Deus perdoe quem mesmo?

Ex-jogador em podcast contando bastidores dos tempos de jogador. Está aí uma atração que já deixou de ser novidade, mas continua fazendo sucesso. Em meio a gostosas gargalhadas, a boleirada se diverte com as boleiragens do passado. Histórias muitas vezes divertidas, outras escabrosas, que até então circulavam só entre eles e seus parças. O que acontece na concentração fica na concentração — até o dia em que, no meio de um papo animado e nostálgico, pode virar um bom corte para as redes sociais.

“Vocês não sabem nem dez por cento do que acontece dentro do vestiário”, nos disse Muricy Ramalho quando se tornou comentarista. Hoje, ele está de volta ao local onde os outros 90% acontecem. Não há nada de ilegítimo nisso. Jogadores, treinadores e dirigentes não estão obrigados, seja por contrato ou compromisso ético, a revelar a vocês da imprensa o que se passa em seu ambiente de trabalho. Maaaas... (já dava para sentir a conjunção adversativa se aproximando, né?) Mentir é outra história.

Famosa camisa de Adriano com a frase "Que Deus perdoe essas pessoas ruins" — Foto: Reprodução
Famosa camisa de Adriano com a frase "Que Deus perdoe essas pessoas ruins" — Foto: Reprodução

“Manda provar”, disse um indignado Adriano em 2009, depois de queimar o pé no cano de descarga de uma moto e desfalcar o Flamengo nas últimas rodadas do Campeonato Brasileiro, bem no ápice da reação que levaria ao título (voltou na rodada final, ainda nitidamente sem condições de jogo). “Vão dizer que é por isso ou aquilo, mas tenho minha consciência tranquila. Estava em casa, e tem umas luzes que piscam no jardim. Estava passando e, quando virei, meu pé encostou na lâmpada. Se fosse de moto, eu falaria. Espero que tenham o bom senso de não começar a inventar um monte de coisas”. Era um recado para jornalistas como Janir Júnior, hoje meu colega no ge.globo e, na época, repórter do O Dia e autor do furo de reportagem sobre a causa da enorme bolha na sola do pé do atacante.

“Lembra disso, que eu rasguei aqui atrás?”, perguntou um sorridente Adriano em 2024, mostrando a mesma sola ao ex-companheiro Ronaldo Angelim, num vídeo postado nas redes sociais. “Que eu fui na moto e falei que foi na luz”. Pausa para risos. “Mentira da p...” Mais risos. Assim, 15 anos depois, o que fora negado veementemente passa a ser assumido candidamente. E segue o jogo.

A parte não contada dessa história está no dano que um ídolo do clube de maior torcida do país causou a profissionais que faziam seu trabalho com correção. Quando levantou a camisa depois de um gol para mostrar a inscrição “Deus perdoe essas pessoas ruins”, Adriano estava usando um canhão midiático para atingir aqueles que considerava seus inimigos. A ideia de que jogadores são vítimas indefesas do poder da imprensa — que, o disclaimer é sempre importante, não acerta sempre — já era falso naquela época. Hoje, quando Neymar e Cristiano Ronaldo têm mais seguidores do que qualquer veículo em suas redes sociais, o jogo virou de vez.

Jornalistas precisam responder pela veracidade das informações que divulgam. Janir sofreu a perseguição de muitos torcedores rubro-negros — que, na dúvida entre a afirmação de uma reportagem e a negação de seu ídolo, acreditariam em quem? Então, me parece justo pensar que jogadores, cada vez mais donos de suas próprias mídias, precisariam passar por um escrutínio maior do que risadas e curtidas num podcast ou numa live quando revelam que um dia mentiram descaradamente.

Fonte: O Globo