Reescrevendo a própria história, Ceni se declara ao Flamengo: "Especial e diferente trabalhar aqui"

Um Rogério Ceni sorridente, consciente e diferente.

Há 100 dias no Flamengo, o treinador não se deixa levar pela empolgação da oportunidade de conquistar o principal título de sua curta carreira como treinador. O que não significa que não tenha noção da oportunidade que tem a partir deste domingo, quando precisa vencer o Internacional, no Maracanã, para assumir a ponta do Brasileirão e depender apenas de si para levantar o título na última rodada. Um profissional em reconstrução para repetir à beira do campo o sucesso que teve debaixo das traves.

Tricampeão brasileiro pelo São Paulo, Rogério sabe do peso de conquistas consecutivas. Maior ídolo da história do clube paulista, sabe também o tamanho da pressão de um clube de massa. O que não sabia era da importância de um título pelo Flamengo muito além do ambiente do futebol:

Rogério Ceni passa a limpo os 100 dias no Flamengo em entrevista ao EE — Foto: GE
1 de 7 Rogério Ceni passa a limpo os 100 dias no Flamengo em entrevista ao EE — Foto: GE

Rogério Ceni passa a limpo os 100 dias no Flamengo em entrevista ao EE — Foto: GE

- Eu trabalhei no São Paulo durante tantos anos e é um clube de massa, de presença do torcedor. Mas aqui, assim, é uma atmosfera diferente. Ser Flamengo... Primeiro, eu não tenho um conhecimento muito grande do Rio de Janeiro. Tinha menos ainda antes de vir morar. Mas você vê que isso é uma razão de vida, principalmente essa parte da cidade onde existe uma pobreza maior, onde a única vitória que muita gente tem aqui é a vitória do Flamengo.

“É muito mais uma inserção social, é você estar inserido naquela tribo, naquele grupo que tem como Flamengo a vitória da sua vida. A vitória do Flamengo é a grande vitória que é possível ele ter na sua vida. É especial e diferente poder trabalhar aqui”

Em bate-papo de cerca de 30 minutos com o Esporte Espetacular, Rogério Ceni demonstrou leveza após tanta cobrança no início de sua passagem pelo Flamengo. Baixar a guarda, por sua vez, está fora de cogitação. O duelo contra o Inter nesta tarde é a única coisa que importa, e nem mesmo a possibilidade de ser campeão no Morumbi o faz perder o foco.

Confira todas as respostas da primeira exclusiva do treinador no comando do Flamengo. Uma entrevista com validade até a próxima quinta-feira, data do encerramento do Brasileirão. Dali para frente, nada importante no momento.

Rogério Ceni concede entrevista exclusiva ao EE — Foto: GE
2 de 7 Rogério Ceni concede entrevista exclusiva ao EE — Foto: GE

Rogério Ceni concede entrevista exclusiva ao EE — Foto: GE

Por que acreditar?

- Primeiros, porque nós estamos no Flamengo. Isso já é um fato importante. E se você remeter a história não tão distante, em 2009, era uma situação muito parecida com essa, né? Rodada 36, o Flamengo estava atrás do São Paulo naquela época junto com o Internacional, se não me engano. E na rodada 37 pôde assumir a liderança mantendo na última rodada naquele jogo contra o Grêmio. Então, é uma história muito parecida, o enredo: um time carioca, um time paulista, um time gaúcho. Os três times que só muda do Inter para... Desculpa, os três mesmos times. Além do que, acho que o time vem rendendo bastante, rendendo mais, jogando um melhor futebol...

Agora, que vai ter dificuldade não tenha dúvida nenhuma. São dois adversários diretos, cada um com seu estilo de jogo, com total capacidade de levantar o título. Mas não tenha dúvidas que nós acreditamos e, consequentemente, o torcedor também.

Comportamento como técnico mudou?

- Primeiro, que é uma cidade extremamente bonita, né? Eu não tive a oportunidade de ir à praia até hoje, quase 100 dias no Flamengo, mas não deu tempo. Acaba trabalhando bastante. Eu sou sempre a mesma pessoa, para ser sincero. Tento ser. Acho que não existe mandar, não existe chefe no futebol. Existe conduzir bem o elenco, e acho que quando você debate algumas coisas, no campo de jogo ou nos treinamentos, é extremamente válido. Cada um tem sua experiência, experiência de vida, e aqui não é diferente.

Falamos bastante, conversamos bastante, durante o jogo há muita cobrança, isso é fato, mas tenho uma relação extremamente tranquila e boa com eles. Com o Gabriel, que você cita, ou com qualquer um dos outros jogadores. É uma relação franca, aberta, tranquila... Como comandante, ocupo uma função onde tenho que cobrar, que pedir, que exigir, taticamente tenho que fazer com que o time funcione, mas a relação no dia a dia é extremamente tranquila.

Rogério Ceni, técnico do Flamengo, em entrevista ao EE — Foto: Janir Júnior / GE
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Rogério Ceni, técnico do Flamengo, em entrevista ao EE — Foto: Janir Júnior / GE

Pai colorado

- Tenho certeza absoluta que ele torcerá primeiro pelo filho dele. E essa relação de fanatismo acho que ficou para trás há muito tempo, depois que o filho começou a jogar futebol em outros clubes, trabalhar como treinador. Meu pai já foi Fortaleza contra o Inter, já foi São Paulo contra o Inter... Então, acho que ele quer o bem e o sucesso, logicamente, da minha carreira. Ele tem 82 anos, meu pai é um cara que me inspira muito, sempre tomou decisões, é um pai fantástico. E tenho certeza que vai estar desde já torcendo para esta primeira final, que pode nos levar ao jogo do Morumbi. Ele vai estar, sem dúvida nenhuma, com a camisa do Flamengo e torcendo pelo Flamengo.

Superstição ou manias?

- Trato todos os jogos como sendo muito importantes. Para chegar nessa condição hoje, acho que chegamos na rodada 21 ao Flamengo, que vinha de duas goleadas, para o São Paulo por 4 a 1 e para o Atlético-MG por 4 a 0. Então, vim numa situação muito delicada, muito difícil, onde as pessoas não acreditavam muito na resposta desse time para o título brasileiro. Eu sou um cara que trabalha muito analisando adversários. Estamos quase 14h e ainda vai longe. Cheguei quase 7h30 da manhã e só vou embora com tudo pronto. Amanhã começo a trabalhar com as coisas do Internacional, mostrar os vídeos... Então, trabalho 7, 8, 10, 12 horas por dia. Sempre gostei muito do trabalho.

Tenho uma comissão que se dedica bastante para adquirir todas as informações do Inter e só vou embora depois que entender que o dia está finalizado com o que planejei, que eu tenha minha noção do que vou fazer no próximo dia, do que vou trabalhar em cima do adversário, do meu time. E isso não muda absolutamente nada, porque sou dedicado todos os dias. Não me dedico mais ao Internacional do que me dediquei quando cheguei na primeira rodada. O futebol, já é meu quarto ano como treinador, e você tem um plano de jogo a seguir e que você acaba trabalhando. Vira uma rotina.

Rogério Ceni comemora gol com Gabigol — Foto: André Durão
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Rogério Ceni comemora gol com Gabigol — Foto: André Durão

Perde o apetite?

- Não. Não, não, não... Sou a mesma coisa todos os dias. Sei da importância do jogo, não tenha dúvida nenhuma, mas isso não pode mudar o profissional. Me acostumei ao longo de 30 anos no futebol a ter decisões importantes, seja como atleta e até treinador, apesar da curta carreira. Para chegar até aqui, tiveram decisões importantes para que chegasse ao Flamengo e sempre as enfrentei da mesma maneira. Então, não perco a fome. Até gostaria de perder um pouco para ser sincero, para não engordar tanto, né?! Mas sou sempre a mesma pessoa, durmo sempre as mesmas horas, poucas por noite, trabalho todos os dias, observo cada vez mais o adversário para tentar, dentro do nosso estilo de jogo, tirar proveito do que possa acontecer.

Flamengo muda patamar na carreira?

- Eu acho que não existe uma avaliação definitiva no futebol. Ninguém ganha sempre, ninguém é sempre um perdedor. A cada campeonato, cada título, você tem uma nova chance de escrever a história. Você nota que trabalhar em um clube como o Flamengo é realmente diferente na vida de um profissional. Diferente no bom sentido, de grandeza, de trazer coisas boas, grandes desafios... E me sinto completamente preparado para isso. Sobre trabalhar com grandes jogadores, quando eu cheguei o elenco não era o mesmo de hoje.

Lembro que no primeiro jogo eu não tinha Isla, Pedro, Diego Alves, Rodrigo Caio, Diego Ribas, Gabriel com dores no tornozelo e não esteve presente nas decisões de Copa do Brasil e Libertadores, ou somente alguns minutos. Então, se for ver do time que hoje temos como titular... Thiago Maia teve uma lesão no primeiro jogo com o titular. São sete, oito jogadores que não estiveram no começo da temporada com a gente. Fomos para alternativas no elenco, que são ótimas, mas quando tem as trocas você cai um pouquinho. Você já está usando jogadores que normalmente saem do banco, jogaram no começo, e você fica com pouca oportunidade de mexer no time.

Rogério Ceni abre o jogo sobre o trabalho no Flamengo — Foto: Alexandre Vidal / Flamengo
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Rogério Ceni abre o jogo sobre o trabalho no Flamengo — Foto: Alexandre Vidal / Flamengo

O elenco hoje eu acho que é mais bem treinador, mais bem condicionado fisicamente. Não conheço nenhum treinador que chegue de um dia para o outro e conserte o time, ou faça alguma coisa drástica no time. Pode ser que ele vença, pode ser que ele perca, mas o conceito não será implantado em uma semana, um mês.

Chegamos para uma decisão de Copa do Brasil com um dia de treinamento e no oitavo dia houve a decisão no Morumbi com a ausência de tantos jogadores. Depois, no 15º e 22º dia de trabalho, uma decisão da Libertadores onde levamos para os pênaltis. Uma decisão 10 contra 11 no Morumbi. No Maracanã, desculpa. Buscamos o resultado e, como em 2019, houve uma decisão por pênaltis. Lembro do Emelec, estava assistindo esse jogo, e dessa vez contra o Racing. Infelizmente, não passamos e começou uma nova preparação para o Brasileiro. Acho que estamos demonstrando um melhor futebol, uma evolução, que esperamos culminar com a conquista desse título.

Manias na área técnica

- Você tem que botar a mão no bolso, cruzar... (risos) Quando você precisa gesticular, mostrar, claro que vai ter o gestual. Quando eu falo para baixo, é o que eu gostaria que ele (jogador) feito. Normalmente, quando erra, eu falo o que eu vi no jogo e gostaria que o jogador tivesse executado. E eu gosto dessa participação na beira do campo. Falar, cantar o jogo, fazer da forma como treinamentos. Apesar de os jogadores serem extremamente capacitados para isso, treinados... Mas eu gosto de participar junto do atleta, acho que se sente mais representado. A mão no bolso, eu vou tentar melhora. Sei lá, colocar na cabeça para que não brinquem em relação a isso. Mas, independente de onde estejam as mãos, o importante é o jogo.

O dilema Pedro

- Concordo que o Pedro é extremamente talentoso. É um jogador com uma habilidade incrível frente a área, distinto do Gabriel. O Pedro é um jogador mais de referência. Acho que foi contratado até para encaixar bem. Por exemplo, o Michael foi contratado para o um contra um pelo lado, o Pedro foi contratado para ser um jogador de referência já que o Gabriel é de mais mobilidade. Tenho treinado ultimamente os dois juntos para trabalhar em certas ocasiões do jogo. Acho que tem que existir um comprometimento cada vez maior deles na parte tática do jogo. O talento é indiscutível. É claro que você tem encontrar alternativas, mas também tenho que encontrar para ter o Everton Ribeiro, Arrascaeta, Gérson, Diego, Arão... Tenho que encontrar alternativas para todos, né?

Rogério fala sobre Pedro — Foto: Silvia Izquierdo/getty
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Rogério fala sobre Pedro — Foto: Silvia Izquierdo/getty

Assim, a princípio, acho o time bem encaixado da maneira que ele joga, mas nada impossível usar Pedro e Gabriel em determinado momento do jogo, usar Pedro como referência em um momento do jogo. Claro que não gostaria de deixar o Pedro no banco, mas para colocá-lo eu tenho que tirar o Everton, o Arrascaeta... Não cabem 12. Nós temos que jogar ainda com 11. Tento todos os dias encontrar uma forma para que ele tenha mais minutos em campo, porque é um jogador talentoso e todo mundo gosta de ver os jogadores com mais talentos. Mas repito: do meio para frente, especialmente, tem jogadores de um contra um interessantes. Não é fácil, a concorrência é muito grande.

Ausência de torcida

A única coisa que eu posso te garantir é que faz muita diferença o Maracanã cheio com o torcedor do Flamengo. Isso é uma coisa incontestável. Pelo fato de ter enfrentado muitas vezes, eu sei que faz a diferença. O torcedor contagia os jogadores. É algo que mexe com o brio, a alma dos jogadores. O Maracanã por si só já é um templo sagrado do futebol brasileiro. O Maracanã cheio com a torcida cantando é combustível que não acaba mais para o atleta.

Então, acho que influencia, sim, no rendimento dos jogadores. Não que ele deixe de correr, mas é combustível injetado o tempo todo e claro que ele se concentra um pouco mais dentro do jogo. Os estádios vazios têm sido bem monótonos, difíceis de manter a concentração. Não posso garantir que com o estádio cheio o Flamengo já seria campeão, é uma coisa que é impossível falar. Mas que, realmente, seria um ganho para esses jogadores, não há dúvidas.

Rogério comenta a ausência dos torcedores no estádio — Foto: André Durão/GloboEsporte.com
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Rogério comenta a ausência dos torcedores no estádio — Foto: André Durão/GloboEsporte.com

Ansioso para encontrar o torcedor?

Sem dúvidas nenhuma, mas mais ansioso para que o mundo volte, né?! A viver uma rotina que nos acostumamos a vida inteira. De ver gente na rua, de poder fazer uma entrevista com vocês sem máscara no estúdio, de ver o torcedor lotando o estádio, vocês mesmos podendo cobrir um treinamento no CT, os protocolos voltem ao normal. E, com certeza, ver o Maracanã cheio, que seria um prazer muito grande para mim como treinador.

Título no Morumbi?

Acho que é a tabela do campeonato desse ano, né?! Eu vivi uma boa parte da minha história, a primeira parte do livro da minha vida foi escrito no Morumbi. É inegável essa relação. Depois, fui para o Castelão, no Fortaleza, e pude escrever a segunda parte, como treinador. E agora espero escrever no Maracanã. Mesmo não tendo a presença do torcedor do Flamengo, mas espero escrever pelo Flamengo essa história. Seria um orgulho muito grande, uma vitória muito grande na minha trajetória como treinador, e um presente para o torcedor flamenguista por tudo que passou esse ano.

Um torcedor que põe em média, se não me engano, 50 mil pessoas no estádio e ter que estar com o estádio vazio, sem poder acompanhar o time do coração... Para mim, seria motivo de orgulho, e tenho muito orgulho por trabalhar no Flamengo. É uma honra para mim poder chegar na última rodada, não lembro em qual entrevista falei, podendo vencer o Brasileiro. Independente de ser no Morumbi, isso é uma casualidade total, mas gostaria de poder vencer com o Flamengo.

Fica no Flamengo após o Brasileiro?

Aqui, temos que viver o momento. E o momento é o mais importante que existe. Estamos focados muito, nem no São Paulo, muito no Internacional. Porque só vai existir o jogo do Morumbi se vencermos o Inter no Maracanã. Se eu disser para você que há tempo para pensar no futuro, o que vai ser, vencendo ou não vencendo, eu preciso fazer que a vitória de domingo aconteça. Aí, a partir de segunda-feira ou de domingo à noite, acontecendo a chance de ser campeão, vamos pensar no São Paulo Futebol Clube. Não há tempo para pensar no futuro distante. No futebol, não pode pensar muito no futuro. Tem que focar realmente no presente. O passado está feito, o futuro é uma incerteza, mas o presente é uma oportunidade que temos de sermos campeões.

Fonte: Globo Esporte