Samir já foi "de vidro" aos olhos de seus críticos. Hoje, aos 30 anos, é sólido. Na bola e no extracampo. Há uma década fora do Brasil, o zagueiro formado na base do Flamengo construiu uma carreira de respeito, com passagens por Verona e Udinese, da Itália, Watford, da Inglaterra, e pelos mexicanos Tigres e Mazatlán, seu atual clube. Construir, alias, é com ele mesmo. É dono de uma empresa no ramo da construção civil com empreendimentos no Rio de Janeiro.
Samir atualmente defende o Mazatlán, do México — Foto: Sergio Mejia/Getty Images
Mas como Samir deixou para trás fragilidades físicas e psicológicas? Inicialmente com a ajuda dos europeus da Udinese e também pelo autoconhecimento conseguido através da terapia. O atleta divide a culpa pelo período das muitas lesões consigo próprio e a estrutura do futebol brasileiro há 10 anos.
- Eu no Flamengo tive muitas lesões para um jovem de 18, 19 anos. Não era uma coisa normal, eu vivia lesionado. Digamos que o Flamengo jogava 45, 50 partidas no ano, e eu fazia 20, 25 no máximo, intercalando entre lesões e voltas. Isso era uma coisa ruim para mim. A minha ida justamente para a Udinese foi devido a esse cenário de muitas lesões no Brasil. Isso, querendo ou não, estava manchando a minha imagem. As pessoas já me olhavam diferente, me chamavam de "Samir Vidro" na época porque eu me machucava demais - disse, em longa entrevista ao podcast Gringolândia , do ge .
- Quando saio do Flamengo e chego na Europa, a Europa era totalmente diferente do Brasil. Hoje o Brasil já trouxe muita coisa da Europa. Quando chego na Udinese, eles me fizeram uma avaliação completa. Quando foi assinar o contrato, fiz ressonância magnética de todos os membros principais do corpo. Demorei acho que umas três ou quatro horas na clínica fazendo isso tudo.
A detalhada bateria de exames fez a Udinese identificar pontos a serem atacados a fim de minimizar as lesões de Samir e deu muito certo. Em 10 anos no exterior, de acordo com o site "transfermarket", sofreu apenas oito lesões, duas delas exigiram recuperação de cerca de quatro meses, mas ambas foram consequência de pancadas.
- Após esse controle médico que fizeram comigo na Europa, com os fisioterapeutas foi uma outra sessão de exames, e eles viram que eu era muito encurtado. Eu sou um jogador muito forte, porém com pouca mobilidade. Isso tudo me atrapalhava. E outras coisas não foram identificadas anteriormente. Eu era muito jovem e não tive esse respaldo de alguém chegar para mim e falar: "Samir, a gente identificou essas lesões, você é um jogador muito forte, precisa de mobilidade e fazer muito alongamento".
Samir estava na Udinese há cinco anos e meio e agora vai jogar no Watford, da Inglaterra — Foto: Massimo Insabato/Getty Images
Samir destaca a inexperiência como algo que o atrapalhou na luta contra as lesões. Aponta, sim, métodos menos modernos adotados entre 2013 e 2015, mas não deixa de assumir sua parcela de responsabilidade.
- Quando eu jogava, já no profissional do Flamengo, nós aquecíamos no vestiário, não era como hoje, com as equipes aquecendo no campo. Ficava no telefone, não estava na época de passar aquele rolinho na perna. Não tive a instrução de ir fazer uma mobilidade ou um aquecimento pré-jogo. Chegava, trocava de roupa, ficava mexendo no telefone. Aí o preparador físico chamava, a gente ia aquecer num espaço curtinho e daqui a pouco ia para o jogo.
- Cada pessoa reagia de uma forma, para muitos não acontecia nada, mas para mim trouxe malefícios. Eu era muito jovem, chegava às vezes do treino, comia, descansava um pouco e ia para a praia jogar futevôlei. Isso tudo foi me fazendo não performar muito bem. Óbvio que meus pais falavam alguma coisa, mas quando a gente é jovem entra aqui e sai por aqui (aponta para os ouvidos). Os resultados foram aparecendo, com uma lesão aqui, outra ali. Foi um mix de coisas: pouca instrução do clube, com profissionais que poderiam ter me orientado, eu ter escutado mais meus pais e descansar mais... São coisas que você só aprende com a idade.
As dores físicas trouxeram aprendizados, e Samir hoje tem rituais dos quais não abre mão para entrar em campo.
- Operei o joelho duas vezes, no menisco interno e externo. Operei também o tornozelo direito, subi para cabecear, caí desequilibrado e torci. Exceto essas três, foram lesões esporádicas, coisa de uma semana, nada que me fizesse perder jogos como eu perdia no Brasil. A Europa te ajuda muito nessas questões de performance.
- Hoje eu não consigo entrar em campo, seja treino ou em jogos, sem fazer uma mobilidade ou um aquecimento prévio. Eu aprendi, me ensinaram coisas que nunca fizeram por mim. Eu também não comia muito bem, e isso foi me prejudicando. Quando cheguei lá fora, aprendi que não era daquela maneira. Sempre digo nas minhas entrevistas que tive 50% de culpa por eu não ter me cuidado da forma que deveria e 50% das pessoas que não me instruíram da melhor forma.
Samir, que atuou pelo Waford, da Inglaterra, orienta os mais jovens a aprenderem o inglês desde o Brasil — Foto: Getty Images
Embora muito jovem ainda e com lenha para queimar, Samir, de 30 anos, cita cuidados psicológicos como fundamentais para o crescimento no futebol. No papo com os mais novos, indica a busca pela terapia e a obtenção de novos idiomas como chaves para o sucesso.
- Eu falo para quem é mais jovem do que eu: cuida da cabeça, se prepare física e mentalmente para você chegar bem no profissionalmente. E outra coisa superimportante: aprender novas línguas. Já aprender o que puder desde o Brasil. Aprender o inglês. Quanto mais camada de experiência você tiver, você vai sair na frente de muitos jogadores.
- Essa globalização, essas questões de língua, terapia, comer bem e fazer um treinamento complementar - que é coisa que não fazia e faço hoje em dia -, isso tudo vai te preparar para quando tiver a oportunidade de sair da base para o profissional. Ou até mesmo sair da base para o profissional de um clube do outro país, você chegar muito mais preparado.
Samir na comemoração do Flamengo do título da Copa do Brasil de 2013 — Foto: Alexandre Vidal / Fla Imagem
Campeão da Copa do Brasil em 2013 e do Carioca de 2014 pelo Flamengo, Samir cita o título nacional, conquistado a oito dias de completar 19 anos, como uma mudança de patamar na carreira.
- Aquilo foi um divisor de águas para mim. Se cheguei até aqui, aquela final me ajudou muito. O Flamengo, sem dúvidas, foi um divisor de águas na minha carreira. Agradeço muito ao Flamengo e a todos os clubes pelos quais passei, foram todos muito importantes, mas o Flamengo literalmente abriu as portas do mundo para que pudessem ver o Samir de verdade.
- Depois tive a oportunidade de jogar uma Libertadores, por mais que não tenha saído da maneira que nós queríamos, ela também foi boa para mim. Pude viver bons momentos com o Flamengo.
Emprestado ao Mazatlán até o fim do ano pelo também mexicano Tigres, Samir resolverá os próximos passos da carreira em dezembro. Seu atual clube tem prioridade para efetuar a opção de compra. Caso não o façam, o atleta fica livre para assinar um pré-contrato a partir de 1º de janeiro - o vínculo com o Tigres vai até junho de 2026.
- Está sendo uma experiência maravilhosa aqui no Mazatlán, cheguei há sete meses. É um clube que tem cinco anos de formação, é muito jovem, porém muito importante para o futebol mexicano. Minha entrada no México foi através do Tigres, que me comprou do Watford.
- Venho conversando com a diretoria para ver o que eles pensam para ver se querem me comprar. Minha primeira intenção é ajudar a equipe, jogar bem e, consequentemente, essa opção de ficar aqui ou não depende somente deles. Mas estou feliz aqui, é um clube legal, a cidade é muito boa.
Em entrevista com duração de uma hora ao Gringolândia, Samir falou muito de saúde mental, preparação fora de campo, apoio familiar, das saudades do Brasil e do início no Flamengo. Confira tudo abaixo.
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Saudades do Brasil e possibilidade de assinar pré-contrato em dezembro: como lidou com o assédio recente de clubes brasileiros?
- A volta para o Brasil sempre esteve no meu radar, porém mais no da minha esposa do que no meu (risos). Voltar para o meu país é sempre um motivo de felicidade, voltando para perto dos meus amigos e dos meus pais. Comprei minha casa há um ano e só a visitei agora nas férias. Ficar longe da minha casa é ruim, e isso seria um bom motivo para voltar.
Possibilidade de voltar facilitada pelo fim do contrato com o Tigres
- Sobre sondagens, a gente recebe, inclusive de clubes brasileiros, mas nada concreto ou que tenha ido para frente. Quando eu estava no Tigres, era um alto valor a ser pago, então alguns times do Brasil não seguiram adiante com essa tema. Acho que agora com a questão de não pagarem meu transfer pode melhorar essa situação. O clube pensa no custo de transfer , comissão, luvas e salário. Quando o jogador está livre, o cenário muda completamente. O meu cenário para dezembro é muito favorável. Eu estou jogando, estou performando, estou bem, graças a Deus, e o time está bem. Pensando primeiramente em ajudar a minha equipe, e a prioridade é do Mazatlán.
- Em dezembro, posso assinar pré-contrato com qualquer equipe, seja no Brasil, na Europa ou aqui fora. É sentar, estudar o que vai ser melhor para a minha família e para mim para que eu possa tomar a melhor decisão. Se tiver que voltar para o Brasil, eu vou voltar muito feliz porque já estou há 10 anos fora. Bate, sim, uma saudade do Brasil. Enquanto tiver lenha e tiver oportunidade de ficar aqui fora, eu vou ficar. A não ser que no Brasil tenha uma oportunidade muito boa para que eu possa voltar e fazer o que sei fazer melhor, que é jogar futebol.
Lembranças da Copa do Brasil de 2013 e a entrada na fogueira
- Eu vinha tendo muitas lesões, fiz jogos nas fases iniciais da Copa do Brasil, mas não estava em oitavas, quartas e semifinal por lesão. E eu voltei no primeiro jogo da final, no Paraná. Eu estava no banco com a chuteira desamarrada, e naquela época só três aqueciam. Comecei a amarrar a chuteira, o Chicão dá um agulhão e sente a posterior. Eu, com 18 anos numa final de Copa do Brasil, olha que responsabilidade...
- O Jayme olhou para o banco e falou: "Samir, aquece". Eu falei: "Seja o que Deus, parceiro, estou preparando e vamos embora". Aqueci, entrei e logo em seguida o Amaral fez aquele golaço que nunca mais fez na vida. Aquele empate foi maravilhoso. O Chicão não conseguiu se recuperar para o próximo jogo, eu permaneci durante a semana como titular. Tenho uma lembrança muito nítidca. Naquela época, a gente aquecia só no vestiário, e aí só escutava. A gente não tinha noção de como estava lá fora. Trocamos de roupa, fizemos a oração e saímos para o campo. Quando desce a escadinha para o túnel, cara, eu vejo tudo preto e vermelho. Não tinha sequer uma cadeira vazia, eu não conseguia ver um espaço vazio.
Apesar de ter saído com 20 anos, Samir fez 92 jogos, marcou quatro gols e conquistou dois títulos pelo Flamengo — Foto: Ricardo Oliveira / Agência Estado
Maracanã vermelho e preto
- Os relatos da minha família é que as pessoas estavam pulando a catraca, e eles falaram que assistiram ao jogo todos apertados no Maracanã Mais. Quando entrei e vi aquela imensidão em tudo vermelho e preto, não via nada vazio... Foi uma coisa muito, muito linda de se ver, tenho gravado na minha mente. Quando você faz uma boa jogada no início do jogo, a confiança vai lá em cima.
- Na primeira bola do jogo, o Marcelo Cirino estava voando baixo. Ele pega uma bola, dá o tapa no fundo... Eu com 18 anos para acompanhar aquele cara, ele foi dar um tapa para a área, consegui dar um biquinho e a bola saiu para nós. Falei: "Opa, estou no jogo". Graças a Deus o final foi excelente, fomos campeões, e isso para mim foi muito importante porque me consolidou no profissional. Há muitas dúvidas se um menino da base vai suportar a pressão de jogar no Flamengo e manter o nível numa final.
- Aquilo foi um divisor de águas para mim. Se cheguei até aqui, aquela final me ajudou muito. O Flamengo, sem dúvidas, foi um divisor de águas na minha carreira. Agradeço muito ao Flamengo e a todos os clubes pelos quais passei, foram todos muito importantes, mas o Flamengo literalmente abriu as portas do mundo para que pudessem ver o Samir de verdade.
Mais declarações sobre a importância de cuidar da cabeça
- A parte psicológica é muito importante, falo isso porque faço terapia. Cuidar da mente para nós que somos jogadores de futebol é fundamental. A parte física, da alimentação... Isso tudo é muito importante para um atleta, isso já te ajuda de uma determinada idade para frente. Quando você começa lá de trás, você vai ter resultados muito melhores lá na frente.
- Isso tudo é um mix para um jogador jovem não pular etapas. Quando chegar no profissional, ele vai estar muito mais formado, coisa que, eu volto a falar, não tinha na minha época. Hoje até falo para alguns jogadores jovens: cuidem-se, vocês têm que se cuidar, porque essa formação é muito importante para você chegar já pronto no profissional. No profissional é onde se tem a prova de tudo. É para você não bater ali e sair rapidamente.
- Futebol hoje sabemos que é business. É muito difícil o jogador beijar o escudo e honrar a camisa que veste. Óbvio que vai honrar, mas não é como antigamente. Hoje o futebol está assim, e quem se preparar sai na frente. É ter uma boa base familiar por trás, uma boa equipe de gestão, é você se cuidar mentalmente. Isso tudo vai ajudar o jogador a não pular etapas na frente. Eu falo disso porque só fui me dar conta disso de psicólogo, de fazer terapia (bem depois)... Alimentação já me cuidava desde quando fui para fora, mas a questão mental é superimportante, porque se um jogador ou qualquer outra pessoa não tiver com a mente sã, é difícil.
Samir vestiu a Amarelinha tanto na base quanto no profissional. Tite o convocou para a Seleção em 2019 — Foto: Reprodução/CBF TV
- A terapia é superimportante não só para os esportistas, mas para todo mundo que tem a possibilidade de fazer. Tem gente que vive com apenas dois ou três salários mínimos e mal tem dinheiro para alimentar sua família, mas digo o seguinte: se tiver oportunidade de fazer, faça. Moro há 10 anos fora, você enfrenta questão de saudade, de proximidade com a família.
- Bato no Brasil e tenho que ficar 11 meses fora. Isso vai te criando ansiedade, frustrações. Eu, além de jogador, sou empresário e tenho uma empresa de construção (a construtora Staj Group), o que me faz lidar com alguma coisa de fora. Isso vai me gerando alguns problemas emocionais que eu tenho que estar cuidando. A terapia me ajuda muito, não só a mim, mas também à minha esposa, que faz também.
- Outro dia eu estava concentrado num hotel que é de frente para a praia. Via os barcos indo para a ilha, o pessoal desfrutando de um sol maravilhoso. Chamei meu companheiro de quarto e falei: "É, rapaz, o pessoal tem liberdade e pode fazer o que quer, e a gente está aqui preso". Mas ao mesmo tempo disse: "Nós, jogadores de futebol, somos privilegiados. Temos fama, dinheiro, prestígio e mais coisas positivas do que negativas, porém nada paga sua liberdade. Nós não temos liberdade".
Samir em ação pelo Tigres, do México, em novembro de 2024 — Foto: Omar Vega/Getty Images
- Qual a minha diferença para qualquer pessoa, temos tudo isso que citei: glamour, dinheiro, vivemos bem, temos bons carros e uma vida maravilhosa, porém não temos liberdade para usufruir de tudo isso. Muitas pessoas falam que queriam a minha vida. Vocês trabalham, sofrem com ônibus - eu sofri também -, não foi fácil chegar aqui... Tive que trabalhar e passar pelo mesmo perrengue para chegar aqui. Cheguei aqui por muito sacrifício e mérito. Muitas pessoas falam que jogador de futebol não é profissão.
"Será que aguentariam?"
- Quando falam de trocar a vida pela minha, pergunto: será que ela aguentaria ficar 10 anos fazendo a mesma coisa preso em hotel. Graças a Deus, nunca bebi na minha vida, mas quem gosta será que aguentaria? Aguentaria treinar bem, a necessidade de performar bem? As pessoas só veem os 90 minutos, mas não vem o que está por trás. É treinamento, angústia.
- A nossa vida é boa, mas não é esse mar de coisas boas que as pessoas falam. Tem coisas ruins, como concentração, viajar o tempo todo, estar longe da família e dos amigos, ter que matar três leões por dia. Mas vocês têm a liberdade, e a liberdade não se paga. É a pessoa terminar de trabalhar num trabalho árduo e pesado, mas chegar no fim de semana e poder beber o que quiser, comer 10 quilos de churrasco... Não tem a mesma vida financeira que um jogador, mas tem a liberdade.