Um norte para Flamengo e Gabigol

Num Maracanã cheio, palco de mais uma boa atuação do Flamengo de Filipe Luis, o temor de um jogo sequestrado pela guerra de narrativas e ações de comunicação em que se transformou o caso Gabigol pareceu sem sentido. O atacante não foi protagonista, foi figura discreta, tanto em suas aparições quanto nas reações da arquibancada. Ainda que, naturalmente, houvesse bandeiras e cartazes dedicados ao ídolo.

Quando o afastou a seis jogos do fim da temporada, o Flamengo ameaçou transformar o atacante no personagem de um jogo que era uma celebração pelo título da Copa do Brasil. Gabigol respondeu com a promessa de que iria para a arquibancada, disposto a esfregar sua popularidade na cara da sociedade e escancarar um “nós contra eles”: de um lado o jogador e a torcida, do outro a diretoria. Num jogo de xadrez que já dura mais de um ano, em que cada um dos lados cometeu seus erros, um meio termo mais racional já parece possível: Gabigol não foi para a Norte, como prometeu; e já parece viável que ganhe um jogo de despedida. Seria um encerramento de ciclo mais condizente com o peso histórico do jogador.

A esta altura, cada movimento de Gabigol parece ter uma carga de simbolismos cuidadosamente pensados. Antes do jogo, apareceu à beira do campo, com uma camisa retrô do início dos anos 80. Às costas, o número 10, que foi retirado dele quando se deixou fotografar vestido de Corinthians. Depois, foi para um camarote. Nada da comoção que se imaginou. Tampouco vê-lo no campo remetia ao jogador apartado do ambiente, como sugeria a nota do Flamengo.

Gabigol com a camisa 10 do Flamengo no Maracanã, antes do jogo contra o Atlético-MG — Foto: Rodrigo Cerqueira

Os arranhões no fim da convivência entre atacante e clube refletem erros na gestão do processo. Ao acordar um contrato com o jogador no ano passado e desfazer o negócio em seguida, o Flamengo abriu uma ferida que pareceu nunca se fechar. Conduzir um jogador que atingiu tamanho status impõe muito cuidado. Para algumas gerações, trata-se do segundo maior ídolo da história do clube. Não é pouca coisa.

Mas tampouco é justo que Gabigol tente emplacar a narrativa de que foi apenas uma vítima de injustiças e incompreensões. Nas duas últimas temporadas, deu muito menos ao Flamengo do que se deveria esperar de alguém que imagina merecer um novo contrato com duração e valores tão altos quanto pretendia. Foram anos marcados por atuações ruins, forma física nem sempre mantida, punição por descumprir protocolos de antidoping, foto com a camisa do Corinthians e, por último, desacato ao treinador que lhe oferecera oportunidades na reta final da passagem no clube. E pior, tentou sequestrar o protagonismo no dia em que o clube ganhou seu título mais importante do ano. Ele decidiu que, numa noite em que deveriam apenas celebrar, torcedores deveriam ficar sabendo que o ídolo estava de saída.

Por outro lado, os relatos de um jogador de humor variável, de administração complexa, ego por vezes inflado e convivência difícil acompanharam Gabigol nos seis anos de Flamengo. Não deixou de surpreender que apenas a seis jogos do fim destas longas temporadas, o copo tenha transbordado. Ainda que só quem vive o clube possa medir com precisão a inviabilidade da convivência.

É possível especular que pesou o desgaste das relações, é possível achar que a diretoria se sentiu desafiada, ou até que temeu ver Gabigol marcando gols às vésperas de uma eleição. O fato é que o afastamento tocava num ponto que qualquer dirigente precisa pesar: o zelo pela forma como uma história será contada daqui a alguns anos.

Se é verdade que há alguns meses parecia claro que o destino de Gabigol e Flamengo era a separação, também é verdade que o fim do ciclo significaria o rompimento entre o clube e um dos seus nomes mais importantes nos 129 anos de história rubro-negra. Mais do que sua contagem de títulos estaduais, nacionais e continentais, que o coloca junto a Zico e Júnior, Gabigol é o rosto da segunda era mais vitoriosa que o Flamengo já viveu. É o homem dos gols decisivos. Se no início dos anos 80 existiu o “Flamengo do Zico”, para tantos torcedores os títulos recentes foram ganhos pelo “Flamengo do Gabigol”. Cuidar para que, no futuro, esta história seja contada com um desfecho bonito deveria ser responsabilidade das duas partes. Se foi possível administrar Gabigol por seis anos, não pode ser difícil lidar com ele por mais um mês.

Em futebol, laços afetivos importam. Restam ao Flamengo dois jogos no Maracanã até o fim deste 2024. Fazer com que um deles seja uma celebração deste pedaço da história do clube não é, necessariamente, oferecer algo a Gabigol ou ceder a seu egocentrismo. É até cabível debater se ele tem sido justo com o clube, que também lhe deu tanta coisa nesses anos. Mas trata-se de oferecer à arquibancada a chance de se despedir, de festejar seu ídolo, de produzir uma última memória com um personagem por quem ela se apaixonou. Trata-se de polir a forma como esta relação será contada no futuro, como um capítulo da história rubro-negra será lembrado. É bom para todos que o desfecho combine com as jornadas mais felizes que clube e jogador viveram juntos.

Fonte: Globo Esporte