Aos 89 anos, tendo vivenciado o auge dos craques do futebol desde os anos 40, Janio de Freitas, um dos grandes jornalistas da história do Brasil, afirma que Zizinho foi o maior jogador de todos os tempos, até mesmo acima de Pelé.

A declaração dá uma ideia do tamanho do ex-meia-direita, que completaria cem anos de vida no dia 14 de setembro, justamente em um momento que a memória do futebol nacional presta pouca reverência a nomes como o de Zizinho.

Craque de Flamengo , Bangu, São Paulo e também da seleção brasileira , ele viveu o auge numa época em que o futebol era visto apenas pelo público nos estádios ou acompanhado pelas transmissões de rádio. São raríssimas as imagens em movimento de Zizinho.

“Era, digamos, um conhecimento do futebol por imaginação. Imaginava-se o que era aquilo que o locutor estava descrevendo. O Pelé teve a sorte de jogar na era da televisão. Isso facilitou muito que se desenvolvesse uma consciência da qualidade extraordinária, do talento extraordinário, da habilitação física, biológica do Pelé”, disse Janio de Freitas à reportagem.

Referência na cobertura política, jornalista muitas vezes premiado por trabalhos relevantes e colunista da “Folha de S.Paulo” desde 1983, Janio de Freitas é 11 anos mais jovem do que foi Zizinho e teve a sorte de ver o ídolo de infância jogando pelo Flamengo ao vivo muitas vezes.

O Mestre Ziza foi fundamental durante aquela época, especialmente na conquista do primeiro tricampeonato carioca do clube (1942, 1943 e 1944). Era o camisa 8 da equipe e, ao mesmo tempo, da seleção brasileira.

“Ele não foi apenas ídolo do Flamengo. Foi do Brasil. Na Copa do Mundo de 1950 ele se tornou o maior craque do mundo porque foi escolhido o melhor jogador do torneio”, disse Janio de Freitas.

É justamente daquela Copa, ainda de triste lembrança para muitos brasileiros, que resistem as poucas imagens em movimento de Zizinho, um gol contra a Iugoslávia e outro contra a Espanha. Foi naquele mundial que o apelido "Mestre" foi consagrado.

E, para os que duvidam do tamanho da habilidade de Zizinho, Janio de Freitas lembra: ele foi o ídolo da infância de Pelé, que muitas vezes declarou que sonhava em ser tão bom quanto o camisa 8 da seleção brasileira.

Em homenagem ao centenário do Mestre, o site da ESPN publica a partir deste domingo (12) uma série de textos sobre Zizinho. No próximo dia 14, a ESPN Brasil e o Star+ exibem o especial “100 anos de Zizinho, o Mestre do Rei Pelé”, às 22h30 (de Brasília).

Crédito da foto: Acervo Histórico Arquivo Nacional

O Mestre do Jornalismo e o Mestre do Futebol

Quais são as memórias que o senhor tem do período do Zizinho?
JANIO DE FREITAS: São memórias que misturam futebol e convivência familiar. Na minha família, ser Flamengo não é uma coisa que se adquire. A gente já nasce Flamengo. Desde o meu avô. Eu comecei a ir ao futebol com parentes. Era um tio que levava a mim e a dois primos, filhos dele. Não sei exatamente que idade eu tinha, mas imaginando pelos jogadores que eu vi, pelo tipo de futebol e pelos campos que nós fomos, eu devia ter sete ou oito anos.

Era quase um ritual religioso aos domingos. Havia campos por aqui como os de Bangu, Madureira, Canto do Rio, este em Niterói, que nós íamos invariavelmente. Na periferia do centro tinham pontos de ônibus de onde saíam táxis-lotação. Nós íamos para lá e esperávamos o momento para irmos todos no mesmo carro --era uma coisa que eu e os primos adorávamos-- do Domingos da Guia. Ele também tomava o táxi-lotação ali. Muitas vezes isso deu certo. Ele sempre chegava ao campo da Gávea e, na entrada, dizia aos porteiros: ‘Esses são os meus convidados’. Nós entrávamos sempre para ficar em um bom lugar, fosse na beira do campo ou na tribuna.

É uma época em que há uma mistura de futebol, de sentimento e família, algo que perdurou até a minha adolescência, quando eu comecei a ir por minha própria conta aos estádios. À proporção que eu fiquei rapaz, eu passei a ir com amigos da minha geração, torcedores do Flamengo também. Foi uma convivência muito boa com o futebol. E depois, anos mais tarde, passei a ter uma convivência como profissional porque entre outras coisas eu trabalhei na editoria de esporte. Fui repórter de esporte. Cobri o Flamengo durante um certo período. Essa fase coincidiu com o segundo tricampeonato carioca do Flamengo [1953/54/55]. Eu trabalhei com a maior alegria indo a treinos, conhecendo os jogadores. Tenho fotografias com o time tricampeão e a assinatura de cada um dos jogadores. Foi uma convivência muito agradável, muito emocionante e muito gratificante porque o Flamengo teve a generosidade de me dar grandes alegrias .

O maior ídolo do senhor era Zizinho, o craque daquele Flamengo?
JANIO DE FREITAS: Do Flamengo, não. Do Brasil. Na Copa do Mundo de 1950 ele se tornou o maior craque do mundo porque foi escolhido o melhor jogador do torneio .

O senhor tem recordação do tricampeonato de 1942/43/44?
JANIO DE FREITAS: Leônidas da Silva já não estava mais nesse time. O centroavante era o Sylvio Pirillo, que marcou uma tal quantidade de gols servido e muito bem servido pelo Zizinho, que até hoje é o recordista de gols de uma edição do campeonato [fez 39, em 1941]. Na época, ainda era chamado de Campeonato Carioca [a cidade do Rio era Distrito Federal do Brasil] e só depois virou Campeonato Estadual. A linha ofensiva do Flamengo tricampeão era sensacional: Valido, Zizinho, Sylvio Pirillo, Perácio, que em 1944, no último ano, foi afastado porque o exército o convocou para ir para a Itália, para lutar na Segunda Guerra Mundial, e Vevé .

O senhor é uma rara testemunha do Zizinho no Flamengo. Como ele jogava?
JANIO DE FREITAS: Obviamente, o Zizinho era a grande estrela. Muito novinho ainda, mas era a estrela do time. Ele foi um jogador realmente extraordinário e uma pessoa excelente. Um homem de caráter, corretíssimo, muito leal, muito amigo dos companheiros e dos colegas todos. E, além de um excelente jogador, foi um importante atração para o futebol brasileiro porque, embora não houvesse televisão para transmitir ao mundo o que ele jogou, ele ficou conhecido na Europa. Eu encontrei pessoas, amantes do futebol na Europa, que se referiam ao Zizinho, sabiam quem era o Zizinho, sabiam o que ele jogava e isso foi uma coisa muito gratificante para nós que acompanhávamos também o futebol europeu e víamos um reconhecimento deles em relação ao nosso futebol. Em 1950, acontece aquela coisa formidável de ver o Zizinho reconhecido mundialmente como o melhor jogador da Copa do Mundo. Zizinho jogava sempre com uma raça inacreditável. Eram 90 minutos, não havia prorrogação, mas eram 90 minutos de futebol mesmo. Isso quando o juiz não rifava alguns minutos. Ele sempre jogou com muita raça, sem descansar minuto nenhum. Saia do campo realmente exausto .

O senhor citou a Copa do Mundo, que ficou marcada pela derrota para o Uruguai. Mas aquele ano também ocorreu a saída do Zizinho do Flamengo para o Bangu...
JANIO DE FREITAS: Olha, foi como uma facada pelas costas. E não só eu me senti assim. O Flamengo inteiro sentiu-se assim. Foi uma coisa muito dolorosa. Eu diria que foi uma terceira perda terrível. A primeira foi a saída do Leônidas para o São Paulo. Eu vi o Leônidas jogar, mas me lembro muito vagamente e acho que foi uma única vez. Eu era muito pequeno e não memorizei suficientemente o que eu vi. Depois foi a saída do Domingos da Guia, vendido para o Corinthians. Por fim, o Zizinho. Foram três punhaladas brutais que o torcedor do Flamengo sofreu por motivos absolutamente injustificáveis sobretudo no caso do Zizinho .

Como foi o Bangu com Zizinho? Vivemos um período em que muitas pessoas medem a importância de um jogador pelos títulos. Não foi o caso da passagem dele pelo Bangu.
JANIO DE FREITAS: A passagem dele foi digna do que foi o Zizinho. Ele jogou inclusive como centroavante. Ele era um meia armador, que passa a ser centroavante, depois de ter sido meia-atacante. Ele foi o centroavante daquele Campeonato Carioca [1950]. O time do Bangu era muito bom, mas não podia de uma hora para outra se transformar em um campeão e justificar então para os desagradados que o Zizinho tinha conquistado um campeonato pelo Bangu. Não era o caso. O Zizinho jogou muito, o Bangu jogou muito e merecia ser reconhecido àquela altura como um dos grandes times do Rio. O Bangu formou um time muito bom e merecia ter sido campeão carioca sim, como se dizia na época e o que hoje seria o campeão estadual.

Os mais velhos, como o pai do jornalista José Trajano, o pai do Zico e o pai do Gersón, diziam que Zizinho foi melhor que Pelé. O senhor viu ambos no auge. Quem foi melhor?
JANIO DE FREITAS: Primeiro vamos deixar claro que são dois jogadores bastante distintos. O Zizinho foi um meia armador, foi um meia-atacante, que na época se chamava ponta de lança, e depois foi centroavante quando estava no Bangu. Foram três posições em que ele jogou diabolicamente. Para ser sincero, eu sou favorável a ideia que Zizinho foi o maior jogador brasileiro de todos os tempos, mas não desfaço nada, nada, nada do Pelé, que foi um jogador merecedor de ser reconhecido assim como o maior jogador brasileiro.

É preciso notar uma diferença de condições em que os dois atuaram. O Zizinho atuou numa época em que, na melhor hipótese, se tinha a narração por rádio. O torcedor, essa imensa torcida mundial do futebol, só ouvia os locutores e os comentaristas nas suas respectivas línguas e guardava uma ideia aproximada, na melhor hipótese, aproximada do que estava se passando dentro do campo e o que cada jogador fazia nele com a bola. Era, digamos, um conhecimento do futebol por imaginação e, portanto, uma admiração que se criava por Zizinho, Jair Rosa Pinto, Sylvio Pirillo e outros por mera imaginação. Imaginava-se o que era aquilo que o locutor estava descrevendo.

O Pelé teve a sorte de jogar na era da televisão. Isso facilitou muito que se desenvolvesse uma consciência da qualidade extraordinária, do talento extraordinário, da habilitação física, biológica do Pelé como um tipo extraordinário de jogador. O Zizinho e muitos outros grandes jogadores não tiveram isso. Alguns tiveram promoções intensas na imprensa, como o Heleno de Freitas, centroavante do Botafogo e da seleção. Ele jogou com Zizinho e foi outro beneficiado pelas assistências do Zizinho. Mas o Heleno só ficou como lenda por causa da tragédia dele, que desenvolveu problemas mentais sérios, se afastou do futebol. Foi uma história dramática que o fez mais conhecido do que outros grandes nomes daquela época.

Então, essa diferença de condições facilita muito que se diga que fulano foi maior ou que sicrano é o maior. Mas, na verdade, é muito difícil estabelecer um comparativo entre eles por essas diferenças todas: tipo de futebol jogado, características pessoais e ambiente em que cada um jogou. Foi um ambiente muito favorável a imagem do Pelé e no mínimo neutro em relação a imagem do Zizinho. Então, eu admito que possa estar equivocado, possa estar influenciado pelo fato de ter conhecido bem ou razoavelmente bem o Zizinho e não ter conhecido e convivido com o Pelé, mas admito que acho sim que o Zizinho foi melhor .

Como foi conviver com Zizinho? O senhor lembra de alguma conversa marcante?
JANIO DE FREITAS: Todas as conversas foram marcantes. Eu tenho dele um livro, a biografia dele, com uma dedicatória muito gentil comigo. Toda a conversa com ele foi deliciosa. Era uma pessoa muito inteligente, muito bem humorada e um papo agradável .

O dia 14 de setembro marca o centenário do Zizinho. O Brasil é justo e respeitoso com a memória e os feitos do Mestre Ziza?
JANIO DE FREITAS: Eu sei que o Brasil é um país sem memória. Agora mesmo está aí o Governo Federal simplesmente a vender o prédio do ex-Ministério da Educação e Saúde [no centro do Rio de Janeiro], que é um prédio de referência mundial na chamada arquitetura moderna. O Palácio Capanema foi em muitos sentidos um prédio precursor. É o patrimônio brasileiro. O Brasil não tem memória, e o que se pode fazer contra isso? Entender que o Brasil é assim e que o Zizinho não está fora do Brasil. Portanto, não está fora dessas características que o Brasil tem. O Zizinho sofre também essas características sendo ele como o Palácio Capanema, ou seja, um monumento, um patrimônio da memória perdida do Brasil. Tristemente perdida .

Crédito da foto: Acervo Histórico Arquivo Nacional