SAFs, investidores, injeções de capital, formações de redes multi-clubes, entre outros: o aspecto financeiro nunca esteve tão em alta na pauta do futebol brasileiro. Em paralelo ao que já vinha acontecendo no mundo, o país vive a expansão econômica de times como Flamengo e Palmeiras, mais a entrada de investidores em clubes como Atlético-MG, Cruzeiro, Vasco, Bahia e Botafogo. Os dois últimos, agora fazem parte de duas das principais redes multi-clubes do mundo. Nos últimos meses, voltaram à pauta discussões sobre políticas de sustentabilidade econômica, popularmente conhecidas como fair play financeiro, hoje aplicadas nas principais ligas europeias.
- Quem joga mais vezes? Quem viajará mais? Quem terá mais descanso? Veja raio-x dos 25 dias até as quartas da Libertadores
- Leia também: Rio de Janeiro é a primeira cidade a ter três times nas quartas de final na história da Libertadores
Num debate que mistura paixões a números, a mera citação ao assunto, muitas vezes partindo de investidores e presidentes de clubes — casos de John Textor (Botafogo e dono da Eagle Holding, com Lyon, Crystal Palace e outros) e Rodolfo Landim (Flamengo) — inflamam as discussões e acabam, mesmo que indiretamente, associando o conceito a um contexto competitivo e diretamente ligado a resultados esportivos. Com isso, uma linha necessária nem sempre é traçada: a da natureza do fair play financeiro, que são políticas de responsabilidade e sustentabilidade, e não exatamente de equilíbrio esportivo.
Quebras, falências, atrasos financeiros e danos ao ecossistema do futebol estão entre o que se busca coibir onde essas regras são aplicadas. Em 2010, a Uefa lançou a sua política, que ganhou o nome fair play financeiro (que viria a se tornar um termo guarda-chuva). “O objetivo não é deixar todos os clubes iguais em tamanho e riqueza, mas sim encorajá-los a construírem o sucesso em vez de buscarem soluções rápidas”, diz um dos comunicados da época.
— O clube que faturou 1 bilhão vai ser sempre maior que o que faturou 100 milhões. O objetivo é fazer com que todos sejam sustentáveis do ponto de vista financeiro. Que paguem os salários em dia, não atrasem impostos, valores a outros clubes. Que o sistema opere de uma maneira equilibrada. Esse é objetivo— explica Cesar Grafietti, economista e sócio da consultoria Convocados.
O faturamento ou receita — a soma do que os clubes recebem de patrocínios, vendas de jogadores, bilheteria, entre outros — é a chave para entender o que, de fato, é o fair play financeiro. No modelo da Uefa, hoje chamado de Regulações de Sustentabilidade Financeira, há três pilares: os pagamentos em dia, o limite aceitável de déficit financeiro (a grosso modo, a diferença entre gastos e receita) num período de três anos, e a limitação de um percentual das receitas para pagamentos de salários, transferências e comissões na temporada. São aplicadas às equipes que disputarão competições continentais.
- Lateral como problema: Zico critica defesa do Flamengo por gols sofridos: 'Não fica só olhando a bola!'
Investimentos externos
Grafietti explica que, nas políticas de hoje, não se observa, necessariamente, o tamanho dos investimentos. No caso de investidores, essa injeção de recursos pode vir por compra de ações ou em infraestrutura, que normalmente são cenários mais “livres” para aportes no cenário europeu. Mas essa é apenas uma parte do negócio.
— Eu posso gastar mais do que eu arrecado, fazendo investimentos, por exemplo, como um CT novo. Tem dívida que é mais barata do que o meu investimento e se torna saudável — aponta Pedro Daniel, sócio-líder de esporte da Ernst & Young.
Há atenção especial à fatia que chega a título de patrocínios. Neles, que contam como um dos principais itens das receitas e se renovam ciclo a ciclo, as ações dos investidores e de seus entornos são colocadas na lupa. É o caso do PSG, por exemplo, que já foi patrocinado por uma série de empresas ligadas à Qatar Investment Authority, o fundo soberano do Catar e acionista majoritário do clube. Sem a ameaça da regulação, uma injeção de recursos via patrocínios poderia tornar o valor declarado de receitas ainda mais desenfreado.
— Quando tudo estiver organizado, o sistema olha para ver se não tem um dinheiro vindo de fora que pode desequilibrá-lo, mas não esportivamente, no ponto de vista de negócio — adiciona Grafietti.
Desde o estabelecimento das políticas da Uefa, os sistemas criados a reboque pelas ligas vêm se experimentando, encontrando falhas e acertos, e mostrando que a regulamentação e o equilíbrio esportivo não se cruzam, necessariamente. Na Premier League, o atual tetracampeão Manchester City, cabeça do City Group (do qual o Bahia faz parte) enfrenta investigação após série de denúncias quanto ao manejo das finanças desde os primeiros anos de controle dos Emirados Árabes. Mas as principais punições no país, que usa o modelo de limite de déficit, foram para os modestos Everton e Nottingham Forest, que perderam pontos. Por lá, os clubes já votaram em mudança no formato para um de teto de gastos (sistema que limita a quantidade de dinheiro que um clube pode gastar em contratações, salários de jogadores e outras despesas), mais próximo do da Espanha, mas com teto diretamente associado às receitas.
No Brasil, Textor já sugeriu a adoção do teto salarial de modelo americano (como na NBA e na NFL), com limite salarial igual para todos os clubes, e disse temer uma dominância do Bahia, em razão do poder de investimento do Grupo City.
A La Liga regulamenta de forma mais ativa, definindo tetos com base nos orçamentos de receita caso a caso e temporada a temporada. Barcelona e Real Madrid, últimos dois campeões espanhóis, são o melhor exemplo dessa dissociação entre regulamentação e equilíbrio competitivo: mesmo com capacidades de receitas em patamares próximos e distantes da concorrência, enfrentam desafios distintos. Enquanto os merengues mantêm o maior teto, os catalães sofrem para conseguir registrar jogadores em meio à folha de salários astronômicos que, há algumas temporadas, já não consegue ser acompanhada pelas receitas. Foi um dos fatores, inclusive, que ajudaram a tirar Lionel Messi do clube, há três anos. Um forte recado dado ao mercado de que o controle era levado a sério.
- Goleiro Alisson aprova possível sucessor no Liverpool: 'Clube precisa se preparar para o futuro'
Redes multi-clubes
Em meio ao debate, as redes multi-clubes (MCOs) surgem como novos desafios. O principal deles vem com a possibilidade de realizar transferências internas na mesma holding, abrindo brechas contábeis e esportivas. Na atual temporada, para autorizar as participações, a Uefa exigiu troca temporária de estrutura societária e proibiu transferências e cooperações entre envolvendo as duplas Manchester City — Girona-ESP e Manchester United — Nice-FRA durante o período em que os clubes, que integram os mesmos grupos (City Football Group e Ineos), disputam Champions e Europa League, respectivamente. Nesse novo cenário, o fair play financeiro ainda é embrionário.
— Isso precisa ser desenvolvido de maneira global, em regra da Fifa, já que engloba todos os continentes. Fica mais difícil sancionar alguém em cima de algo novo, com poucas regras e inaplicáveis na prática — analisa Grafietti.
O economista lembra que já fez parte de estudos para a instalação de políticas de sustentabilidade econômica no futebol brasileiro, mas o tema nunca foi abraçado de fato pelos clubes. Até aqui, há dificuldades para a consolidação de uma liga, o que poderia favorecer uma nova discussão.
Enquanto isso, cada clube adota sua estratégia. Personagens das discussões, Textor e Landim vão por caminhos (e momentos) diferentes: no Botafogo, há direcionamento forte dos investimentos para a parte esportiva, enquanto o clube costura acordo com credores e se reestrutura por completo. No Flamengo, se busca o alto nível de receitas para aquisições esportivas de peso e manutenção no topo, o que passa por boas vendas e retornos diretos de bilheteria, sócio-torcedor e patrocínios que vieram na esteira do sucesso em campo nos últimos cinco anos. Já no Bahia, que recentemente pagou 65,3 milhões de reais no atacante Luciano Rodríguez, o grupo City equilibra os investimentos entre aquisições fortes no futebol e pagamento de dívidas (já as reduziu em 86%).
Pedro Daniel defende que um possível modelo brasileiro seja de controle semestral e anual, respeitando as culturas e estratégias de cada clube. E ressalta a necessidade de um órgão regulador para além da lei da SAF.
— Temos que falar em honrar os compromissos de trabalho, que é o que eu acho que falta. Se você tiver um comprovante de que está pagando todos os salários em dia e todas as obrigações da operação, já seria um belo avanço.