Um ano sem Zagallo: Velho Lobo contou em livro bastidores de 1970 e ensaiou guerra contra a imprensa

Neste domingo, dia 5 de janeiro, completa um ano a morte de Mário Jorge Lobo Zagallo, um dos maiores vencedores do esporte brasileiro em todos os tempos . Bicampeão do mundo como jogador em 1958 e 1962 e campeão como treinador em 1970, o Velho Lobo morreu aos 92 anos em decorrência de falência múltipla dos órgãos.

Pelé e Zagallo, campeões do mundo no campo em 1958 e 1962: parceria reeditada na Copa de 1970 — Foto: Arquivo Nacional

A conquista da Copa de 1970 ficou eternizada num livro raro, o único escrito pelo Velho Lobo. A obra "As lições da Copa" foi lançada em 1971 pela antiga editora Bloch - hoje só se encontra em sebos ou pela internet por mais de R$ 100. A obra é um diário de bordo que vai desde o convite para ser treinador da Seleção a menos de três meses do Mundial até a volta olímpica no estádio Azteca, na Cidade do México.

Em 187 páginas, Zagallo narra as agruras da formação da equipe, as polêmicas de bastidores que incluem o drama pela dúvida na recuperação de Tostão e uma pimenta daquelas com uma parte da imprensa, direcionada a um jornalista famoso da época .

Meses antes da Copa, em setembro de 1969, Tostão havia recebido uma bolada no olho em jogo do Cruzeiro contra o Corinthians. Sofreu descolamento de retina e ficou seis meses em recpuperação até voltar aos campos, depois de passar por cirurgia. No livro, Zagallo conta em detalhes tudo que passou com os médicos e com o próprio Tostão.

As Lições da Copa, de Zagalo, foi lançado em 1971 e teve mais de uma reedição — Foto: Leonardo Miranda

"Se colocar o rapaz para jogar, poderei ser um criminoso. E se ele ficar cego?" , relatou, confidenciando que, quando conversava com Tostão, fixava-se nos olhos do atacante e admitia que a "aparência" de uma das vistas "não era boa".

Na preparação no México, em Guanajuato, Tostão ainda sofrera derrame no olho esquerdo, o que levou ainda maior desconfiança às vésperas da Copa, mas Roberto Abdalla, médico que acompanhava Tostão e esteve ao lado da seleção brasileira no México, garantiu que "a retina está perfeita" e que "o aspecto é feio, mas não atrapalha em nada a visão do jogador, que poderá jogar sem receio".

- Acreditei na sua ciência - contou Zagallo no livro, revelando também que Tostão chegou a sugerir o corte quando sofreu outro derrame. Artilheiro das eliminatórias, Tostão foi titular em todos os seis jogos da Copa, fez dois gols e deu quatro assistências.

Em 1970, Zagallo tinha encerrado a carreira havia pouco mais de cinco anos. Ainda não completara 39 anos e usou a forma física para treinar o time. Em "Lições da Copa", conta vitória pessoal ao preparar Rivellino, camisa 10 em todos os clubes, para ser um meia pela esquerda com importante funções defensivas.

"Um craque. Mas não combatia, voltava caminhando quando as coisas se tornavam difíceis, ou quando perdíamos a jogada" , dizia Zagallo que passou a instruir Riva dentro do campo, perseguindo-o:

- Eu corria ao seu lado, dentro do campo, dando-lhe instruções; falando, verberando, enfatizando... Somente à custa de muito grito, muita bronca e muita instrução, em clima de convencimento, Rivellino e Clodoaldo aprenderam como deveriam colocar-se e agir em campo.

Zagallo, técnico do Brasil na Copa 1970: ex-jogador se aposentou em 1965 e tinha apenas 38 anos no México — Foto: Mario De Biasi/Mondadori via Getty Images

Ao longo de todo o relato do livro, Zagallo deixa recados indiretos ao esquema anterior de João Saldanha, que considerava inadequado para ganhar a Copa, e rebate críticas da imprensa, ao melhor estilo "vocês vão ter que me engolir". Desabafo que consagrou 27 anos depois em La Paz, na altitude boliviana, quando o Brasil foi campeão da Copa América, em 1997.

No livro, Zagallo diz que "deplora a conduta de certos comentaristas", acusa tentativa de "massacre de reputação de jogadores altamente qualificados", referindo-se a Paulo Cézar Caju, que era seu titular original quando assumiu a Seleção. Caju perdeu a vaga, mas foi importante na Copa - um dos melhores em campo na vitória sobre a Inglaterra, então campeã do mundo.

- Fui malhado como se me tivesse convertido em Judas - desabafou numa das páginas, em um dos diversos relatos contra seus críticos.

Zagallo atribui as dificuldades do primeiro tempo contra o Uruguai, adversário da semifinal, à "sórdida campanha de descrédito movida por uma parte da imprensa brasileira ou por certos jornalistas imprestáveis". O antídoto - contra o fantasma de 1950, do vice no Maracanã - veio ao melhor estilo Velho Lobo no intervalo da partida.

- Como é que é, vocês pretendem perder para aquele timinho? É isso mesmo, o timinho uruguaio não vale um caracol. É vergonhoso para vocês terem que sair do campo de cara baixa. Eles é que devem tremer, não vocês - gritou no vestiário.

O jogo terminou 3 a 1, de virada, para o Brasil. Zagallo conta que os jogadores lhe agradeceram pela bronca do intervalo e opina, no livro, que ganharam de três, mas poderia ter sido de quatro ou cinco.

Zagallo dividiu a obra em capítulos por jogos. E não poupou adjetivos e desabafos. Alguns deles direcionados ao duelo contra a Inglaterra. Os atuais campeões do mundo chegaram à Copa de 1970 como "deuses mascarados, vestidos de empáfia e ostentando uma superioridade intraduzível" .

Enquanto os brasileiros iam treinar e confraternizavam com o povo mexicano - levando até flores para a torcida -, os ingleses levaram água, alimento e "até mesmo um ônibus", ressaltou Zagallo, sobre o distanciamento britânico. No duelo ainda na primeira fase, uma jogada genial de Tostão e um passe milimétrico de Pelé fizeram Jairzinho encher a rede da Inglaterra na vitória por 1 a 0.

Tostão em ação contra a Itália, na final de 1970: craque do Cruzeiro fez cirurgia às vésperas da Copa e preocupou todo o Brasil — Foto: Peter Robinson/EMPICS via Getty Images

No relato do capítulo "Pedras e seres no caminho", há um alvo principal: Geraldo Bretas. Radialista e comentarista da TV Tupi, o jornalista configurou-se na "pedra no caminho" para Zagallo. Ele é descrito por Zagallo como "comentarista de uma emissora de televisão de São Paulo e colecionador de desaforos por ele próprio usados a granel". Em outros momentos, sem citar o nome, trata Bretas com desprezo e o chama de "esse serzinho"

O ressentimento era antigo, pois Zagallo lembrou no livro que Bretas "malha a seleção brasileira desde 1958, talvez antes". Zagallo relata uma entrevista na concentração da Seleção em que é perguntado, durante a primeira fase, se o Brasil permaneceria "no fundo do vale". O jornalista chegou a ser proibido de ir na concentração brasileira. Zagallo relata a seguinte discussão:

- Para mim, a Seleção está uma porcaria. Continua jogando errado.

- Olhe aqui, velho, você não entende bosta nenhuma de futebol. Só sabe destruir - rebateu Zagallo, confessando que disse algumas palavras a mais que preferiu não detalhar no livro.

Com seis jogos e seis vitórias - 19 gols marcados e seis sofridos -, a seleção brasileira de 1970 é até hoje considerada uma das melhores de todos os tempos . Foi a última Copa de Pelé, companheiro de Zagallo no bicampeonato de 1958 e 1962. O Rei tinha relacionamento um tanto quanto estremecido com João Saldanha, treinador da Seleção nas eliminatórias e um dos responsáveis pela formação daquela equipe.

O Velho Lobo revela no livro que tinha também suas diferenças com Saldanha, que haviam começado ainda nos tempos de Botafogo. Para Zagallo, Saldanha não gostava do seu estilo de jogo. Mas garantia que nunca havia tido "graves desentendimentos pessoais".

Fonte: Globo Esporte