Em algum momento, ali pelo fim de 2019, o torcedor do Flamengo chegou a Canaã. A terra prometida. A era da supremacia, o paraíso em vermelho e preto. O longo, tenebroso e paulistizado inverno havia terminado. O riquíssimo e saudável Clube de Regatas assumia sem rivais o trono do futebol brasileiro. Era seu, apenas seu e de mais ninguém.
A grana jorrava. O futebol jogado era encantador. Os outros times tentavam sobreviver em vez de competir. Quem poderia desafiar tamanha soberania? Ah, o destino. Da Europa euros foram acenados na direção de Jorge, o Jesus. E, de repente, não mais que de repente, o domínio virou competição. Apareceu o Palmeiras. O Galo. O Flu-Diniz. E mais recentemente o Botafogo turbodólar de John Textor.
A soberania não compareceu. Mas permaneceu como desejo não realizado, como expectativa surrealista, como assombração para todos os que trabalham no Ninho do Urubu. Esta semana, o Fla-Tite despachou o Bahia sem susto na Copa do Brasil. Mesmo com uma impressionante coleção de desfalques, o time segue vivíssimo nas três competições que disputa. E ainda assim o torcedor está desconfiado, ressabiado, recalcitrante.
O Fla-Jesus de 2019 transformou o rubro-negro médio num devoto dogmático de sua própria fé. Aquele foi o Flamengo onírico, o Flamengo que sempre-deveria-ter-sido, o Flamengo verdadeiro, o 1981 redivivo. O sonho materializado e a riqueza financeira criaram um sarrafo inatingível. Ganhou Libertadores jogando mal? Vala! Perdeu Estadual? Cova! Assim como Ceni, Sampaoli e outros... Tite compete contra esse espectro.
O canto de “Real Madrid, pode esperar” trazia esse subtexto. O torcedor acalentava o sonho de um Real Madrid tropical. De 2019 pra cá... Fla e Palmeiras têm os mesmos números nacionais. E, para o torcedor rubro-negro, isso parece um empate com sabor de derrota. O Fla dormiu Brad Pitt em 2019... e acordou Bruno Gagliasso nos anos seguintes. Continuou com bom destaque, levou taças – mas... o Oscar de melhor filme, ou de time mais dominante e global, não veio.
Verdade que o Fla-Tite é mais eficiente que encantador. Mas... que time sobreviveria sem seu principal atacante (Pedro), seu ponta titular (Cebolinha), um lateral de seleção (Viña) e dois meias criativos com lesões recorrentes (De La Cruz e Arrascaeta)? Se as altas expectativas atrapalharam em algum momento... talvez as baixas agora ajudem. De repente, o Flamengo não é considerado favorito no Brasileiro nem na Libertadores. Há até quem trate comicamente como zebra.
Nostrapoli, o tarólogo profeta visionário necromante adivinhador que serve a esta coluna, trabalhou seus búzios, cartas e bolas de cristal e verificou com ampla certeza: há bons augúrios rubro-negros no horizonte. Involuntariamente, diz o arúspice vidente, o Flamengo entrou na posição astral ideal do horóscopo esportivo: a casa do favorito subestimado.
Poucas receitas de psicologia de vestiário funcionam melhor. É nessa hora que Tite, o coach mais coach de todos os tempos, vai galvanizar seus jogadores e dizer: ninguém acredita em nós! Vamos provar pra eles! Não será surpresa se este Flamengo ganhar duas, quiçá três taças. E ainda assim é capaz de aparecer alguém para reclamar da falta de espetáculo.