De menino a imortal, a jornada de Gabigol

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Tenho um amigo que só se refere a ele como Gabigol Meu Amor, e enfaixa um braço do neto com uma fita para que a imitação do muque nas comemorações de gol fique perfeita. Outro que ensinou ao filho: “Gabigol é um idiota; mas é o nosso idiota.” Outro ainda que tinha ingresso de sócio torcedor para o jogo deste domingo e fez questão de deixá-lo guardado na carteira. E mais outro que o condenou por isso e avisou: “Eu e meu filho vamos. E é para chorar!”

Gabriel Barbosa, Gabigol, Gabi, Lil’Gabi. O protagonista do domingo rubro-negro tem muitos nomes e parece ser capaz de despertar todas as reações, menos uma — a indiferença. Se a passagem pelo Flamengo terminou mesmo neste domingo, o que ele fez em campo justifica o debate sobre ser o segundo maior ídolo da história do clube (Zico, que lhe dedicou um tuíte carinhoso, continua intocável, e eu não o colocaria à frente de Júnior, mas a sua escolha pode ser outra, e ambas estarão marcadas por preferências pessoais). Os dois gols da virada sobre o River Plate em 2019 já seriam suficientes, mas outras finais vieram e ele deixou sua marca em quase todas. Não acredito em destino, mas que ele é predestinado, é.

Fora de campo, a complexidade aumenta na proporção das mudanças do futebol, da comunicação, do mundo, enfim. Gabigol é um ídolo de uma época em que ídolos ficam. Zico e Júnior foram embora para a Itália, e a bronca dos torcedores caiu na conta dos dirigentes; quando voltaram, para encerrar a carreira, o crédito ficou com eles. Depois deles, craques passaram a se despedir cada vez mais cedo, até antes de alcançar a idolatria — o Real Madrid só esperou Vinícius Jr completar 18 anos para levá-lo. Mas no Flamengo milionário de hoje, contratos são cumpridos até o fim, e ainda não há um consenso sobre o que fazer quando acabam: deu certo com Éverton Ribeiro, bateu o pânico com Bruno Henrique...

Com Gabigol, a decisão foi se arrastando e trombou com outra de suas características: a de ser um ídolo da era das redes sociais. Cada etapa do processo bombava. Vestiu a camisa do Corinthians! Anunciou a saída enquanto o time comemorava a conquista da Copa do Brasil! Na mesma medida do engajamento, crescia a desconfiança: e se foi tudo de caso pensado? É um desafio do nosso tempo acreditar na espontaneidade de quem se transforma em personagem principal de um documentário produzido por ele mesmo.

Mas havia sempre um tribunal a absolvê-lo: o da arquibancada. Os poucos gritos desaforados que vieram de lá foram sempre abafados pelos aplausos, pelos cartazes prevendo que hoje tem gol, pelas crianças imitando o muque e pedindo a camisa do ídolo (este último, um fenômeno que se espalhou por torcedores de outros clubes). Neste domingo, no Maracanã, teve mosaico, bandeiras, gritos de “Fica, Gabigol!”, o baile todo. O homenageado não pôde usar o microfone para retribuir esse carinho — o que fez com um gol. E, em entrevista a meu colega Raphael de Angeli, chamou de sem palavra quem lhe tomou a palavra. O presidente do clube, Rodolfo Landim, foi xingado pela torcida, e não se pode descartar a influência do episódio na eleição desta segunda-feira.

“Cheguei aqui um menino e saio imortal”, disse Gabigol. Seus olhos, na volta olímpica de despedida, pareciam absorver, traduzido em vermelho e preto, o poder que o futebol tem de fazer essa transformação.

Fonte: O Globo