Flamengo: voto direto do sócio-torcedor? Entenda demanda e como são eleições de outros clubes

Após a derrota na final da Copa do Brasil e no rescaldo de uma série de crises esportivas, administrativas e políticas, um grupo de torcedores do Flamengo reergueu uma pauta antiga que parecia esquecida em meio à boa fase recente do rubro-negro.

No dia 30/9, em partida do Flamengo no Maracanã pela Série A, a torcida Nação 12 abriu uma faixa com os dizeres “ST com Direito a Voto Já!” . A sigla “ST” se refere aos “sócios-torcedores”, modalidade de filiação que garante descontos e algum nível de prioridade na compra de ingressos, mas que não confere direitos políticos concretos ao que de fato se chama de “sócios”.

Faixa da Nação 12 demandando direito de voto aos sócios-torcedores no Maracanã — Foto: Reprodução

No Flamengo, apenas os chamados “sócios-proprietários” possuem direito de voto nas eleições do clube. Em 2021, no pleito que reelegeu Rodolfo Landim, apenas 2.011 dos pouco mais de 7.000 sócios-proprietários compareceram para a votação.

Um número ínfimo, totalmente desconectado da grandeza do Flamengo e de sua torcida, que reflete uma característica muito comum no futebol brasileiro: clubes restritos, associações custosas, regras eleitorais impeditivas e eleições pouco representativas.

Aspecto que explica a proposta de ampliação do direito político àqueles “sócios” não vinculados ao “clube social”, mas que contribuem financeiramente para o clube da mesma forma.

O Flamengo não é o único caso e talvez nem seja o pior. Várias outras agremiações “populares” do país restringem suas eleições às categorias mais restritas, que podem variar o nome entre “estatutário”, “contribuinte”, “efetivo” ou mesmo “benemérito”, “grande benemérito”, “sócio remido”, etc. (como Vasco, Palmeiras, Botafogo e Corinthians).

Além de serem custosas, voltadas aos resumidos usuários vizinhos dos clubes sociais (que muitas vezes sequer torcem para o futebol do clube em questão), em muitas ocasiões esse tipo de título só pode ser adquirido após o aval de outros sócios antigos e/ou de uma comissão do conselho deliberativo.

Em certos clubes – como mostrará nosso levantamento em um quadro, mais adiante –, a eleição para presidente sequer é realizada pelos sócios. Nesses casos, os poucos membros eleitos pelos sócios para o Conselho Deliberativo serão os restritos eleitores da nova diretoria (como São Paulo, Cruzeiro e Atlético-MG).

Diversos países ainda preservam o modelo de “associação civil sem fins lucrativos” em seus principais clubes de futebol, uma realidade que nos permite refletir sobre o assunto – e sobre a demanda dos torcedores rubro-negros – de uma forma comparativa mais ampla.

Como sócios votam em outros países

A tradição romano-germânica do direito brasileiro é central para entender porque as associações civis (nesse caso, esportivas) possuem funcionamento tão parecido no Brasil e em diversos país europeus e sul-americanos, como Alemanha, Espanha, Itália, Portugal, Turquia, Argentina ou Uruguai.

Portanto não é a toa que clubes esportivos desses países tenham sido fundados em bases semelhantes e tivessem funcionado ao longo de décadas como “pequenas sociedades”. Isso também envolve o fator “eleitoral”.

Abaixo, um quadro com 10 clubes que realizam “eleições massivas” (alto número de votantes), com destaque ao pleito que levou o número recorde de votantes (coluna “ano da eleição”).

Grandes eleições de clubes em diferentes países — Foto: Irlan Simões

Importante observar que nesses países a dicotomia “sócio-torcedor” / “sócio proprietário” não existe. Sócio é sócio, com direito a voto, e isso não necessariamente envolve benefícios imediatos ou semelhantes para adquirir entradas para os jogos.

Com exceção de Itália, onde as associações deixaram de existir, obrigadas a virar empresas em 1981, a lista só não contempla clubes de outros dois países anteriormente listados.

Na Alemanha os processos eleitorais se dão dentro de assembleias gerais mais amplas e exaustivas, com milhares de membros, que incluem apreciação de contas, rodadas de negociação e debate aberto. Isso faz com que a contagem de votos seja menor do que se vê em clubes em que a “assembleia eleitoral” se resume ao ato do voto, com urnas abertas por 12 horas.

No Uruguai, embora a população de 3,4 milhões de habitantes seja praticamente a metade dos 6,7 milhões de habitantes que vivem apenas no município do Rio de Janeiro, as eleições de Peñarol e Nacional atingem cerca de 10 mil votos entre os sócios. Um número bem menor que os listados, por razões demográficas óbvias, mas quase cinco vezes maior do que o número de eleitores do Flamengo.

Presentes na lista, Argentina e Portugal possuem associações com sistemas eleitorais muito parecidos. A proporção das eleições acompanha basicamente o tamanho da torcida desses clubes (o FC Porto é um caso à parte), porque o direito à associação é amplo – embora os portugueses às vezes apresentem um modelo mais controlado, dando pesos diferentes aos votos de acordo com a antiguidade do sócio.

Na Espanha, além dos três listados, o Osasuna completa a lista dos poucos clubes que não foram obrigados a virar empresa em 1992. Apesar dos números menores por causa de uma população de pouco mais de 200 mil habitantes, o quadro associativo desse clube envolve 21 mil filiados. O Real Madrid não tem números atualizados porque Florentino Pérez não teve concorrente nos últimos quatro pleitos.

O Fenerbahçe SK se destaca na Turquia como o clube mais aberto dentre os mais populares. O gigante Al Ahly SC, do Egito, completa a lista com números impressionantes para a realidade local.

O único clube brasileiro que se destaca dentre as eleições com cerca ou mais de 20 mil votos, até então, é o SC Internacional. Para tratar dessa particularidade, convém analisar o que aconteceu no Brasil nas últimas décadas.

(Observação: O levantamento acima não é exatamente um “ranking de eleições, mas apenas uma lista de clubes com eleições volumosas. Não foi possível precisar se esses são exatamente os dez clubes com as maiores eleições do planeta, porque o levantamento desses dados é difícil, especialmente em línguas menos acessíveis para o autor).

Como sócios votam no Brasil

As maiores eleições de clubes no Brasil são, com recorrência, dos clubes gaúchos Internacional e do Grêmio. Há discussões interessantes sobre a cultura associativa do povo local, considerada por muitos como produto da influência cultural dos países vizinhos, Argentina e Uruguai.

Mas também há um fator histórico pouco compreendido mesmo no no campo de estudos do futebol: os dois rivais gaúchos realizaram reformas eleitorais no início dos anos 2000, quando da criação do Novo Código Civil Brasileiro (2002).

Esse conjunto de leis que regula, dentre outras coisas, o funcionamento das associações civis, projetou mudanças importantes no modo de funcionamento dos clubes esportivos – embora não tivessem esse objetivo. O Brasil já havia protelado por décadas a criação desse novo arcabouço jurídico, que urgia ser atualizado após o fim da Ditadura Militar.

Pelo texto original, previa-se que todos os sócios dos clubes teriam direitos políticos e que o processo eleitoral deveria se dar necessariamente pela Assembleia Geral, não mais pelos “órgãos deliberativos”, como era o padrão nacional. Do mesmo modo, caberia à Assembleia Geral apreciar as contas da gestão (aprovar ou reprovar) – nos moldes que os outros países operam.

A perspectiva de um impacto negativo – ao menos da parte daqueles que já estavam no comando dos clubes – gerou uma corrida intensa para alteração (ou deturpação) do texto do Código Civil de 2002. Representados pela famigerada “Bancada da Bola”, dirigentes de diversos clubes conseguiram obter exceções para clubes de futebol no novo texto aprovado em 2004.

Enquanto alguns clubes modernizaram seus estatutos, outros protelaram a decisão até o texto original cair. Isso gerou um quadro muito diverso de modelos de clubes de futebol no Brasil, que dificulta inclusive a sistematização dos tipos existentes por aqui, porque a decisão sobre o “modelo político” ficou restrita aos próprios órgãos internos dos clubes (muito fechados, como já explicado).

Nos anos seguintes, especialmente pela pressão de movimentos de torcedores e sócios adeptos da ideia de democratização das agremiações, outros clubes também promoveram suas reformas estatutárias por conta própria.

O quadro abaixo ilustra a diversidade existente na atualidade (escopo: Nordeste, Sudeste e Sul nas Séries A e B em 2023).

Modelos eleitorais de clubes brasileiros na atualidade. — Foto: Irlan Simões

Como se nota, embora não sejam poucos os clubes em que os sócios têm direito a voto direto, é o fato da associação “estatutária/proprietária/efetiva” ser muito restrita e custosa e apartada da associação “do futebol” o que faz com que essas eleições sejam resumidas a um número muito pequeno de sócios.

Fora as numerosas eleições dos clubes gaúchos, basicamente nenhum clube brasileiro conseguiu até hoje realizar eleições com mais de 15 mil votos. Isso se dá especialmente porque a cultura política e associativa foi historicamente desautorizada aos torcedores comuns desses clubes, mas apenas a uma restrita elite de usuários das instalações dos clubes.

O cenário é ainda mais grave quando olhamos a terceira coluna (vermelha), dos clubes que elegem presidentes apenas no Conselho Deliberativo, órgão que muitas vezes é composto por numerosos membros vitalícios/natos, que não precisam ser eleitos pelos sócios. Há clubes onde a proporção de conselheiros eleitos é menor do que a de conselheiros eternizados por nomeação.

Os clubes listados possuem modos diferentes de composição desse conselho. Por vezes se dá por eleição de uma única chapa para compor a totalidade das vagas eleitas, por vezes há proporcionalidade com relação aos votos recebidos pelas chapas juntos aos sócios (geralmente os que já são mais democráticos).

Convém também observar também que nos países mencionados anteriormente não existe a figura do “órgão deliberativo”. As assembleias são os órgãos soberanos e os sócios podem comparecer voluntariamente.

Em suma, o pleito dos torcedores do Flamengo pela ampliação do direito a voto para os sócios-torcedores tem respaldo na realidade brasileira e na de vários outros países. Isso indica que, sim, o clube de maior torcida do país deveria repensar a sua representação e sua representatividade.

(Observação: Há um equívoco no vídeo da participação do Redação Sportv, pois o Palmeiras está listado como clube que elege presidente apenas no conselho deliberativo. Desde 2011 os sócios elegem presidentes de forma direta, ainda que com menos de 2 mil votos. A eleição mais restrita é para a presidência do mesmo conselho. Agradeço o alerta de Alicia Klein na ocasião e no complemento das informações posteriormente).

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- Irlan Simões ( @irlansimoes ) é autor do livro “ A Produção do Clube: poder, negócio e comunidade no futebol ” (2023).

Fonte: Globo Esporte