Paixão que arde sem parar: há 25 anos, o Flamengo virava Carnaval em homenagem da Estácio de Sá

- Meeeeengooooo!

O grito ecoado na noite do dia 27 de fevereiro de 1995 por Dominguinhos do Estácio era próprio de um Maracanã, mas o lugar era outro marco civilizatório do Rio de Janeiro. Na Marquês de Sapucaí, o palco do desfile das escolas de samba, o intérprete iniciava o desfile da Estácio de Sá, uma proposta ousada de misturar futebol e Carnaval para homenagear o centenário daquele ano: o Flamengo (veja trechos no vídeo acima).

O samba cantado na Sapucaí acabou eternizado a cada jogo do Flamengo no Maracanã, quando os torcedores o entoam a plenos pulmões até hoje, 25 anos depois.

O tricolor que foi flamenguista por um Carnaval

O que pouca gente sabe é que, entre os compositores do samba, havia um torcedor do Fluminense. David Correia, renomado autor de sambas especialmente na Portela, se juntou a nomes consagrados e outros começando a carreira para construir o samba.

- Eu sou tricolor. Estava de férias na Portela e saí por aí. Fui para o Salgueiro e ganhei também. Na Estácio, quando cheguei lá, o enredo era Flamengo. E ganhamos. Para mim, foi tranquilo. Esse negócio de paixão por qualquer coisa, por escola de samba, futebol, depende muito da pessoa. Eu sou Rio de Janeiro. Gosto de falar de qualquer um, até do Flamengo, Vasco, Botafogo - lembrou David.

Comissão de frente da Estácio tinha artistas caracterizados como jogdores; ao fundo, o carro abre-alas — Foto: Reprodução

Comissão de frente da Estácio tinha artistas caracterizados como jogdores; ao fundo, o carro abre-alas — Foto: Reprodução

Um dos compositores do samba que não aparece na versão oficial é Gustavo Clarão, que depois faria sucesso na Viradouro, chegando, inclusive, a ser presidente da escola de Niterói. Na lista oficial, quem assina é seu pai, Deo. Mas ele lembra com detalhes das reuniões para compor a música e da forma como David se engajou.

- Ele dizia que até virava flamenguista para ganhar o samba. Botava camisa do Flamengo e tudo. Na realidade ele botou, porque ele desfilou - contou Clarão.

- Para ganhar, a gente virava Flamengo na hora - confirmou, rindo, David.

O outro patamar da Estácio

Os compositores do samba simbolizam bem o momento que vivia a Estácio, campeã do Carnaval em 1992.

- O David Correa impôs muito o estilo dele de melodia, mais característico do David, que ele era o bambambam em tudo que é escola. Mas ali foi para fazer um samba que pegasse, que os refrães pegassem bastante na avenida. Acabou pegando no Maracanã também. Quando você mistura escola de samba com futebol, não sou a favor, mas foi bonito, legal, falando do Mundial de 81, e não tem preço escutar seu samba com a galera cantando no Maracanã - contou Clarão.

Havia nomes consagrados em todos os setores. O intérprete oficial era Dominguinhos do Estácio, que já havia sido campeão pela Imperatriz Leopoldinense e ainda marcaria época na Viradouro. O casal de mestre-sala e porta bandeira era formado por Claudinho e Selminha Sorriso, que ano seguinte iriam para a Beija-Flor de Nilópolis, onde marcariam época e colecionariam títulos.

O meste de bateria era Ciça, até hoje uma das referências do Carnaval. E o carnavalesco era Mario Borriello, campeão com o Salgueiro em 1993, com o famoso samba "Peguei um Ita no Norte".

- Quando a Estácio ganha em 1992, ela se coloca em outro patamar. Em 1995, havia a expectativa de que, com o enredo sobre o Flamengo, ela brigaria pelo título. São os anos de ouro. Foi a última vez que a Estácio chegou antes do décimo lugar. Talvez esse desfile tenha sido o canto de cisne - lembrou o historiador Luiz Antônio Simas.

Jogadores do Flamengo na época, Sávio e Valber desfilam em carro alegórico da Estácio — Foto: Reprodução

Jogadores do Flamengo na época, Sávio e Valber desfilam em carro alegórico da Estácio — Foto: Reprodução

Desfile é marcado por polêmicas

O desfile, porém, foi cercado de polêmicas. Foi a primeira vez que uma escola de samba homenageou um clube de futebol, o que suscitou críticas sobre a conveniência desta mistura. Em 1998, a Unidos da Tijuca seria rebaixada ao homenagear o centenário do Vasco.

- Eu estava na Sapucaí, estava no setor 6. Vi várias pessoas que não eram flamenguistas, que se recusaram a ver a escola quando a Estácio entrou na avenida - contou Simas.

Por outro lado, os rubro-negros se emocionaram. Gustavo Clarão, um deles, veio tocando cavaquinho no carro de som e até hoje não esquece do início do desfile.

- A arrancada foi sensacional. Mas é o que te falei: torcida do Flamengo, muita gente torcendo, até quem torcia para outra escola de samba caiu no samba na arrancada pelo Flamengo. Depois foi esfriando. A escola passou animada, a arquibancada que deu uma murchada.

Outros quesitos também foram problemáticos para a escola. Por exemplo, o último carro alegórico, que trazia os jogadores campeões mundiais de 1981, fazia referência ao Japão, mas ídolos como Zico e Junior acabaram passando escondidos na alegoria, pouco visíveis para o público.

A melhor colocação desde então

A expectativa de brigar pelo título não se confirmou. A Estácio ficou em sétimo lugar no Carnaval. O que, na época, poderia não ser uma posição muito honrada, acabou se tornando o melhor resultado da escola nos últimos 25 anos.

Depois daquele ano, a Estácio acumulou decepções e caiu diversas vezes para o grupo de acesso. Em 2020, estará de volta ao Grupo Especial e abrirá os desfiles neste domingo, a partir das 21h. O enredo será bem diferente do Flamengo: a escola irá falar do papel da pedra na história da humanidade.

Mas o desfile de 1995 segue vivo. Clarão, que hoje mora nos Estados Unidos, ainda se emociona a cada vez que ouve o samba.

- Ah, isso arrepia em tudo quanto é lugar. Montamos uma torcida chamada Fla-USA aqui em Orlando. Vejo todo mundo cantando meu samba aqui. Aí no Rio, beleza, mas aqui, todo mundo sabendo o samba? É o que falei: é o Flamengo, né? É a nação, religião. Ouvindo no estádio eu me arrepio todo, filmo, gravo, mas até hoje meu filho, que ainda vai, filma pra mim e manda. Todo mundo manda os sambas filmando a torcida, é muito emocionante.

Para comprovar isso, basta ir em qualquer jogo do Flamengo. Onde estiver a torcida rubro-negra, alguém irá puxar as primeiras palavras:

"Cobra-coral, papagaio vintém; vesti rubro-negro, não tem para ninguém"

A letra do samba da Estácio de Sá sobre os 100 anos do Flamengo:

O céu rasgou

Na noite que reluzia

Um show de estrelas

Brilhou nos olhos

De um novo dia

A poesia

Enfeitada de luar

Encantou o Estácio (ó paixão)

Paixão que arde sem parar

É Mengo, tengo

No meu quengo é só Flamengo

Uh ! Tererê

Sou Flamengo até morrer

Seis jovens remadores

Fundam o grupo de regatas

Campeão o seu destino (ô)

É ganhar em terra e mar

Fazendo sol

Pode queimar, pode chover

Vou ver Fla-Flu

Fla-Vas vou ver

Diamante Negro, Fio Maravilha

Domingos da Guia, Zizinho, Pavão

Gazela Negra

Corre o tempo no olhar

Será que você lembra

Como eu lembro o mundial

Que o Zico foi buscar

Só amor

Na alegria e na dor (ôô)

Parabéns dessa galera

Cem anos de primavera

Cobra coral

Papagaio vintém

Vesti rubro-negro

Não tem pra ninguém

Fonte: Globo Esporte