O filme "Uma Noite em Miami" é uma produção mista entre ficção e realidade. Nela, o roteirista Kemp Powers conta a história do encontro entre Malcolm X, Muhammad Ali, Jim Brown e Sam Cooke em um quarto de hotel em Miami, em fevereiro de 1964, depois da surpreendente vitória de Ali sobre Sonny Liston. O que se passou naquela noite é um mistério. Guardadas as devidas proporções e motivações, Leônidas da Silva, Célio de Barros e Togo Renan Soares, o Kanela, dividiram a mesma cena em 1935, com o escudo do Sport Clube Brasil, do bairro da Urca, no Rio de Janeiro.
Principal astro do futebol brasileiro nos anos 30, Leônidas da Silva teve uma carreira estrelada cercada de algumas polêmicas. Viveu em uma época na qual amadorismo e profissionalismo estavam em franco embate ideológico, no qual Célio de Barros era um personagem central, a favor da manutenção do modelo amador.
Kanela, outra figura polêmica por seu temperamento explosivo, dividia-se entre futebol, basquete e polo aquático, como um dos grandes nomes do cenário esportivo do país, sendo posteriormente o técnico bicampeão do mundo de basquete em 1959 e 1963.
Antes de chegar a 1935, é necessário apresentar o cenário do Sport Club Brasil nos anos anteriores. O clube, fundado em 1912 e presidido por Célio de Barros, que deu nome ao estádio de atletismo do Complexo Esportivo do Maracanã em boa parte de sua existência, começou sua história no futebol do Rio de Janeiro na terceira divisão, na qual ficou entre 1914 e 1916.
De 1917 a 1923, jogou o que seria a segunda divisão até a criação da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), surgida de uma cisão com a Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT) com a bandeira de ser contra o profissionalismo, mas mascarada por ser contrária à utilização de jogadores negros.
Em 1924, então, o SC Brasil, finalmente, passou a jogar a primeira divisão do Rio de Janeiro, ao lado de Botafogo , Flamengo e Fluminense, entre outros. A trajetória do clube na competição foi marcada por campanhas ruins. Em 12 edições, foram seis lanternas (não havia rebaixamento), três penúltimos lugares, um antepenúltimo e dois abandonos.
Célio de Barros, que se dividiu entre atletismo, ciclismo, tênis e futebol, também trabalhou na então Confederação Brasileira de Desportos, embrião da Confederação Brasileira de Futebol. Fez campanha árdua contra o profissionalismo nos clubes, ao mesmo tempo em que viu a CBD levar jogadores para representar o país por dinheiro em detrimento de seus contratos com os clubes, como ocorreu com Leônidas em 1934, na época sob contrato com o Vasco .
Em 1934, inclusive, Célio de Barros decidiu abandonar o Campeonato Estadual justamente por discordar da fusão entre a AMEA e a Liga Carioca de Football, ligada à Federação Brasileira de Football. Com o Sport Club Brasil licenciado, surgiu então a figura de Fernando Giudicelli, importante jogador brasileiro, que havia atuado na Copa do Mundo de 1930, com passagens pela Itália, iniciando a vida dupla de empresário.
- O Conselho Deliberativo do S. C. Brasil tomou uma resolução extrema em relação à Amea: não se conformando com o pacto firmado pela Amea com a Federação Brasileira, o clube da Chacrinha pedirá o seu desligamento da entidade das argolas. Não se sabe ainda a que entidade se filiará o S. C. Brasil depois dessa resolução externada. O Sr. Célio de Barros, presidente do clube da faixa rubra, manteve a sua atitude de intransigência, mesmo diante do acordo - escreveu "O Globo" em sua edição de 22 de junho de 1934.
Ainda em atividade, Fernando sugeriu a Célio de Barros usar o Sport Club Brasil para criar um time de craques brasileiros em busca de arrecadação em amistosos pelo país. Na época, ele já intermediava transferências para o exterior, principalmente para a Itália.
Apesar da resistência de Célio, sua saída da presidência do clube no começo de 1935 abriu as portas para Fernando, ainda que ele permanecesse como importante conselheiro e representante do Sport Club Brasil. O dublê de jogador e empresário aproveitou a brecha e conseguiu convencer o então presidente Francisco Paula Ney a seguir a sua ideia.
A primeira excursão foi feita para a Bahia. Entrou em cena Kanela, como treinador do time. Ele havia se desligado do Botafogo no ano anterior por episódios de violência contra árbitros e estava afastado. Leônidas se juntou ao grupo um pouco depois com autorização da Confederação Brasileira de Desportos. O "Diamante Negro", sob contrato com a CBD e em litígio com o Vasco, havia defendido o São Cristóvão em amistosos em janeiro de 1935 antes de aceitar o convite do Sport Club Brasil.
No começo de fevereiro de 1935, Leônidas e Armandinho, outro jogador que atuara na Copa do Mundo de 1934, embarcaram para a Bahia. Disputaram seu primeiro jogo pelo Sport Club Brasil no dia 13 de fevereiro. O time bateu por 4 a 0 o Sport Club Victória. As informações dos gols são desencontradas nos jornais "O Globo", "Jornal dos Sports" e "Correio da Manhã": em alguns casos, apontam três gols de Leônidas; em outros, dois.
O jogo contra o Sport Club Victória foi o último de cinco amistosos do Sport Club Brasil na Bahia - no total, terminou a excursão com quatro vitórias (8 x 2 Sport Club Bahia, 3 x 1 Ypiranga e 5 x 1 Botafogo da Bahia, além do jogo contra o Victória) e uma derrota (1 x 2 Galícia, no primeiro jogo). Depois disso, embarcaram para Pernambuco.
Na edição do dia 19 de fevereiro de 1935, o "Diário de Pernambuco" fez rápidas entrevistas com os jogadores do S. C. Brasil. Inclusive, com Leônidas.
"Leônidas é o esplêndido ponteiro internacional. Joga de verdade.
- Vim rever o Recife. Gostarei de jogar um pouco - foi logo nos dizendo - Não fiz inimigos e sei que tenho admiradores... por bondade...
- Modéstia?
- Não. Digo o que penso.
- E da Bahia?
- Na boa terra, tenho muitos amigos."
Na sequência da excursão, o S. C. Brasil venceu a seleção B da Federação Pernambucana de Desportos por 2 a 1, goleou o Náutico por 4 a 1, empatou por 3 a 3 com a seleção pernambucana e venceu o Santa Cruz por 1 a 0. Entre informações desencontradas nos jornais da época, Leônidas marcou entre um e quatro gols nesses jogos. O sucesso nos amistosos fez o clube sonhar com uma mudança em sua história no Campeonato Carioca, mas a transformação em desilusão não tardou.
No dia 9 de março, Fernando e Kanela prestaram contas aos conselheiros, com a presença de jogadores, inclusive de Leônidas. A expectativa é de que todos pudessem defender o S. C. Brasil no Carioca de 1935. O clube havia se filiado à Federação Metropolitana de Desportos (FMD), fundada no ano anterior e que havia incorporado a AMEA ao seu quadro.
- Em seguida, ficou assentado entre os players que tomaram parte na reunião, dentre os quais podem ser citados Jaguaré, Armandinho, Leônidas, Luciano e Russinho, que todos estariam dispostos, em princípio, a integrar a esquadra do grêmio da faixa rubra, atendendo a sua permanência na divisão principal da Federação Metropolitana de Desportos - escreveu o "Jornal dos Sports", na edição de 9 de março de 1935.
A ilusão durou pouco. Na excursão a Santos, Leônidas já não estava mais com o time. Ele passou a negociar com o Botafogo, depois de flertar com clubes da Argentina e do Uruguai, o que se transformou em uma novela até o fim de seu litígio com o Vasco. Fernando abandonou o projeto para voltar ao exterior. A debandada fez o S. C. Brasil voltar a sua rotina. Depois de cinco rodadas no Carioca, com cinco derrotas, o time abandonou a competição por falta de condição financeira, endividado com outros clubes, que deveriam receber uma cota pelas vitórias.
O último jogo do S. C. Brasil no campeonato de 1935 foi uma goleada por 10 a 0 sofrida diante do Vasco no dia 16 de junho. Houve uma deliberação pelo afastamento do clube da FMD por dívidas no dia 18 de junho, mas, dois dias depois, os próprios dirigentes decidiram pela desistência.
- Foi por esse motivo (financeiro), que os dirigentes da agremiação da faixa rubra, em reunião efetuada na noite de ontem, resolveram afastar o clube do campeonato de futebol da Federação Metropolitana, continuando como participante somente do certame de basquete - escreveu o "Jornal dos Sports", na edição do dia 21 de junho de 1935.
Foi o início do fim do time da faixa rubra, com sede na Praia Vermelha, com vista para o Pão de Açúcar e opção pelo amadorismo. Até 1937, ainda atuou em outros esportes. Quase 90 anos depois, fica a recordação de um período no qual um clube chamado Brasil foi capaz de unir Célio de Barros, Kanela e Leônidas da Silva e passou a ser tratado com honras em uma excursão pelo Nordeste do país.