Mauricio Barbieri tem 38 anos e conta no currículo com passagens por quatro equipes profissionais. Desde o Red Bull em São Paulo até o Audax no Rio de Janeiro. Foi no Flamengo que teve o grande destaque da carreira, quando assumiu na vaga do demitido Paulo César Carpegiani e levou o time à liderança do Campeonato Brasileiro em 2018.
A equipe, no entanto, não se segurou. Mas Barbieri acredita que deixou ali uma semente no processo de construção do Flamengo arrebatador de Jorge Jesus, a quem é só elogios.
"Acho que tive minha parcela de contribuição para que o Flamengo chegasse na mão do Jorge Jesus como outro clube em relação ao que ele era. E acho que o Jorge tem todos os méritos", disse o treinador.
Em quarentena em casa, Barbieri esperou o dia aquietar no cuidado com os quatro filhos para conversar com a ESPN . Abordou suas curtas passagens por Goiás , América-MG e CSA , explicou o que acreditar ser o melhor posicionamento para Lucas Paquetá e também sobre Vinicius Junior, a quem considera um dos nomes fortes para o futuro próximo da seleção brasileira. Confira a íntegra.
O que um treinador pode fazer na quarentena? Estudar muito o futebol?
MB: Realmente não tem sido fácil com as crianças aqui em casa. Eu até tenho procurado estudar, mas vou te confessar que está difícil aqui (risos). Tenho mais gerido as brincadeiras e botado eles para treinar do que conseguido de fato estudar. Mas como treinador a gente vive 24 horas o futebol, está sempre acompanhando, sempre observando e refletindo sobre o que acontece. Nos raros momentos que tenho livre, como esse agora, tenho sempre procurado estudar e ver o que acontece.
São vários jogos antigos na tv nesse momento de pandemia. É bom beber na fonte assistindo aos jogos antigos de times como as seleções de 70 e 82?
MB: É legal, é bacana. A maioria dos grandes jogos todos os treinadores que estudam bastante já tinham visto. Mas é bom rever, é bom olhar o que era feito. Acho que muito se diz que não existem novidades, que o futebol tem reciclado os conceitos, tem mudado nomenclaturas. Evidente que houve uma evolução, não quer dizer que é para pior ou melhor. Não é nesse sentido. Mas em termos de intensidade de jogo, deslocamento, de número de ações e tudo mais. Acho que essas grandes seleções, as grandes equipes, não só seleções, são uma referência para todos nós, treinadores jovens como eu para a gente seguir o caminho aí e aprender com eles.
Há muita revisitação do passado nesse momento. Questionamentos sobre o potencial de Romário, Ronaldo e até Zico. O que acha disso?
MB: Acho que a gente precisa analisar dentro do contexto. Toda vez que você vai fazer uma análise tirando do contexto, se você quiser analisar o Zico, o Romário ou o próprio Ronaldo com as características do jogo hoje acho que é um equívoco. Assim como seria, por exemplo, analisar o Pelé sob a mesma ótica. O que a gente tem de valorizar os feitos e o desempenho que eles tiveram dentro daquela realidade que eles viviam ali. Todos eles tiveram desempenhos muito acima da média, desempenhos fantásticos e por isso têm os nomes gravados na história e por isso a gente fala deles até hoje, revisita os jogos e tudo mais.
Suas últimas passagens em Goiás, América-MG e CSA foram muito rápidas. Falta dar tempo ao trabalho dos técnicos no futebol brasileiro?
MB: Acho que sim, que existe um imediatismo que não é só do futebol, que se estende à nossa sociedade de uma maneira geral em função dos avanços tecnológicos que a gente teve, do acesso a informação rápida. Isso gera uma série de problemas que não tem só a ver com o futebol. As pessoas buscam cada vez mais informação mais rápido, daí a proliferação de repente das fake news. Uma série de problemas que a gente tem. E esse imediatismo também vai para o futebol. Acho que ele é amplificado com as redes sociais. Hoje existem muitos gestores, diretores que estão antenados ali e tendem a atender aqueles anseios de troca, de gente que não quer esperar e não dar tempo para as coisas acontecerem. Foi até bacana você tocar na pergunta anterior das grandes equipes e times. Todos eles levaram tempos para se solidificar. Acho que tem faltado paciência, sim. Até comentei isso numa conversa outro dia.
Eu vejo um exemplo meio Blockbuster do futebol. No sentido de que a Blockbuster produzia filmes para lançar toda semana. tTrês, quatro filmes, muitos de qualidade duvidosa. Isso tem acontecido um pouquinho com o futebol, a gente tem trocado demais as gestões técnicas e tem feito com o que o futebol tenha tido um nível inferior até ao que a gente deseja. Então creio que cabe a nós treinadores, o setor da imprensa, os próprios gestores, a gente fazer uma reavaliação sobre isso. Porque o que está acontecendo é que o futebol e a qualidade do jogo que a gente quer de maneira geral tem sido prejudicada.
Acredita que você fez parte desse processo do Flamengo? Começou com o Rueda, você com um time com mais posse, o que te veio na cabeça, eu fiz parte desse processo?
MB: Eu acho que sim. Eu acho que não só o Mauricio, mas diversos outros treinadores que passaram. Acho que o Flamengo entrou num processo de reconstrução a partir de 2013 e não estou com isso de maneira alguma invalidando uma história que veio antes, não quero entrar por aí. Mas acho que começou-se ali um processo de reestruturação, de organização do clube e esse processo passou por uma mão de uma série de treinadores. Acho que tive minha parcela de contribuição para que o Flamengo chegasse na mão do Jorge Jesus em outro clube em relação ao que ele era. E acho que o Jorge tem todos os méritos e teve uma competência incrível de usar todo esse histórico favorável, positivo a favor dele e fazer uma das grandes equipes que a gente viu nos últimos anos aí.
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O que te impressiona nesse Flamengo do Jorge Jesus?
MB: Acho que o comportamento defensivo tem sido essencial. Sei que tem batido recorde de gols, o ataque é realmente fantástico. Acho que o ataque conta com muito indíviduos com capacidade de desequilibrar, de realmente serem efetivos e fazerem a diferença. Mas uma das marcas que chama minha atenção é o comportamento da defesa, a sincronia que a última linha consegue ter para manter o time compacto, deixar os adversários em impedimento. Eles conseguem ser corajosos e agressivos e manter um nível constante. Pelo menos nesse último ano na atuação eu destacaria muito essa última linha do Flamengo.
Acredita que o Jorge Jesus tem margem para evoluir esse Flamengo ainda? O quanto essa parada prejudica a evolução de uma equipe assim?
MB: Acho que tem margem de evolução, sim. Acho que o Flamengo já tinha feito uma série de contratações importantes na chegada do Jorge. Agora fez outras, qualificou mais o elenco ainda. A gente pode dizer que o Flamengo tem 18, 20 jogadores de um nível muito próximo. Não vou dizer igual, mas num nível muito próximo. Isso dá força para que ele consiga se manter num nível de atuação muito alto mesmo se tiver de trocar por lesão, por cartão, enfim. Se ele entender que em algum momento precisa preservar algum jogador acho que tem margem para isso e conhecimento para usar da melhor maneira.
Além de que essas peças podem possibilitar a ele também usar de algumas variações que ele não tem usado ainda. E isso cabe a ele. Em relação à parada isso é ruim para todo mundo. Se serve de alento é que todos pararam, então todos vão voltar no mesmo nível, a não ser que alguém volte a treinar muito antes dos demais que é uma situação que não acredito que aconteça. Mas sem dúvida nenhuma é uma quebra num processo, uma quebra de um ritmo de trabalho. Para que se consiga de novo o mesmo nível de atuação com certeza vai levar um tempinho ainda.
Na sua passagem pelo Flamengo você teve uma oportunidade muito boa de trabalhar com os dois maiores talentos. Vinicius Junior e Paquetá. Conversa com eles ainda? Onde acredita que seria o melhor posicionamento do Paquetá, um dilema que segue no Milan?
MB: Converso ainda, mas não é uma coisa constante. De vez em quando. Quando ele (Paquetá) passou por um momento e saíram notícias de que ele estava um pouco depressivo, chateado com alguma situação eu mandei mensagem para ele. A gente conversou um pouquinho. É um garoto especial. Acho que na verdade o que acabou acontecendo foi que eu recuperei ele para a posição de origem dele. Ele na base sempre foi um meio-campista. Na verdade o (Reinaldo) Rueda em um determinado momento precisava de um atacante. Pelo menos foi a história que eu ouvi. Ele em conversa com o Jayme (de Almeida), que era o auxiliar dele, ouviu que o Paquetá poderia fazer aquele função. Ele utilizou o Paquetá e ele acabou tendo destaque como quase um atacante, um 9 muitas vezes. Na chegada do (Paulo César) Carpegiani ele ainda estava sendo usado mais na posição de ataque. E aí um dado momento o (Everton) Ribeiro vinha atuando mais como meio-campista, a gente acabou invertendo.
O Ribeiro foi para uma posição que ele já tinha feito na carreira, que é de um meia pelo lado, vindo jogar um pouquinho por dentro. E o Paquetá voltou para o meio-campo. E ele tinha um ímpeto muito grande de se movimentar, de aparecer na frente, de vir buscar o jogo aqui atrás. E eu tentei usar esse ímpeto que ele tinha, dar essa liberdade para ele para que ele ajudasse na organização das chegadas, mas que também chegasse dentro da área. E acho que ele teve realmente muitos bons momentos assim porque ele participava da organização, mas também fazia gols, especialmente de cabeça, ele é muito bom cabeceador. Sobre essa questão eu vejo o Paquetá nessa função. Na Itália se fala muito dessa função de trequartista, como esse meia ali quase enganchando nos atacantes. Acho que talvez o Paquetá possa fazer essa função, mas não vejo que seja a melhor função para ele. Acho que ele é mais um "todocampista", vamos dizer assim. Alguém que vem buscar o jogo e chega à frente com facilidade, com força. Talvez um pouco próximo do que o Renato Augusto fez em alguns momentos na seleção. Com bastante técnica, com bastante dinâmica. Acho que ele sabe jogar de costas, mas não é como ele joga melhor, recebendo lá na frente. Acho que ele vindo com a bola dominada, vindo de frente, até pela potência que ele tem para arrancar, para levar e gerar desequilíbrio ele tende a ser mais efetivo.
Acredita que ele vai engrenar, é mais acertar posicionamento para superar a irregularidade no Milan?
MB: Acho que sim. É um período de adaptação, a gente não pode esquecer que é um ser humano, não é só um jogador de futebol. Tem adaptação ao país, ao clima, à cultura. Falando também do jogo, o Campeonato Italiano tem algumas particularidades e singularidades. É um campeonato de muita marcação, de poucos espaços, de um jogo sempre muito tático. Acho que ele está nesse processo de aprendizagem, de buscar os melhores espaços dentro desse jogo italiano, desse campeonato, que é muito físico. Mas acho que ele tem tudo para dar certo pelo potencial, pelo profissinal que ele é. Daqui a pouquinho ele encaixa e encontra novamente essa fase que o levou até lá.
Imagino o quanto você tenha lamentado perder o Vinicius Junior naquele meio de temporada em 2018. Como o vê nesse início no Real Madrid?
MB: Eu cheguei num momento em que o Vinicius já estava vendido. Mas ele ainda não estava consolidado, vamos dizer assim, como titular. Ele entrava nos jogos até com o próprio Carpegiani. Eu lembro de um jogo marcante contra o Emelec, no Equador, em que ele entrou e fez dois gols, a equipe perdia de 1 a 0. Era o Carpegiani ainda o treinador. Mas ele já vinha chamando atenção. Aconteceu que logo que assumi interinamente a equipe o Everton Cardoso saiu, até então era o titular da posição. E a gente teve de promover o amadurecimento do Vinicius de forma rápida. Mas pela alegria que ele tem, realmente menino contagiante nos treinos, ele foi. Abraçou a oportunidade e realmente estava fazendo a diferença. Acho que o Vinicius faria e faz falta a qualquer equipe no mundo. E naquele Flamengo sem dúvidas nenhuma fez muita falta porque era quem desequilibrava, era quem segurava dois, três adversários para quem pudesse chegar de trás. A verdade é que a gente não conseguiu ter uma peça de reposição que tivesse o nível de desempenho que ele vinha tendo. A gente conseguiu ainda assim realizar ótimos jogos. Posso dar como exemplo as eliminatórias contra o Grêmio, especialmente o jogo que a gente fez no Sul, depois a gente ganhou o jogo de volta em casa (pela Copa do Brasil). Sem dúvidas a gente tentou algumas soluções, mas não conseguiu ter o nível desempenho que o Vinicius tinha e acabou fazendo muita falta.
É questão de amadurecimento, encaixar um posicionamento?
MB: É uma fase de aprendizagem. A gente não pode esquecer que ele não foi para qualquer equipe. Foi para uma das maiores equipes do mundo,o nível de competência, de competição dentro da equipe é gigantesco. Acho que em pouco tempo ele vai encontrar. Acho que o que o Real Madrid espera dele é esse desequilíbrio que ele tem, esse improviso, essa capacidade de surpreender, de ir para cima. Espero que ele não perca isso e pela alegria, pela maneira como ele vive o jogo e como ele joga não vai perder. É questão de repente de assimilar mais um pouquinho de posicionamento coletivo, pouquinho mais de organização. E entender talvez o momento ou os momentos em que ele pode ter mais liberdade de ser mais desequilibrante que é o que todo mundo espera dele. Mas nunca duvidei que ele fosse dar certo. Como disse anteriormente acho que o Vinicius Junior faz falta a qualquer equipe, até à seleção brasileira. Acho que em pouco tempo ele vai estar constantemente sendo convocado e vai ajudar não só o Real Madrid, mas a seleção também.
Você já trabalhou na frente de equipes profissionais, mas chegou ao Flamengo como auxiliar. Passou primeiro como interino de um clube com uma pressão imensa. Foi efetivado, mas quando saiu você teve alguma oportunidade de continuar, voltar a ser auxiliar?
MB: Comecei minha trajetória bem antes do Flamengo. Comecei como treinador da base no Audax São Paulo. Passei por todas as categorias de base até ficar como auxiliar do profissional. Depois tive minha primeira oportunidade como treinador de equipe profissional no Audax Rio, que então estava na Segunda Divisão. Foi aí que definitivamente vim morar no Rio, estabeleci o Rio como minha base. Aí tive o acesso, disputei uma Primeira Divisão no ano de 2013. Depois fui para o Red Bull, numa situação parecida. Estava na Segunda Divisão, a gente conquistou o acesso à Primeira, jogou dois Campeonatos Paulistas, nos dois a gente classificou às quartas de final. No segundo ano foi até legal, o Dorival que assumiu depois que saí do Flamengo, no ano que o Santos foi campeão ele perdeu um jogo, justamente para o Red Bull na primeira fase. Foi legal trocar essa experiência com ele. Toda essa experiência me ajudou porque tive a oportunidade de dirigir equipes profissionais, tive oportunidade de trabalhar com grandes jogadores com grande currículo. Um deles Fabiano Eller, que tinha sido campeão mundial pelo Inter. Tudo isso me ajudou a estar preparado para esse momento.
Depois da minha saída do Flamengo nunca houve um convite formal ou oficial para retornar como auxiliar, nada. Se houvesse eu avaliaria com muito carinho, especialmente naquele momento pós-saída porque é um clube pelo qual tenho uma gratidão imensa, me sinto ligado emocionalmente a ele. Mas dei sequência à carreira, fui ser treinador no Goiás. Acho que a gente teve um início de ano fantástico, com números excelentes. Chegou a ser a equipe das que estavam na Série A com melhor desempenho, número de gols, tudo. Mas depois uma final que a gente acabou perdendo eles optaram pelo desligamento e eu iniciei uma sequência de dois trabalhos curtos que eu particulamente nem consigo considerar como trabalhos, acho que são início de trabalhos. Sete jogos no América, depois seis jogos no CSA. Entra naquela questão que a gente já debateu dos tempos. As coisas têm caminhado, sigo minha carreira de treinador em busca de oportunidade para mostrar meu trabalho.
O futebol brasileiro vai muito por perfil, o novo, o estrangeiro, o medalhão? Quanto o Jorge Jesus já impactou a mudança?
MB: Acho que tudo isso, todos esses modismos são reflexo de uma coisa maior que é essa cultura de resultado, que a gente tem muita aflorada. Todos nós trabalhamos pelo resultado, mas muitas vezes a gente tem colocado só o resultado para tomar as decisões e acaba entrando nessa do modismo. Aquele perfil de treinador que deu certo naquele momento particular passa a ser o perfil de treinador que a gente procura. Acho que existem espaços e projetos para todos os treinadores. Nem todos os perfis ou nem todo perfil vai dar certo em qualquer tipo de projeto. Talvez o próprio Jorge Jesus, que já disse que é um treinador fantástico. Se ele tivesse pegado outro clube com uma estrutura diferente, uma condição financeira diferente talvez não tivesse tido o sucesso que ele teve. Acho que falta aos gestores essa avaliação de que tipo de perfil cabe melhor ao contexto que eu tenho, ao projeto que quero desenvolver e assim por diante.
Acho que a vinda do Jorge Jesus, mas não só dele como do próprio Sampaoli, como do Osório que teve uma passagem bacana pelo Brasil também e e outros treinadores estrangeiros que tiveram passagem com carreira vitoriosa. Acho que elas vêm agregar, vêm a mostrar diversidade de conceitos, diversidade de trabalhos e de uma maneira geral contribui para que o futebol brasileiro seja mais forte. A gente só precisa ter cuidado para não excluir os excelentes trabalhos que temos de treinadores brasileiros. O Felipão é um deles, o próprio Abel é um deles, o Luxemburgo é outro, o próprio Dorival. A gente tem o Autuori agora voltando ao campo no Botafogo, uma figura fantástica que tenho admiração imensa. Acho que precisamos, sim, valorizar esses grandes profissionais e entender que em qualquer profissão existe uma renovação de ciclo. Por isso que a nova geração está vindo buscando seu espaço com muita humildade e muito trabalho. A ideia de todo mundo é que a gente tenha cada vez um melhor futebol e um Brasil cada vez mais forte.