De meia-esquerda demissionário a um dos principais zagueiros do futebol mundial, David Luiz foi o agente da própria transformação. Viu a oportunidade surgir na Copa Santiago Sub-18 de 2005, no Rio Grande do Sul. O esguio - e à época nada cabeludo - meio-campista do Vitória enfrentara longa viagem, e as quase 80 horas de estrada trouxeram problemas físicos ao elenco. Ciente de que estava prestes a ser dispensado, chegou junto ao treinador e deu ideia que mudaria sua vida.
- Num campeonato em que eu ia ser mandado embora, eu estava no banco, jogava de meia-esquerda e aí machucam dois zagueiros. Foram setenta e poucas horas de viagem. O treinador jogava com três zagueiros e não queria mudar o esquema porque nossos alas eram muito bons. Eu cheguei nele e falei: "Agora, você tem um zagueiro. Me coloca aí que vai dar certo". Eu jogo e termino como o melhor zagueiro do campeonato. Volto para Salvador, começo a treinar de zagueiro e, em um ano, já estava no profissional. Depois de um ano no profissional, eu fui embora para a Europa - disse David Luiz em entrevista ao The Player's Tribune.
Nesta quarta-feira, David Luiz, agora com o vermelho e preto do Flamengo , reencontra o Vitória na condição de adversário pela primeira vez dentro de seus 19 anos como atleta profissional. A bola rola no Barradão às 20h (de Brasília), pela 19ª rodada do Campeonato Brasileiro.
Na estreia do Vitória, que terminaria a Copa Santiago como vice-campeão, defensores tiveram cãibras, e David Luiz acabou entrando na partida contra o Atlético-MG como líbero ao lado dos zagueiros Wallace, ex- Flamengo , e Murilo Tchê. À época auxiliar da categoria sub-20 e técnico do time que disputou o torneio no Rio Grande do Sul, João Paulo Sampaio, hoje coordenador das categorias de base do Palmeiras, lembra como rejeitou a dispensa sugerida pelo colega que comandava o sub-17.
JP Sampaio conta que outro figurão do futebol mundial da atualidade também passava por transição de posições dentro de campo. Com isso, conhecedor das qualidades de David, pediu mais tempo ao pupilo.
- Na verdade eu era auxiliar técnico do Sub-20, e esse campeonato lá em Santiago (João Paulo foi o técnico do time) era Sub-18. O treinador do sub-17 que o dispensou depois do final do ano. E aí eu falei: "Não, eu quero ver David". Até porque ele estava passando por aquele processo de crescimento, e aí perde um pouco de rendimento.
- E também a gente estava começando a mexer com alguns jogadores de outras posições, que é o caso de Hulk. O Hulk, nesse mesmo time que ele falou aí, era o ala esquerdo e depois virou atacante. E aí eu falei: "Não, deixa David aqui para a gente ver, eu quero ver dia a dia dele". Eu tinha que assinar a liberação porque assina o treinador da categoria que está mandando embora com o treinador da futura categoria, que tem que conhecer e assinar também. Aí eu não assinei e o levei para a competição - afirmou João Paulo, em entrevista ao ge .
O que poderia ser encarado como uma ousadia no pior sentido da palavra na visão de muitos, o pedido de David Luiz para jogar na zaga tornou-se chave para o sucesso. Segundo João Paulo Sampaio, David "de frente para o campo" não errava nada.
- Eu sempre gostei, e hoje isso é obrigatório no Palmeiras. Todos os jogadores jogam no mínimo em três posições, treinam e fazem jogos. E eu aprendi isso há muito tempo nos torneios que a gente ia com o Vitória. Via alguns times fazerem muito isso, principalmente o Borussia Dortmund. Não adianta você ter somente o feeling e interceder. É melhor que você faça isso como processo - disse, para completar:
- Eu gostava de mudá-los de posição. E quando ele me encarou era uma época que estava na moda jogar com três zagueiros, o Brasil tinha sido campeão do mundo com Lúcio e aquele sistema do Felipão. Eu tinha esses alas muito ofensivos, aí faltou zagueiro, e ele falou: "Deixa eu ir para a zaga". E eu falei: "Está bom, vai lá de líbero". E David de frente e sobrando não errava nada. E ainda fazia cobertura. Era protegido porque estava passando por essa fase do estirão, que dá dor no joelho, dor no quadril e perde rendimento. Dali em diante a qualidade dele sobressaiu. Ele ficou de frente para o campo em vez de ficar no meio, no bolo e passando por esse processo.
Responsável por não dar a canetada que poderia interromper uma carreira vitoriosa no futebol mundial, João Paulo Sampaio se orgulha de ter contribuído para o sucesso do atleta de 37 anos. Cedeu à reportagem foto da conquista da Philips Cup, na Holanda, contra o PSV. Perguntado se ele teria uma atual dos enfrentamentos entre Flamengo e Palmeiras, o dirigente brinca e diz que não pede foto para "não incomodar os famosos". A resenha, porém, é indispensável.
- Acabou o jogo aqui contra o Flamengo (no primeiro turno), fiquei uns 20 minutos conversando com ele, sobre a família, o futuro e tanta coisa.
O que te fez aceitar a sugestão do David Luiz?
- Eu sempre falo que o jogo é do jogador. Então, quando eles se sentem bem, é só você dar liberdade para eles falarem. E eu sempre tive uma relação muito boa assim, até porque eu fui um ex-atleta, passei por tanta coisa que eles passaram, como morar em alojamento e longe da família. Então eu tento entender, e o melhor entendimento é conversa. Então tem essa liberdade para conversa. Então quando ele falou foi muito fácil.
Como é para você ouvir do David Luiz o título "de um dos melhores diretores de categoria de base"?
- Eu sempre tive uma relação muito boa com o David desde quando ele saiu. Aliás, como sempre tive a maioria dos atletas. Acabou o jogo aqui contra o Flamengo (no primeiro turno), fiquei uns 20 minutos conversando com ele, sobre a família, o futuro e tanta coisa. É orgulho, claro. Um cara que é quem é não só pela história e capacidade, mas pelo posicionamento. O David sempre foi um cara muito esclarecido, a família, o pai e a mãe.
- David tem berço. Quando você ouve isso de pessoas que têm esclarecimento como ele é e posicionamento perante à sociedade, é gratificante saber que você contribuiu ali para a formação de um grande homem e depois grande atleta. E trabalhar dia a dia.
Qual é seu sentimento ao ver o que um atleta que estava prestes a ser dispensado se transformar no que se tornou mundialmente? O quanto te faz feliz o fato de você não ter assinado a saída dele?
- Me fez mudar lá no início, ter mais paciência e estudar muito sobre maturação deles, adolescentes atletas! Fico orgulhoso por ele ter se tornado um grande homem, além do rendimento e da fama.
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