O direito de zoar

O Mundial de Clubes prometia ser o paraíso dos secadores. Quando a competição começou... torcedores dos clubes não representados sentiam uma distraída inveja. Claro que queriam estar lá... mas havia risco de goleada, surra, humilhação. De quanto o Botafogo iria perder do Paris Saint-Germain? O Chelsea surraria o Flamengo. Fluminense x Borussia Dortmund? Rá.

Veio a competição e os temidos malvadões começaram devagar. O Palmeiras pressionou o Porto. O Fluminense quase ganhou do Borussia. O Botafogo derrotou o PSG. O Flamengo detonou o Chelsea. De repente... bateu aquele temor. E se...

E se... um brasileiro ganhar a taça cheia de órbitas? Teríamos um novo e incontestável soberano local — cujo trono seria absoluto, inquestionável. Bateu aquele frio na espinha secadora.

Mas veio o mata-mata... e nossas carruagens, uma a uma, foram virando abóbora. O Botafogo perdeu do Palmeiras que perdeu pro Chelsea que ganhou também do Fluminense. Alívio extremo no reino da secação. E os aliviados arautos do apocalipse puderam deixar o exílio e retomar suas escrituras.

O desculpômetro foi ligado. O Flu ganhou da Inter de Milão? Os italianos estavam em crise. PSG x Botafogo? Os franceses jogaram desfalcados. Chelsea x Fla? Estava quente, era pré-temporada. Tudo verdade... se encaixado na história certa.

O torcedor se alimenta de sua narrativa — ele acredita sinceramente que o Flamengo só ganha se jogar como Flamengo (a não ser quando ganha sem jogar), que há coisas que só acontecem ao Botafogo (boas e ruins), que não existe impossibilidade para o Fluminense... e que o Palmeiras já tem Mundial (em 1951).

Quando desejo e realidade se desencontram, claro, o problema é a teimosia da última. Se os fatos estão contra mim, já dizia o profeta, pior para os fatos. A grande diversão do certame foi ver essa Copa do Mundo de narrativas disputada nos gramados sociais. Eram memes, posts, comentários, tuítes, análises, contra-tuítes... a arquibancada fragmentada em milhares e milhares de gritinhos.

Amanhã, enfim, teremos a grande final. Neste corner, representando o Clube de Regatas do Flamengo, de short azul, luvas brancas e cabelo de Cucurella... o Chelsea Football Club de Londres! No outro corner, representando o Botafogo de Futebol e Regatas, de short azul, luvas vermelhas e estilo demolidor... oParis Saint-Germain Football Club... de Paris!

A final terceirizada incrementa a decisão real. Em jogo está o sagrado e indefectível direito de zoar. Se der PSG, o torcedor do Botafogo arrotará superioridade. Se der Chelsea — o torcedor do Flamengo esgotará a empáfia do peito.

Esse título onírico, obviamente, não será reconhecido por ninguém. Se der PSG, os palmeirenses dirão que ganharam do Botafogo. Se der Chelsea, eles e os tricolores lembrarão que o Flamengo não enfrentou João Pedro. O Fluminense postará que foi o melhor brasileiro na quarta posição. Assim seguirá nosso campeonato infinito.

Todas as quatro torcidas deixaram os EUA com algum motivo de orgulho — e com o desapontamento natural de ver que os monstros não eram moinhos de vento. Em 2029 tem mais... promete a Fifa. É hora de zerar a pedra e voltar ao início da montanha. É um sonho impossível? Talvez. Mas... valeu a pena sonhá-lo. E valerá, certamente, sonhar de novo.

Fonte: O Globo
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