Em 1979, antes mesmo de a sigla LGBT ganhar força no Brasil, uma torcida organizada gay ligada ao Flamengo tentava espaço nas arquibancadas do Maracanã. A FlaGay, iniciativa que prometia ser pioneira no futebol carioca, porém, nunca foi levada a sério e, antes mesmo de chegar ao estádio, foi sufocada pelo preconceito e pela intenção duvidosa e falta de organização dos seus membros. Em 2025, a ideia tenta renascer, mas ainda enfrenta obstáculos.
Para este 28 de junho, quando é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+, o ge pesquisou jornais antigos, conversou com torcedores e historiadores e consultou o artigo acadêmico intitulado "A 'praga' da FlaGay e o 'desbunde' guei no futebol brasileiro" para contar a história de uma torcida gay do Flamengo que foi desqualificada no passado e hoje existe apenas no universo online.
Flamengo fez postagem pelo Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+ — Foto: Reprodução
No segundo semestre de 1979, o Flamengo disputava a fase final do Campeonato Carioca como favorito ao título. Guiado por craques como Zico e Júnior, o time concretizou o favoritismo e foi tricampeão estadual. A disputa em campo, no entanto, não era o único assunto na imprensa carioca. O surgimento da FlaGay ganhou destaque no Jornal dos Sports.
A promessa da criação da FlaGay foi feita em 1977, pelo carnavalesco Evandro de Castro Lima, como escreveu o historiador Maurício Rodrigues Pinto no artigo acadêmico publicado na Revista Brasileira de Estudos da Homofobia, da Universidade Federal do Mato Grosso. Inspirado pela ColiGay, torcida LGBT do Grêmio criada naquele ano, ele fez o anúncio ao Jornal dos Sports: "Até o Márcio Braga (então presidente do Flamengo) apoia. Ele diz que vai ser uma beleza quando a FlaGay aparecer no Mário Filho". O dirigente, no entanto, passou longe de ser um apoiador.
A torcida só foi lançada dois anos depois, tendo outro carnavalesco, Clóvis Bornay, e o jornalista e radialista Pedro Paradela, como organizadores. A participação de Clóvis, já falecido, é tida como um dos motivos que desqualificaram a FlaGay. Até então torcedor do Botafogo, o carioca teria trocado de time e seria uma espécie de figurinista do coletivo. Para muitos, a dupla queria mídia.
– É preciso acabar com esse negócio de que o Flamengo é machão latino-americano. Flamengo é povo, é tudo. Portanto, me sinto honrado em ser o presidente de uma facção da torcida tão importante como será a FlaGay. Vamos fechar no Maracanã, dando um show de plumas e paetês, naturalmente, sempre incentivando o Mengão – afirmou Paradela na época.
Jornal dos Sports publica reportagem sobre criação da FlaGay em 1979 — Foto: Reprodução
A estreia ficou marcada para o clássico contra o Fluminense, e o jornal anunciava que ela iria "balançar as estruturas e fechar com um desfile de fazer inveja às chamadas grandes sociedades". A cobertura, desde o início, não credibilizou a torcida como um movimento genuíno de torcedores que queriam apoiar o Flamengo.
– A ênfase no caráter festivo e de espetáculo atribuído à presença da FlaGay sugere que a cobertura do Jornal dos Sports não dava a devida credibilidade à torcida, dificultando que esta fosse reconhecida e legitimada como uma torcida organizada pelo campo futebolístico, como aconteceu com a ColiGay. Muito pouco é falado do apoio da torcida ao time ou do quanto esses torcedores eram apaixonados pelo Flamengo. Nas narrativas é possível perceber um tom caricato - o que contribuía para reforçar estereótipos da população homossexual e da sua relação com o futebol – destacou o historiador Maurício Rodrigues Pinto no artigo.
Nos dias seguintes, o jornal passou a publicar depoimentos, com teor homofóbico, de leitores contrários à criação da torcida, posição endossada por Márcio Braga. Diferentemente do que Evandro de Castro Lima declarou em 1977, o então presidente do Flamengo não foi receptivo à ideia. Ele chegou a pedir à Polícia Militar do Rio de Janeiro que a FlaGay fosse proibida de entrar no Maracanã. Outras torcidas organizadas ameaçavam reagir com violência.
– Todas as torcidas que o Flamengo possui no momento são aprovadas pelo Conselho Diretor. Isso não ocorrerá com a FlaGay. É uma torcida que não é bem aceita pelo Flamengo e não será, portanto, aprovada pelo Conselho Diretor – disse Márcio Braga ao Jornal dos Sports em 13 de outubro de 1979.
Jornal diz que então presidente Márcio Braga pediu proteção à PM contra FlaGay — Foto: Reprodução
A reportagem entrou em contato com Márcio Braga, que não quis comentar o assunto. O dirigente afirmou que a torcida, na verdade, teria sido criada por estudantes de um colégio de Niterói chamado Gay Lussac. Destacou ainda que Clóvis Bornay se aproveitou da situação para aparecer. O ge não encontrou referências nos jornais da época sobre a relação do colégio com a torcida rubro-negra. Torcedores consultados também não corroboraram a história.
Ricardo Muci, fundador da torcida "Flamante" e frequentador do Maracanã desde aquela época, endossa a opinião do ex-presidente sobre a intenção de Clóvis de usar o clube e caracterizou a torcida como um "movimento de mídia". Mas admitiu que o preconceito das pessoas naquele momento não permitiria que a ideia fosse adiante.
– Naquela época havia preconceito muito forte, não que tenha acabado, e foi uma forma de os adversários sacanearem. Foi um oba-oba que fizeram, porque o Flamengo ganhava tudo. Por que não apareceram no estádio? Talvez por ser um movimento de mídia e por eles não terem se organizado. Acho que não existiam eles. Só um pequeno grupo querendo sacanear o Flamengo. Um movimento que não tinha representatividade. Houve uma reação muito grande de outras torcidas, por isso Márcio Braga se posicionou – recordou o torcedor rubro-negro.
De fato, desde o início, torcedores rivais se aproveitaram das notícias para fazer piadas de conotação homofóbica e ainda hoje repercutem esse fato nas redes sociais. Mas, além da espetacularização da cobertura sobre a FlaGay, o preconceito oprimiu a iniciativa pioneira. Em 1979, outros dirigentes acompanharam o presidente do Flamengo. Walter Oaquim, à época representante do clube na Federação Estadual, chamou a FlaGay de problema social:
Ex-dirigente do Flamengo chama FlaGay de problema social — Foto: Reprodução
O Flamengo foi derrotado pelo Fluminense no clássico da possível estreia da FlaGay. O jogo foi cercado pela tensão da presença de rubro-negros homossexuais, que, no fim, não foram ao Maracanã. Márcio Braga imputou à torcida a culpa pelo resultado negativo: “Foi praga da FlaGay. Só pode ter sido".
Jornal diz que Márcio Braga atribuiu derrota do Flamengo à torcida gay — Foto: Reprodução
O assunto foi levado para os jogadores. Em entrevista ao Jornal dos Sports após a derrota por 3 a 0 para o Fluminense, o Maestro Júnior afirmou não se importar com o surgimento da FlaGay. Disse que, para eles, o importante era o apoio dos torcedores:
Júnior diz que FlaGay é bem-vinda para torcer pelo Flamengo — Foto: Reprodução
No mês seguinte à "polêmica" da FlaGay, o jornal Lampião da Esquina, veículo vinculado ao movimento homossexual brasileiro, publicou um artigo intitulado “Os gueis do Flamengo e a bixórdia do Sr. Braga”, que aparece na pesquisa do historiador Maurício Rodrigues Pinto. Em formato de duas cartas endereçadas ao então presidente do clube, o periódico condena sua postura homofóbica. O autor da primeira carta, Antônio Chrysóstomo, apresenta-se como integrante de um grupo de rubro-negros que foi base de apoio à campanha de Márcio Braga.
– Para nós, flamenguistas, tudo corria bem: Flamengo bicampeão era prazer que há muitos anos a gente não experimentava. Mas eis que numa das manhãs desse mês de outubro me liga a colega jornalista Maria Helena Malta, da “Isto é” e “Jornal da República”, com a notícia de que o sr. teria proibido a entrada no Maracanã de uma recém-formada FlaGay, uma curtição da moçada guei rubro-negra que, à semelhança da ColiGay do Grêmio, de Porto Alegre, pretendia colorir e movimentar um pouco mais a torcida do nosso Mengo. No princípio não acreditei. [...] Segui o noticiário da imprensa e - por incrível que pareça - era verdade sim. O sr. estava mesmo contra a inocente ou folclórica ou desfrutável - dependendo do ângulo que se olhe - tentativa da rapaziada de entrar organizadamente no Maracanã adentro, sem, para isso, ter de esconder as suas preferências sexuais – dizia o primeiro artigo.
Artigo do Lampião da Esquina sobre a tentativa de criação da FlaGay — Foto: Reprodução
A segunda carta, assinada por A. P., critica o oportunismo de Pedro Paradela e Clóvis Bornay e diz que eles queriam "sair do anonimato", mas reprova mais o posicionamento de Márcio Braga na situação, dizendo que o clube perdeu a oportunidade de apoiar uma causa ao atacar "um grupo de aproveitadores" e acabar atingindo todos os homossexuais.
– Mesmo não tendo conseguido demarcar seu espaço nas arquibancadas dos estádios, a FlaGay, apesar da sua curta existência, conseguiu fazer história ao suscitar debates e questionamentos ao machismo e à homofobia que são características das performances hegemônicas de se fazer parte do campo futebolístico – considerou o historiador Maurício Rodrigues Pinto.
A oposição do clube e de outras torcidas organizadas do Flamengo e a intenção duvidosa dos membros fizeram a FlaGay sucumbir em 1979. Mas a ideia permaneceu viva e novas tentativas surgiram. A primeira foi em 1996, quando defensores da causa LGBT passaram a frequentar o Maracanã. Relatos de torcedores ouvidos pela reportagem indicaram que o grupo era integrado por ativistas e não por rubro-negros interessados no time e que, por isso, perdeu força no ano seguinte.
Em 2003, outra tentativa frustrada, conforme reportagem publicada pelo portal "Brasil de Fato". Antes mesmo de ser retomada, correntes da diretoria do Flamengo se opuseram à possibilidade. Helinho era o presidente na ocasião. No fim daquele ano, Márcio Braga venceria as eleições e voltaria a comandar o clube rubro-negro em 2004. Ao ge , ele disse não se lembrar desta tentativa de recriação.
FlaGay foi relançada com páginas na internet em 2016 — Foto: Reprodução
A FlaGay foi retomada em 2016, mas atualmente existe apenas no universo online, com uma página no Facebook. O perfil da torcida no Instagram foi derrubado pela plataforma. O torcedor por trás da iniciativa, Maurício Tosta, foi criado em Niterói e sempre frequentou o Maracanã. Atualmente mora em Brasília e, quando o Flamengo vai à capital do país, marca presença no Mané Garrincha.
– A primeira vez que fui ao estádio para torcer pelo Flamengo depois de me assumir gay foi uma das razões que me fizeram querer fundar a torcida. Na ocasião, fui com um namorado meu assistir a Flamengo x Botafogo, pelo Carioca de 2010. Tivemos medo de sermos vistos como namorados e não demonstramos nenhum afeto em público. Foi muito estranho. Até então, eu nunca havia percebido isso, até encarar pela primeira vez essa realidade diante daquele ambiente. Ali eu senti a necessidade de ter um espaço no estádio onde eu e outros LGBT+ pudéssemos torcer para nosso time de coração e nos sentirmos seguros e acolhidos – contou Maurício ao ge . E completou:
– Queríamos resgatar este legado, mostrando que desde 1979 - ainda em plena Ditadura Militar - já havia essa luta dentro do futebol. Ao mesmo tempo, sentíamos a necessidade de nos fazermos presentes e atuantes, afirmando que existem, sim, LGBT+ que amam futebol e são apaixonados também pelo Flamengo. Afinal, se somos a maior torcida do mundo, certamente assim seremos com relação à nossa diversidade. Por isso, em 2016 a FlaGay foi recriada por um torcedor gay rubro-negro, primeiramente no Facebook e, a partir de 2018, no Instagram.
Página da FlaGay fez postagem neste sábado, dia do Orgulho — Foto: Reprodução
A iniciativa ainda não saiu das redes sociais para o estádio em forma de grupo organizado. Mas o torcedor fez contato com outras torcidas organizadas do Flamengo e foi acolhido. O próximo passo é planejar campanhas em parceria. Nos últimos anos, ele tentou contato com o clube, mas não obteve retorno. A nova gestão, do presidente Bap, ainda não foi procurada.
– Pretendo acionar a nova diretoria, sim. No momento, estou tentando recuperar ou recriar o perfil no Instagram. Ver um trabalho de seis anos simplesmente desaparecer, sem ter nenhuma explicação ou mesmo um canal eficiente para que pudéssemos entender e fazer contestação mais firme, mexe muito com o emocional. Lá nós tínhamos muito engajamento. Queremos fortalecer a torcida junto a outras organizadas e novos membros. Temos uma boa relação com as torcidas “Nação 12”, “Flamengo da Gente” e “Fla Antifascista". Estaremos sempre lutando pela inclusão de nossa torcida nos estádios e pelo nosso direito e orgulho de sermos LGBT+ rubro-negros. Certamente, buscaremos o fortalecimento de nossas ações – concluiu o torcedor.
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