros dizendo que não — em geral, os que jogam menos.

Simeone é mesmo um especialista em mobilizar jogadores?

Ele dizia que a melhor forma de respeitar todo mundo é deixar todo mundo pronto para a hora em que ele precisar. Exigia o máximo em cada treino, cada reunião. Mobilizava muito as pessoas, tudo dele é ao máximo. Ele era muito bom de lidar com pessoas? Não. Ele não tem facilidade de lidar com o caráter de jogadores, mas engole o orgulho. Ocorrem problemas: João Félix (português) chutou garrafinha de água, Suárez (uruguaio) saiu bravo... Com alguns ele tem um bom feeling, com outros, é mais profissional. Tem bom trato com jogador? Até tem, mas não é dos melhores que eu peguei. Tite é nota mil neste ponto. Faz todo mundo se sentir super importante, a oratória dele é extraordinária. E faz os jogadores comprarem a briga dele, irem na mesma direção. Neste sentido, talvez o melhor que já peguei.

“O treinador tem que escutar os jogadores, mas colocar em campo a ideia dele. Ele está ali para convencer”

Filipe Luís
lateral do Flamengo e futuro treinador

Como é pra você jogar com o Tite?

Uma sensação de que era fácil jogar, pois sabia onde ia ter linha de passe, onde estavam meus companheiros. Quando um lateral sobe o outro fecha, ele gosta que lateral vá por dentro. Ele me limpava a cabeça de qualquer dúvida. Não se preocupava tanto com o adversário como o Simeone se preocupava... Agora é a primeira vez que estou vendo mudança, com Lodi mais aberto e Danilo e Neymar pelo meio, mudando em função de característica de jogadores. Mas ele é muito claro, gostei muito de jogar com ele.

Você se imagina mais elétrico ou contido à beira do campo?

Não posso ser passivo, tem que ter cobrança. Mas se você me vê jogando, não é meu estilo. Por isso, quero começar primeiro em uma categoria de base para errar, ver, perceber se tenho condições totais de ser treinador. Muitas coisas que a gente imagina que vão ser de um jeito vão ser de outro. Não quero errar no profissional. Atlético de Madrid e Flamengo ofereceram me apoiar no início da carreira. Seria o ideal começar ali (na base). É um jogo mais puro, você percebe até que ponto o treinador pode melhorar o jogador, há mais tempo. Imagina começar no Flamengo e errando no profissional? (risos)

Foco no campo: Ceni esboça o Flamengo para encaixar time sem Gerson

Em seus estudos, você analisa os próximos adversários? Ou isto criaria um conflito com o plano de jogo do treinador?

Nesse momento, faço (os estudos) com o Diego Ribas. Assistimos aos jogos juntos ou falamos por mensagem. Temos visões parecidas, mas acontecem coisas interessantes. Passam 30 minutos de jogo. Eu, como lateral, falo do espaço que tem às costas do lateral, que o ideal é explorar ali. Se for o Flamengo, digo que o Arrascaeta pode cair no espaço. O Diego, que hoje é volante, fala que o nosso meio-campo precisa dar o passe de tal forma... É uma visão totalmente diferente, o que prova que uma comissão técnica precisa ser muito completa, com pessoas que pensem diferente de você. O Jesus analisava bem todas as partes do campo. Isso, eu ainda não tenho. A gente costuma analisar os próximos adversários ou jogos de times importantes da Europa.

Diego Ribas com Filipe Luís em treino no CT do Flamengo: eles compartilham análises de jogos Foto: Alexandre Vidal/Flamengo/Divulgação/05.01.2021
Diego Ribas com Filipe Luís em treino no CT do Flamengo: eles compartilham análises de jogos Foto: Alexandre Vidal/Flamengo/Divulgação/05.01.2021

Você cataloga treinos para aplicar no futuro?

Tenho muitos treinos anotados. Do Mourinho, do Jesus... Do Simeone, tenho na cabeça... Do Rogério, é impossível, porque o leque é infinito. Eu passei por todos. Os do Mourinho foram os melhores até agora. Eram dinâmicos, intensos. Os do Jesus eram simples, quase sempre a mesma coisa, mas abriam a cabeça. O Simeone treinava de acordo com adversário. Se eles jogam cruzando bola na área, nós treinávamos defender cruzamento uma semana. Ou o tipo de defesa em zona que ele queria. Passei por tudo. O que eu vou fazer? (risos) Vai ser em função da necessidade da equipe, se o time está sofrendo muito gol, tem que enfatizar. A defesa, para mim, precisa ter muito mais treino que o ataque. Será minha prioridade. Um time que não toma gol é um time que ganha título. Mas claro que a construção de jogo vai acontecer durante a semana.

Taticamente, há uma ideia de atraso aqui. O que você encontrou coincide com isso?

Sinceramente, não. Em 2019, jogamos contra o Vasco do Luxemburgo, foi 4 a 4 e um jogo superdifícil taticamente. Em 2020, pegamos times que vêm pressionar, que saem jogando com três dentro da área igual a gente ano passado (2020). E times que estão lutando contra o rebaixamento... Existe uma evolução tática muito grande. Mas aí é a minha pergunta: compensa o risco, para um time que está lutando contra o rebaixamento, sair jogando "porque é meu modelo de jogo, minha ideia", e meu time cai?

Entenda: Como fica o calendário se Palmeiras ou Santos ganhar a Libertadores

Por outro lado, cada vez mais times pressionam a saída de bola. Seu time pode não conseguir jogar se não souber sair jogando...

Correto. Mas tem outra questão. Estou em último lugar, mas vou provar que sei fazer meu time jogar porque, no ano que vem, pode vir o Palmeiras e me pegar. Não pode ser isso, também? O grande mérito do treinador é saber o que tem na mão e dizer: 'Com este time, com menos qualidade, estou em quinto, sexto'. O Internacional do Eduardo Coudet era líder do Brasileiro. Não é dizer que eles não jogavam, mas era muita bola direta, no Guerrero, no Abel Hernández... Um time muito intenso, de pressão, que fez dois gols em recuperação de bola no ataque contra nós. E o treinador talvez tenha visto que o time não tinha bom pé para sair jogando, ser um Barcelona da vida. Está errado? Eles eram líderes do Brasileiro. É entender o que você tem na mão. Se o Inter pega um treinador 'vamos jogar' como o (Fernando) Diniz, talvez. Vai jogar bem, como ele quer. Mas estaria na posição do São Paulo? Não sei, talvez por não ter um jogador como o Daniel Alves. O que o São Paulo faz tem muito mérito também. E outra coisa: treinador com tempo. Eles acabam dando certo no clube. Mas veja, estou falando e sou o cara que mais gosto de propor jogo.

Que experiências ruins você teve e o Filipe Luis treinador não repetiria?

Passar dúvidas para a equipe. Durante a semana mudar três, quatro vezes o sistema, a escalação, passar insegurança. Se o treinador estiver com dúvida, os jogadores vão ter duvidas. O jogador percebe tudo o que o treinador está pensando.

“Se o treinador estiver com dúvida, os jogadores vão ter duvidas. O jogador percebe tudo o que o treinador está pensando”

Filipe Luís
lateral do Flamengo e futuro treinador

Cada um reage de uma forma a um estilo de liderar. O tempo como jogador já é capaz de te dar este trato com o atleta?

Isso é uma dúvida grande que tenho: a psicologia no futebol. Li muitos livros sobre isso. É importante essa experiência que tivemos como jogador, mas existem pessoas que têm o dom. Você tem que saber as suas limitações, entender que, em um elenco, nunca todos vão estar felizes. Para mim, o Gerson é hoje o melhor volante do Brasil. Se você o fizer acreditar que é o melhor volante do Brasil, mas, ao mesmo tempo, que, se ele não jogar bem, vai para o banco, você está no caminho certo. Se ele entrar sabendo que nunca vai para o banco, aí tem um problema. O jogador precisa dar para o futebol, porque o futebol vai devolver para ele.

Você falou que a oratória não é seu forte. Mas as entrevistas coletivas indicam o contrário...

A questão não é falar, é convencer. Eu pego meu filho, sento ele na cama e falo: 'Não corre de lado, corre perfilado, com o pescoço olhando para o lado'. Aí olho o campo e ele está correndo de lado, como um tenista. Aí eu penso: 'Será que sei convencer'? Quando eu vir um time fazendo o que eu quero e dando certo, verei que tenho este poder. Até hoje, não sei se tenho. Essa é a minha maior dúvida, se vou conseguir ser treinador ou não. É só essa. Taticamente, me falta, mas isso vem com tempo. No momento, acredito que não estou preparado para pegar um time logo. E preciso definir o que passar para os jogadores, em que momento vou mostrar vídeos, onde entram a parte física, a tática.

Gerson x Ramírez: STJD abre inquérito e define relator para apurar racismo no Flamengo x Bahia

Que time você tem prazer de ver?

Hoje, o Barcelona está chato de assistir (risos). O Liverpool, tenho prazer de ver. O Atlético de Madrid, tenho prazer de ver. Não gosto de ver o São Paulo jogar, porque é tão anárquico, e dá certo. É uma posse de bola muitas vezes passiva, mas eles têm muito mérito. Tem que tirar o chapéu. O último que me agradou de ver foi o Flamengo de Jorge Jesus. O Flamengo é o time que mais se assemelha àquele Bayern campeão da Champions.

O que faltou para o Flamengo ganhar do Liverpool?

Foi o jogo que o Jorge melhor preparou de todos, nos deu o jogo muito mastigado. Jogamos muita bola. Faltou respeitar menos. Lá na frente, faltou ter mais maldade, arriscar mesmo: não respeitar Van Dijk, não respeitar ninguém. Mas jogamos contra um time monstruoso, que era superior e foi superior. Eles mereceram ganhar. Mas o Flamengo foi o time que melhor enfrentou a final com um europeu. Aquele é o time com mais intensidade no mundo, os GPS mostravam isso. Três atacantes fantásticos, três meias com perna para correr dois jogos e uma prorrogação. Aquele time era praticamente imbatível.

Fonte: O Globo