Os mais jovens chamariam de "plot twist", uma reviravolta que surpreende e desperta o interesse do público no desenrolar de uma história. Mas podemos simplificar e chamar de destino. David Luiz voltou ao Nordeste para escrever os capítulos finais de uma trajetória que começou na Bahia, tem tudo para terminar no Ceará, mas que carrega consigo uma bagagem que vai além do campo e bola.
David Luiz em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Thiago Gadelha
Às vésperas da primeira decisão com a camisa do Fortaleza - um Leão como o Vitória da estreia como profissional em 2005 -, o zagueiro de 37 anos sabe que tem tanto a contribuir com as palavras quanto com a bola nos pés e não se priva de se posicionar sempre que necessário. O bate-papo de mais de duas horas com o "Abre Aspas" foi assim, com posicionamentos firmes diante de um ambiente cada vez mais complexo que rodeia o futebol brasileiro:
— As pessoas hoje estão solitárias devido a tecnologia, devido ao telefone. Elas não vivem mais o momento, elas querem registrar e não viver o momento. Elas não estão perto das pessoas porque querem falar com quem está longe. Elas são imediatistas não só no futebol, tudo é muito descartável, tudo se troca e segue. As pessoas querem plantar hoje para colher amanhã. Então, o trabalho que não é feito de uma maneira que te dê logo o resultado já não vale. A tecnologia trouxe isso, essa é a verdade.
"No fim das contas, estamos sobrevivendo e não vivendo"
A reflexão de David Luiz é ampla, vai desde a influência do mercado de apostas até temas sensíveis como racismo e homofobia, passando pelo território hostil das redes sociais. Filho de pai e mãe professores, o jogador do Fortaleza vai além do mundo do futebol, debate dilemas que afligem o Brasil como sociedade e bate na tecla da educação como caminho por dias melhores.
"Você ser rico hoje é ter saúde mental. A riqueza está em guardar o nosso coração, a nossa mente, e saber lidar com tudo que o mundo nos apresenta. Essa saúde mental é o grande diferencial das pessoas"
— Gosto sempre de perguntar às vezes na rua quando um torcedor fala algo ruim a mesma pergunta. "Ah, David, você não joga nada". E como é você no seu trabalho? Ponto. É só isso. Eu sei que eu que tenho que me guardar, me blindar, cuidar de mim, guardar minha mente. Infelizmente, o problema está maior nas pessoas que estão atacando do que em nós mesmos que estamos desempenhando um trabalho e estamos sujeitos a erros, acertos que vão acontecer. Elas que não estão desfrutando da vida delas da maneira que deveria ser.
David Luiz em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Thiago Gadelha
Pai de duas meninas e casado, David Luiz busca a lucidez para desfrutar da melhor maneira possível dos prováveis últimos anos de carreira com a camisa do Fortaleza - tem contrato até o fim de 2026 com opção de renovação por mais um. A partir deste sábado, às 16h30 (de Brasília), no Castelão, diante do Ceará, entrará em campo para tentar seguir com o rótulo campeão por todo clube que passou.
Com 25 troféus somados por Vitória, Benfica, Chelsea, PSG, Arsenal, Flamengo e Seleção, manter a rotina de títulos é o que falta para carimbar uma decisão que vai além dos gramados. Voltar ao Nordeste vai além de se reconectar com o início da carreira em Salvador:
— Os nordestinos têm uma maneira diferente de encarar a vida, de uma maneira muito mais intensa e talvez real do que propriamente não só nos grandes centros do Brasil, mas também lá fora. Você fica enquadrado pelo sistema e muitas vezes tem que esconder suas emoções e quem você realmente é. O povo nordestino não tem muito isso. Eles gostam de ser realmente quem são e não têm essa capa, esse filtro, que grandes centros acabam te transformando e te colocando dessa forma. Isso me alegra muito. As pessoas que me conhecem sabem que sou muito assim, o David real e sincero nas ações.
Real e sincero, David Luiz abriu aspas, passou a carreira a limpo e confidenciou para o futuro breve o plano de ser treinador.
David Luiz em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Thiago Gadelha
Para começar, queria que você falasse do retorno ao Nordeste. Você que rodou o mundo, foi campeão em tantos lugares, mas começou em um clube nordestino, um leão, que é o Vitória, e agora retorna para, talvez o capítulo final, em mais um leão do Nordeste. Passa o que pela cabeça?
— Começou lá atrás, né?! Antes de vir para o Nordeste, quando sonhei em jogar futebol, mas é verdade. O Nordeste faz parte da minha vida de uma maneira muito forte e muito presente. Foi talvez o início de tudo numa carreira profissional, uma oportunidade de realmente viver um sonho. Quando saí de casa, em Diadema (SP), bem novo, era um sonho muito incerto e depois me transformei em jogador profissional. Foi a realização do que eu gostaria, do que almejei e lutei para acontecer. São muitas as memórias e muitos os acontecimentos durante a minha caminhada que me fizeram amadurecer, crescer, viver alegrias... Sou grato a Deus e agora posso estar novamente no Nordeste para viver aquilo que eu vivi.
— Esse foi um dos grandes motivos que me fez optar pelo Fortaleza, optar por voltar ao Nordeste, por trazer de novo esse coração ardente que é importante nesta altura da minha carreira. Na idade que tenho hoje, se o coração não estiver ardendo, é melhor ficar com a família em casa e pensar em outros objetivos para vida. Estou no Fortaleza porque verdadeiramente ardeu meu coração poder escrever uma página linda da minha carreira. Estou muito feliz. Foi de um leão para o outro, teve um leão na Inglaterra também (Chelsea), e foi o animal que mais representou minha carreira.
Daquele menino que deixou Diadema e pousou em Salvador com muitos sonhos para o pai de família que chega a Fortaleza depois de tantas realizações, o que une esses dois Davids?
— Eu acho que continuo com o mesmo coração. Sempre tentei guardá-lo da melhor maneira possível. De um menino sonhador que não tinha nada dos benefícios financeiros quanto de outras coisas para o pai de família que tem o maior tesouro, que é minha família, ter guardado os ensinamentos dos meus pais. Mantive sempre todas essas pessoas ligadas comigo durante a caminhada mesmo jogando longe. Muitas vezes era difícil jogar em um estádio cheio e não poder tê-los perto depois, comemorar títulos e não ter amigos e família perto, mas foram anos de amadurecimento, crescimento e coisas que eu deveria passar para chegar hoje com o mesmo coração.
— Essa rota de desafios e obstáculos nos faz sempre potencializar o que somos, o que é o nosso verdadeiro eu, e chegar anos depois com o mesmo coração, mas de uma maneira muito mais lúcida, inteligente para saber lidar com coisas da vida.
Qual o principal ensinamento que aquele David Luiz do Vitória carrega até hoje para passar para os jovens no Fortaleza?
— No Vitória, foi quando eu saí de casa, deixei minha família e vi que a vida não era só coisa fácil. Foram dias difíceis longe, com saudade e tendo que ter a adaptação de conviver com 150, 200 meninos de lugares e culturas diferentes. Ter que sobreviver em meio a dificuldades sem ter ninguém como alicerce. Naquela altura, falava uma vez a cada 15, 20 dias com a família. Quando arrumava um cartãozinho de orelhão, raspava no chão para ganhar mais unidades ou era muito no "parapararapararã..." a musiquinha da chamada a cobrar. Era sobreviver e tomar decisões que, sendo certas ou não, a maturidade não saberia distinguir, mas era necessário tomar. Se tomasse certo, bem. Se tomasse errado, lidar com as consequências de maneira solitária.
— Em tudo isso, o ensinamento é que muitas das pessoas vem para sua vida para ajudar. Ninguém chega a lugar nenhum sozinho. O que há de mais valioso na vida são as pessoas. Essa troca que temos nos dá oportunidade de aprender, de crescer, de vivenciar e superar coisas juntos. O maior ensinamento é que o que eu vivi no futebol eu não conseguiria sem essas pessoas que passaram na minha vida desde lá no Vitória até a chegada no Fortaleza. E sabendo que aqui eu não vou conseguir nada sozinho. O clube já tem essa marca, já tem isso como um dos principais pilares, essa união, esse trabalho em conjunto. Quero fazer parte disso e ser mais um em meio essa multidão de apaixonados pelo Fortaleza para viver grandes conquistas nacionais e internacionais também.
Você bate muito na tecla do "desfrutar cada momento" e isso passa muito por entender esses momentos. Podemos dizer que essa é a última etapa da sua carreira e, por isso, será desfrutada de uma maneira especial?
— Não sei dizer. É sempre uma caixinha de surpresas, principalmente o futebol. Eu jogo futebol ainda porque eu amo o futebol. Se eu deixasse de amar, se acordasse e falasse que não amo mais, não conseguiria ir trabalhar só por ir trabalhar. Depois disso, tem a parte física, técnica, o que você entrega como profissional, e isso cabe a mim com a disciplina correr atrás dos meninos de 18, 20 anos e dar resposta em campo. É algo que muitas vezes você pode pensar que está perto ou longe (do fim), mas é meu lema de vida. É algo que eu já te falei lá na Inglaterra quando tinha o lema "Enjoy the life", que depois eu aprendi que a gramática certa é "Enjoy life" e eu usava isso todos os dias. Foi uma das primeiras frases que aprendi em inglês e usava dentro do clube porque gostava de viver isso. Os momentos temos que desfrutar. Nos momentos difíceis, ter a mentalidade de entender que faz parte e também desfrutar como forma de aprendizado.
Outros clubes fizeram propostas financeiras mais interessantes do que o Fortaleza, mas a possibilidade de ser relevante para o projeto do clube foi o que determinou a sua escolha. Qual foi o principal fator que pesou nesta decisão?
— Essa foi uma das coisas que me tocou também. O Fortaleza consegue ser admirado por pessoas que estão longe e não conhecem verdadeiramente o clube, devido as pessoas que estão no comando. Essa admiração à distância já existia. Quando o trabalho é realizado de maneira correta, os frutos chegam de maneira natural. O Fortaleza colhe frutos devido o que foi plantado lá atrás, da maneira que o trabalho é regado e das pessoas que são incluídas no sistema do clube. Foi uma das coisas que tocou meu coração.
— Tive, sim, a oportunidade de ir para outros lugares. Muitas vezes, pensamos no financeiro primeiro e não vou ser hipócrita de dizer que se fosse lá atrás, no início da carreira, eu não pensaria assim - ou não. Mas o que colocou como base para minha decisão foi o que tocasse meu coração, e o que tocou foi o projeto do Fortaleza, esse combo de coisas positivas desde o povo nordestino, a cidade que eu conheço, o trabalho desenvolvido, as pessoas, o projeto crescendo a cada ano, a possibilidade de ganhar, porque eu sou um competidor e amo ganhar. O clube se encaminha para conquistar grandes coisas e está próximo disso, os resultados falam por si só. São inúmeros fatores que me ligaram a este projeto de uma maneira muito pura, muito leve e que me fizeram vir aqui sorridente, contente, cheio de vontade e ambicioso como se fosse o início de carreira.
David Luiz em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Thiago Gadelha
Sua família teve participação nesta decisão pelo Fortaleza?
— Todos nós sempre temos o alicerce, as pessoas que realmente nos colocam com os pés no chão, nos dão um toque, nos ajudam e estão para nós em todos os momentos, alegres ou não. Vamos escolhendo a dedo ao longo da caminhada. Muitos têm a sorte de ter uma família presente, estruturada, com base e pessoas esclarecidas que te ajudam. Esse foi o meu caso. Sou um privilegiado por Deus por ter tido dois pais muito presentes, uma irmã exemplar, depois disso a vida fica mais fácil do que para alguém que não teve uma base familiar. Tanto meu pai quanto minha mãe assinam embaixo do que eu decidir por ser um homem muito mais maduro. Talvez lá atrás não fosse assim, mas hoje quem decide é o David e eu olho pelo bem-estar de todos eles. São as pessoas que eu quero ver bem.
— Decidir pelo Fortaleza não seria difícil para eles, por ser um dos melhores lugares do nosso país. A cidade é incrível, passei férias inúmeras vezes aqui e para eles é uma decisão do que eles vão viver aqui é muito mais fácil do que para mim, por envolver muitas coisas. Minha decisão foi sempre baseada no esportivo, no eu posso, no que eu desejo. Não foi uma decisão só de bem viver. Se fosse por isso, era melhor vir sem reponsabilidade e terminar minha carreira. Foi uma decisão esportiva pela ambição de ganhar e fazer parte de dar ao Fortaleza as grandes conquistas que o clube merece.
Você é um jogador que bate muito na tecla do lado humano em um ecossistema do futebol que cada vez mais robotiza os personagens. Nos últimos anos, você passou por questões de saúde importantes com essas pessoas que são tão determinantes na sua vida. Como que um atleta consegue lidar com isso? De alguma maneira, mudou também a sua forma de encarar a sequência em campo?
— Nós, como pessoas públicas, muitas vezes somos deixados de lado na questão humana. Porque ganha bem, tem que estar ali, tem que fazer, e eu acho que devemos sempre, sim, cumprir (a obrigação). Como eu fiz nesses acontecimentos. Estive lá, trabalhei, fui o primeiro a chegar, o último a ir embora, mas com o coração doendo, com a cabeça mais cheia, mais difícil, mas executando o que tinha que executar. Mas são todas as pessoas. Não fui eu que fiz isso, eu que fui super-herói. Todo mundo passa por dificuldades, mas é importante dizer que nós somos, sim, seres humanos, sentimos dores, temos nossos problemas familiares que são os que nos doem mais. São as pessoas que amamos e queremos bem.
— Um dos exemplos disso foi a final da Copa do Brasil de 2022, quando minha irmã caiu na ribanceira de Petrópolis, dez capotagens em 40 metros, e duas horas depois eu estava dentro de campo jogando e tendo que performar da melhor maneira. Não sei se eu soubesse de todo o acontecimento, se conseguiria, mas soube só da ausência por não vê-los. Meus sobrinhos iam entrar em campo comigo e não entraram porque estavam acidentados. São coisas que acontecem e cada vez mais nós damos valor. Outro dia, estava refletindo como é o ciclo da vida. A gente nasce e depende dos outros, o tempo vai passando, nos tornamos independente, e depois dependemos novamente muitas das vezes por estar debilitado e mais velho. É o ciclo da vida. Você começa, vai e depois começa a se despedir também de maneira natural. Internamente, nós que estamos ali no meio desta curva, começamos a saber que cada momento é importante.
— Se fosse hoje minha última entrevista, de que maneira eu entregaria para vocês o que eu quero falar e está no meu coração? Se amanhã for meu último jogo, de qual maneira eu faria? Essa maneira de encarar cada momento como especial faz com que as coisas se tornem muito mais agradáveis e a gente fixe mais aos detalhes, dê mais atenção. Sendo pai me fez mudar muito. Há um antes e depois. Você vê sua filha, viaja para jogar e quando volta elas estão diferentes. São outras meninas de uma maneira diferente. Isso me faz refletir o quanto é importante o estar junto e dar o nosso melhor, ser o nosso melhor. Já que Deus não levou minha irmã, meu cunhado, meus sobrinho, meus pais, minha filha, tenho que aproveitá-lo da melhor maneira possível.
Não deve ser simples conciliar todos esses pensamentos com um ambiente cada vez mais hostil como se tornou o futebol brasileiro. Parece que tudo é muito efêmero e que a pressão, a cobrança, a insatisfação é algo muito presente. De que maneira lidar com toda essa situação e até contribuir para que esse ecossistema seja mais saudável para todos os envolvidos?
— Tentando salvar as pessoas. As pessoas hoje estão solitárias devido a tecnologia, devido o telefone. Elas não vivem mais o momento, elas querem registrar e não viver o momento. Elas não estão perto das pessoas porque querem falar com quem está longe. Elas são imediatistas não só no futebol, tudo é muito descartável, tudo se troca e segue. As pessoas querem plantar hoje para colher amanhã. Então, o trabalho que não é feito de uma maneira que te dê logo o resultado já não vale. A tecnologia trouxe isso, essa é a verdade. As pessoas estão indo para o entretenimento cansadas, depressivas, angustiadas e ali é a válvula de escape para botar para fora tudo o que estão sentindo na vida e não somente no futebol. O entretenimento está sendo pressionado e espremido por conta do que é a sociedade hoje.
— As 24 horas ficaram pequenas para nós, devido o número de informações que colocamos na cabeça no dia, e isso faz com que a gente viva mais estressado, sem viver o momento que estamos e sufocados pela quantidade de informação e não pela qualidade. Rumando para o futebol, a pessoa que está ali assistindo está pressionada porque quer que você faça gol não porque torce, mas porque ela apostou. Quer o resultado porque vai influenciar no mês dela e isso acabou potencializando mais o lado negativo do que o positivo. As pessoas começam a se basear no que podem ter de imediato, na fonte de renda, da vida, e aí depende do David, do Joãozinho, do Zezinho, e tem que fazer o gol. Errou o pênalti, tomou um gol, errou um passe... Isso faz com que as pessoas vivam desta maneira e já deixa de ter entretenimento, prazer, mais nada. Deixa de celebrar o gol do seu time e passa a celebrar o que você apostou.
— Esse é o mundo real, essa é a verdade, e o futebol é um dos braços disso porque envolve muitas coisas. Dinheiro, poder, política, paixão, religião... Deixou de ser um entretenimento prazeroso. Nossa geração ainda viveu aquilo de esperar um mês, dois meses para ter um bilhete e ir com um pai para o estádio de futebol. O jogo é 4 da tarde, você chegava meio-dia, andava em volta, via as camisas, aquela coisa toda, a troca com as pessoas e até mesmo a rivalidade que era sadia e já não é mais. No fim das contas, estamos sobrevivendo e não vivendo.
Você fala da tecnologia, mas lá atrás na época do Chelsea era um dos jogadores que mais utilizava as redes sociais para se aproximar do torcedor. Em que momento que virou essa chave ou que você entendeu que era melhor se distanciar neste processo?
— A tecnologia nos ajuda muito, facilita muito. Não são apenas coisas ruins. Facilita ter ali o vídeo e falar com quem está distante... Só que a terra sem lei faz com que muitas das pessoas se aproveitem disso de uma maneira negativa e não positiva. Enquanto for a coisa positiva a maneira que você usa, mas infelizmente, por não ter lei. Acho que se a pessoa colocasse o CPF, a cara, e ter ali na rede social, muitos não fariam o que fazem. As mentes brilhantes que usam de forma ruim fazem com que a internet se torne muito ruim. Você tem uma empresa, eu tenho a minha, vamos usar a coisa ruim para atacar o concorrente. Se tem ali um CPF, um CNPJ, as pessoas vão ter que responder pelo que fazem e será muito melhor para que lidem com suas atitudes e atos dentro da lei.
Alguns amigos seus voltaram da Europa e sofreram justamente com isso, né?! Ramires, no Palmeiras, William, Corinthians... Como você vivenciou isso com eles?
— Impacta em todo mundo. Não é só com a gente que conhece, como são esses casos. Você ser rico hoje é ter saúde mental. A riqueza está em guardar o nosso coração, a nossa mente, e saber lidar com tudo que o mundo nos apresenta. Essa saúde mental é o grande diferencial das pessoas. Você deu exemplo de amigos meus, pessoas que convivi por muitos anos, e foram afetadas, mas têm a oportunidade de ter pessoas próximas para ajudar. Mas não gosto de diferenciar a classe do jogador, como se fôssemos os pobre coitados. A gente sofre por ser mais visível para todos, o ataque é em maior proporção, mas uma pessoa normal que tem um vizinho atacando já é ruim e te afeta de alguma forma. É natural.
— Gosto sempre de perguntar às vezes na rua quando um torcedor fala algo ruim a mesma pergunta. "Ah, David, você não joga nada". E como é você no seu trabalho? Ponto. É só isso. Eu sei que eu que tenho que me guardar, me blindar, cuidar de mim, guardar minha mente. Infelizmente, o problema está maior nas pessoas que estão atacando do que em nós mesmos que estamos desempenhando um trabalho e estamos sujeitos a erros, acertos que vão acontecer. Mas as pessoas que estão dentro do seu erro faz com que o problema maior esteja nela. Elas que não estão desfrutando da vida delas da maneira que deveria ser.
E de que maneira que você consegue se blindar disso tudo?
— Primeiro, eu creio em Deus. Eu sei que tudo neste mundo está no controle dele. Depois, eu tenho a possibilidade de trabalhar com pessoas capacitadas no ramo, seja psicólogo, isso ou aquilo, que podem nos auxiliar...
David Luiz em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Thiago Gadelha
Você faz terapia?
— Eu não. Mas tenho pessoas que dividem comigo que é como se fosse. Não têm o título de terapeuta, mas fazem parte do meu dia a dia desde lá de trás e me conhecem. Eu tenho afinidade para me abrir. Dentro do clube, eu sempre procuro com o psicólogo do clube, gosto de criar e montar uma relação com todas as pessoas. E alguém que é capacitado, estudou para isso, sabe lidar com muitos gatilhos de uma maneira mais leve e saudável do que eu, sempre gosto de aprender. Estar disposto a aprender é um dos grandes segredos da vida. Depois, é trabalhar e performar. O que te tira o medo? Saber o que vai fazer. A performance depende muito da preparação. Quanto mais você se preparar, melhor a performance. Eu tento sempre me preparar, ter entendimento para performar da melhor maneira possível.
Essa clareza nas atitudes é o que faz com que você cuide também do seu comportamento perante o torcedor? Não foram poucas as vezes em que você ficou sozinho dando autógrafos na frente de hotel, por exemplo, durante sua passagem pelo Flamengo.
— Não gosto de me colocar como exceção. Eu sou diferente. Por que eu faço? Porque eu gosto. Tem gente que não gosta e ponto. Eu gosto, essa é a primeira coisa. Quando a gente faz o que gosta, é mais prazeroso. E por outro lado, temos responsabilidades? Temos. Então, são dois pontos aí. Eu gosto de estar dando para as pessoas aquilo que elas fazem comigo, o carinho. Eu gosto de retribuir. Eu gosto de lembrar do meu passado, que um dia eu estava do outro lado da grade e agora estou deste lado. E lembro da responsabilidade que tenho. Então, são pontos que fazem com que todas as vezes eu pense nisso: "Talvez, ele viajou 1.000km, o outro 2km. Tenho que estar no jantar 19h30? São 19h e eu tenho meia-horinha para atender". Tenho a noção de que sou um dos líderes do time e o clube tem que retribuir para a torcida que enche o estádio em todo fim de semana. Coloco todas as perguntas na minha cabeça e gosto. O abraço de uma criança, de uma senhorinha que estava lá com 80 anos... O que representa isso? Como que deve ser o dia a dia dela? "Ah, aquele cabeludinho lá, eu gosto dele". Entender e retribuir esse abraço vai me tornar mais forte. Tudo isso eu cogito dentro da minha mente para tomar as minhas atitudes.
— Passei a vida lá fora, que não é o mesmo calor, a mesma coisa, a mesma maneira, e a melhor forma de liderar é dar o exemplo. Para os jovens, eu tempo explicar isso. Acho que os jogadores entre si ainda têm muito o medo de um com o outro. Fala que é puxa saco, não sei o quê, essa imaturidade. Outros não fazem para não parecer puxa saco, mas ao mesmo tempo quem fala isso adora a torcida quando grita o nome dele. Não parou ainda para entender que é uma expressão imatura e de falta de conhecimento enraizada no futebol e não algo dito pensado. Muitas das vezes, eu falo com um ou outro que tenho intimidade para ir lá. Claro que não dá para dar atenção para todo mundo todas as vezes, mas as pessoas querem só um olhar, um pedido de desculpas.. Na vida, o respeito vem antes de todas as coisas.
Em uma entrevista recente, viralizou quando você falou do quanto te faz feliz compartilhar das coisas que o futebol te deu... Gostaria que você falasse um pouco sobre isso. É o que te deixa mais realizado?
— Isso é o que sempre me fez feliz. Quando eu olho para trás, começo a ver coisas que eu passei e são traços da minha responsabilidade. Estava lembrando esses dias de quando eu jogava na escolinha do Marcelinho Carioca e tinha o professor principal que, como eu era chato e arrumava briga, queria as coisas da minha maneira, sempre me colocava com os piores jogadores no campeonato interno para que eu perdesse. E eu arrumava uma maneira para tentar ganhar. Estava refletindo e lembrando que lá atrás eu ganhei uma vez quando peguei três jogadores que não sabiam jogar e falei: "Você agarra aquele ali, você agarra aquele lá", que eram os melhores do outro time e eu fiquei lá atrás chutando. Lembro de termos ganhado a final e a alegria que eles ficaram. Eram meninos que nunca tinham ganhado uma medalha e aquilo me tocou.
— Hoje em dia, eu amo ajudar as pessoas a realizar. Tento estar sempre disponível para quem quer ajuda. Muitas vezes tem os dois lados. Chegar e falar para quem não quer ajuda é uma coisa, é diferente para quem chega e pergunta, para quem é acessível. Isso é prazeroso. Estou sempre disponível e amo ver as pessoas felizes. Gosto de identificar quem é uma pessoa coletiva ou individual. Quando encontro quem é coletiva, me identifico bastante. Aquela que quando vai jantar deixa os outros comerem, são pequenas coisas que fazem a diferença no final. Com os jogadores jovens principalmente, estou sempre aqui para ajudar. Vai ser legal vê-los vivendo o que eu vivi. Lá fora, muitos me ajudaram, lá no Vitória também, e a gente não chega a lugar nenhum sozinho.
Você falou do carinho da criança até a senhora de 80 anos, e a sua figura sempre foi algo que despertou essa proximidade do torcedor. Já entendeu o que faz com que muitas pessoas que nem são muito ligadas ao futebol saibam quem é o David Luiz?
— Primeiro, a oportunidade que o futebol me deu. Depois, o trabalho e a dedicação que permitiram que eu jogasse os melhores jogos do mundo e a pessoas me conhecessem. Tem também essas oportunidades que vocês (imprensa) nos dão de abrir um pouco mais do que a gente é para as pessoas gostarem, e depois talvez a energia natural da vida. Muitas vezes, a gente olha para a pessoa e tem a empatia, gosta, e outras não. Isso não se explica. Eu tenho isso. Às vezes, olho para a pessoa e gosto dela, seja pelo jeito, forma de olhar, de falar, de ser e me agrada. Acho que todo mundo tem isso por vários caminhos.
— O que eu tento é ser eu e quando as pessoas têm a oportunidade de estar comigo, dar o meu melhor David para elas. Isso que é importante. Muitas vezes vamos estar com a pessoa na vida dez segundos, cinco segundos, um minuto, e que a gente possa dar a nossa melhor parte neste dia. Aqui, há dez pessoas na sala que talvez nunca mais vão estar comigo. O que eu tento é dar o meu melhor David para elas. E eu sendo uma pessoa pública, que tenho a oportunidade de sempre estar falando para uma quantidade maior de pessoas e ter a atenção das pessoas pelo clube que represento e pelo que o futebol dá de oportunidade, tento dar o meu melhor. Muitas vezes não consigo, mas a minha intenção é sempre dar o melhor.
David Luiz ganha camisa em retorno ao Barradão — Foto: Victor Ferreira / EC Vitória
Voltando para o campo, vamos passar clube a clube da sua carreira, cada memória desde o Vitória...
— Não quer desde o São Paulo, não?! Porque o São Paulo é legal. Foi a primeira frustração. Eu fui dispensado, mandado embora, disseram que eu não ia crescer e me fez entender que não era um mar de rosas. Eu com dez anos já ganhava R$ 50 e dava para minha mãe. Então, hoje é uma realidade que eu entendo que estava no melhor lugar naquela altura e era algo surreal. Foi uma primeira frustração que me fez crescer bastante e me fez viver a nostalgia quando eu estive no Morumbi pela primeira vez. Pensei que agora era parte daqueles jogadores que eu via. No São Paulo, sempre tem muitas crianças. Eu fui jogar em um Flamengo 4 x 0 São Paulo e quando estava no túnel olhei e pensei: "Agora, estou dentro do campo". Já tinha ido com a Seleção, mas não era aquela mesma foto que eu via quando estava lá no anel, na torcida, assistindo. Foi um momento legal que eu vivi.
— Já o Vitória representa a minha gratidão por tudo. Jogo uma Terceira Divisão, vamos para a Segunda e eu já vou para a Europa. Dei um salto muito grande de etapas que talvez muitos jogadores não deram. É a gratidão de ter amadurecido ali, passar da puberdade para adolescência de uma maneira muito rápida e com muitos amigos na Bahia que me ajudaram bastante. Essa é a gratidão que eu tenho pelo clube que me revelou.
Recentemente, Jorge Jesus elegeu você como o jogador com a melhor mentalidade que ele já trabalhou. Acho que isso diz muito da sua passagem pelo Benfica, mesmo sendo tão jovem...
— Eu tive que chegar e entender logo onde estava. Meu contrato era de janeiro até abril e eu não tinha jogado ainda. O técnico era o Fernando Santos, campeão europeu com Portugal, e isso tudo me fez enxergar logo que seria necessário ter uma mentalidade diferente se quisesse jogar. Eu jogo esse final, consigo uma renovação, tive a oportunidade de ir para o Porto e meu pai disse: "Não cospe no prato que comeu". Fiquei no Benfica e tive lesões que me deixaram quase um ano sem jogar. Isso me preparou para quando eu voltei. Não tinha espaço na zaga, o Luisão e o Sidney estavam muito bem, e eu perguntei ao treinador: "O que você precisa?". Ele disse que não tinha lateral-esquerdo e eu comecei a treinar ali, ver vídeo, Maldini, aquela coisa toda para me preparar. Joguei quase um ano ali, até me encontrar com o Jorge. E ele me potencializou como jogador de uma maneira surreal. Ele sabia que eu faria o que ele pedisse. Estava totalmente preparado por esse caminho de muita dificuldade no Benfica. Lesão, sair da Terceira no Brasil para a Primeira em Portugal. Do calor para o frio. Cheguei em Lisboa de regata e meu empresário teve que me dar a blusa. Nem os repórteres me reconhecerem como novo reforço do Benfica... Foi o meu primeiro tudo na Europa. Foi engraçado até experimentar terno, todas as coisas do clube que é muito grande. Foi o máximo, foi a preparação para me tornar mentalmente muito forte.
De lá, você vai para o Chelsea, onde você acabou construindo uma imagem muito forte. Fica aquela impressão que, por mais que tenha passado por tantos clubes, será sempre o "David Luiz do Chelsea"?
— Acho que sim. O Chelsea vivia um dos melhores momentos da história e eu fiz parte disso. Ter ganhado a Liga dos Campeões pela primeira vez, voltar a ganhar a Premier League depois de anos quando eu volto do Paris para lá para conquistar de novo. E eu era muito feliz. Tive uma identificação muito clara e fiz parte de uma geração muito vencedora com grandes talentos que brilham no futebol mundial. Foi uma identificação clara e que se expandiu muito por tudo o que conquistamos.
É uma história com uma passagem, entre ida e vinda, pelo PSG. Como foi esse hiato em Paris?
— Foi maravilhoso ter vivido essa segunda fase desse crescimento do Paris. Fui para lá e foi um dos times que mais jogava bola, que é o que eu gosto no futebol. Ganhei todos os títulos da França que disputei durante os dois anos: Francês, Copa da Liga, Copa da França e Supercopa. Ninguém nunca tinha feito isso. Infelizmente, não conseguimos a Liga dos Campeões. Ficou esse gostinho, mas fui muito feliz. Tive a oportunidade de viver coisas fora do campo também que foram muito legais e representaram um momento muito feliz da minha carreira.
E a decisão de ir para o Arsenal depois de tanta história no Chelsea? Trocar um rival londrino pelo outro foi difícil?
— Foi uma decisão que eu tive no momento devido ao que vi que poderia acontecer durante o ano. Já estava numa idade em que tinha que tomar decisões. Depois que você tem 30, 32, você não pode perder ano sem jogar. Eu renovei com o Chelsea, eles me deram dois anos pela relação próxima que eu tinha com o Abramovich, mas quando definiu o Lampard como treinador, vi na pré-temporada que o estilo de jogo não me agradava. Tinha jogado com ele, tinha uma relação e falei da oportunidade de sair, disse que preferia ir para outro clube grande com um treinador que já me conhecia e tomamos a decisão juntos. Fui para o Arsenal no último dia de janela e a vida sempre nos dá oportunidades. No primeiro ano, a final da FA Cup foi contra o Chelsea e fomos campeões. Foi uma transição de muito aprendizado. Ir para o Arsenal foi muito bom para enxergar mentalidades diferentes e minha única tristeza foi não dar para o Unai Emery o que ele merecia. Depois de seis meses, ele saiu e entrou o Arteta. Não consegui ajudá-lo. Mas com o Arteta eu sou grato por ter um dos melhores treinadores do mundo. Ele me ajudou a enxergar o futebol de uma outra maneira. Essa escola Guardiola. Gostaria de ter sido treinador por ele...
David Luiz no Chelsea em 2014 — Foto: Adam Davy - PA Images via Getty Images
— Lá em 2013/14, eu tinha assinado contrato com o Barcelona, tinha estourado champanhe e tudo, e o Mourinho não me deixou sair do Chelsea. Ia ser um sonho ter tido a escola Barcelona. Hoje, sei que era um propósito de Deus, mas depois tive a oportunidade de viver essa escola com o Arteta, que me ensinou muito. Todas as essas trocas me deram a oportunidade de aprender.
No fim de sua passagem pelo Flamengo, você disse que não iria para o Vasco, mas trocou Chelsea por Arsenal. As relações de rivalidades na Europa são mais maduras neste sentido?
— Acho que são passionais da mesma forma, mas são mais relações mais respeitadas do que no Brasil. Quando ia jogar contra, ficava aquela coisa, mas eu encontrava pessoa do Chelsea na rua e me abraçava, tirava foto... No campo, era torcida contra, mas fora tinha o respeito que é diferente. Se eu tivesse trocado o Flamengo pelo Vasco, ia ser uma loucura e no Rio de Janeiro as pessoas não iam ver desta forma. E eu também nunca cogitei.
Por fim, você retorna ao Brasil após quase 15 anos para um ambiente tão peculiar como o Flamengo. Dá para definir tudo o que envolve o clube em todos os sentidos?
— É como eu falei: foi uma das melhores páginas que vivi na minha vida. Tudo foi de uma maneira natural e nada pensada. Eu nunca falava em voltar ao Brasil ou jogar no Brasil. Veio a pandemia que nos fez refletir sobre a vida, o que representa, aquela coisa toda que nos colocou em casa para pensar no que devemos fazer. Estava em Angra com minha família apresentando minha primeira filha para as pessoas, fazendo exames todos os dias, aquela loucura, e começou o movimento da torcida.
— Eu tinha inúmeros clubes em conversas para voltar para Europa, mas o primeiro contato já foi impactante. Aquele mundo da Nação quase que me convocando para jogar e vinha o conjunto de tudo: estar perto da família para jogar num clube onde todo jogador gostaria. Meus pais moram em Juiz de Fora, que é do lado. Foi um combo de todas as coisas até que tomei a decisão de jogar pelo Flamengo e sou eternamente grato. Conseguir ter conquistado é ainda melhor e mais importante. Por isso, fiz questão de abrir a câmera e dar o meu testemunho final, meu agradecimento final sem cortes, sem nada, de uma maneira muito sincera. Foi o que eu vivi lá dentro. É um vulcão de emoções. Pressão de não ganhar, pressão quando ganha, dentro do campo, fora do campo... É o que faz te sentir vivo. Fui muito feliz no Flamengo e sou eternamente grato.
O que mais te surpreendeu neste período?
— A grandeza do Flamengo. Você imagina, mas não dimensiona quando está dentro. A dimensão é muito maior do que aquilo que você vê de fora.
Você já falou do quanto te satisfaz influenciar no outro. Até por isso, o título da Libertadores de 2022 tem um lugar especial na sua galeria pelo que você jogou, mas também pelo que você sabe que influenciou em jogadores determinantes naquela conquista, como Rodinei e Pedro?
— Sem dúvida nenhuma. Foi um presente de Deus esses dois meninos na minha vida. Poder ter ajudado eles a realizarem foi ainda mais prazeroso para mim. Cada um com uma história diferente. O Rodi um órfão no sentido jogador. Quando eu chego no Flamengo e vejo o tanto que ele era solitário no sentido de ajuda a potencializá-lo. Hoje, está provado para todo mundo a qualidade que ele tem. Fico feliz, porque se eu tivesse falado isso lá atrás publicamente não iam me dar credibilidade ou iam rir. O Rodi brincava e era feliz pela personalidade, mas também para esconder as dores que ele tinha. Eu falava para ele: "As pessoas não podem te ver como o segundo palhaço mais legal do país. Você só perde para o Tirulipa, o resto você ganha". E as pessoas só tinham isso de que ele era legal, bacana, mas não podia jogar. Quando eu vi ele treinando, vi que ele não jogava por culpa dele. E quando ele colocou na cabeça, eu pude ajudá-lo para viver o que ele queria viver. Quando perguntei qual era o sonho, ele nem mencionou Europa e disse: "Quero jogar no Flamengo". Eu disse: "Não, seu sonho, sonho!". Ele: "Quero jogar na Europa, mas não dá mais, né?", daquele jeito dele. E eu falei: "Dá! Mas primeiro tem que jogar aqui". Colocamos como objetivo e lutamos juntos por isso. Foi todo um trabalho devido a muitas coisas fora e dentro do campo, de disciplina, de renúncia, de dedicação e depois foi coroado. Na Copa do Brasil, de uma maneira muito mais visível, mas principalmente na Libertadores.
— O Pedro era um menino que as dores do passado ainda o doíam. A primeira coisa que falei com ele foi: "Limpa seu coração e faz de novo". Lembro de uma frase que falei com ele tomando café: "Pedro, eu sou seu amigo, te amo e te admiro como jogador, mas, se eu fosse o treinador hoje, você também não jogaria". Ele ficou bravo comigo, ficou dois dias sem falar, mas entendeu que precisava se dedicar mais, ser mais focado nos treinos e terminou como Rei da América. Foi algo que ele já merecia, não que eu fiz. Ele só precisava de mais alguém de fora, que caiu de paraquedas na vida dele, para estender a mão, ir junto e fazer com que ele deslanchasse e mostrasse o que já tinha mostrado no Fluminense. Foi coroado por aquilo que já merecia. Depois, tiveram tantos outros... O Vitinho (Victor Hugo) que está na Turquia, o Hugo, que está recebendo o que merece, Matheuzinho, e tantos outros que viram de perto do que aconteceu com Rodinei e Pedro. Foi algo que foi vivido por muitos de uma maneira próxima, mas nós três sabemos o que passamos e renunciamos para conquistar aquele título.
O capítulo final do Flamengo acabou gerando aquele disse me disse no processo de sua saída. Como ficou toda essa situação?
— O Filipe veio falar comigo depois. Peço até a liberdade e desculpas a ele, mas veio na minha casa conversar comigo e pedir desculpas pela maneira que foi. Falei com ele para descansar o coração e que estava de boa comigo. Quero que ele seja muito feliz, o potencial que tem é imenso, que tenha muita sorte, mas não contra mim. Brinquei com ele, foi de uma maneira leve e já é passado.
Pegando o gancho do Filipe, você também pensa em seguir os passos como treinador quando parar de jogar?
— Quero, sim. Tenho isso como um objetivo. Não sei se vai acontecer ou não, porque assim que parar de jogar vou conversar com a família e ver se isso vai fazer parte dos planos. Eu sou intenso e quando quero fazer alguma coisa é 100%. Sempre foi assim na minha vida. Se for para ser treinador, vai ser de uma maneira correta e dedicar o meu tempo. Tenho isso em mente, eu gosto, tenho experiência treinando jogadores individualmente e fico alegre. Gosto de ver as pessoas vivendo coisas que elas querem viver, fazer parte disso. O treinador te proporciona isso tanto para os jogadores, para o clube, para os funcionários, para os torcedores... Me imaginar campeão como treinador, ver a torcida feliz, chorando, contente, todo o ambiente realizando o que gostariam, é o que me move. No dia que eu não aguentar mais correr, como treinador a responsabilidade é diferente e muito maior. Dimensionar isso é surreal, mas vou tentar me preparar da melhor maneira.
Você trabalhou com nomes como Jorge Jesus, Mourinho...
David Luiz em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Thiago Gadelha
— Ancelotti, Sarri, Conte... Um sorri, outro não. Felipão, família, Benitez... Foram muitos. Eu seria hipócrita em escolher um. Acho que de todos eu tentei tirar algo. Só brincando aqui, falamos oito, nove nomes. O David seria um estilo real, eu gosto de relacionamento, de ter essa conexão individual, sim, com os jogadores, as pessoas. Isso requer mais tempo, mais energia, mas não vou conseguir ser de uma outra maneira. No plano tático, isso e aquilo, são variáveis que se adaptam ao contexto. Aos jogadores, ao momento, ao adversário. São coisas adaptáveis.
Agora, você trabalha com o Vojvoda, que é o maior treinador da história do Fortaleza. Como foi esse primeiro contato, como é a relação?
— A gente conversou antes de vir para cá. Foi uma das coisas que o próprio Marcelo (Paz) e eu conversamos de uma maneira clara. Primeiro de tudo, na hierarquia o líder é o treinador e era preciso conversar com o Vojvoda para saber se ele queria mesmo que eu chegasse para fazer parte do Fortaleza. Fui muito sincero e com ele também foi da mesma maneira. Falei: "Professor, imagino o tanto de coisas que um treinador tem que decidir, a pré-temporada já começou, de repente você já definiu o seu plano, o seu grupo, de repente não seja valioso chegar alguém agora. Chegar um jogador da minha idade ou maneira de jogar...". Expus tudo para ele, falei da minha admiração, e o deixei muito confortável. Falei que o que ardia meu coração era o Fortaleza, mas que, antes de tudo, ele é o líder principal.
— Foi uma conversa muito franca, sincera, leve, e depois de dois, três dias, ele me ligou e falou que me queria. Foi algo muito bacana e está sendo tudo muito sincero. Depois de conhecê-lo pessoalmente foi da mesma maneira. Acho que ele é um exemplo, juntamente com o Fortaleza, para os outros clubes do nosso país. Vai para o quinto ano no clube e é algo que os outros devem pensar também. O Fortaleza cresceu devido as atitudes e palavras do Vojvoda, o Vojvoda cresceu também pelo Fortaleza. Quando o momento não era bom, o clube o abraçou. Quando ele estava bem, ficou no Fortaleza. E é por isso que o clube vem nessa crescente.
No Fortaleza, você reencontra o Castelão, que é um palco marcante na sua carreira, com direito a gol em Copa do Mundo. O que você espera viver novamente no estádio?
— Acho que replicar esses momentos felizes que eu tive ali dentro, principalmente esse jogo marcante com a Seleção, esse gol marcante na minha carreira. Quero estender essas alegrias e dividir com a torcida do Fortaleza da melhor maneira possível.
david luiz Brasil gol Colombia Arena Castelão — Foto: Agência EFE
Saindo do campo, qual o posicionamento do David Luiz sobre questões sociais que cada vez mais fazem parte da realidade do futebol? É um ambiente que acaba trazendo à tona discussões relevantes como racismo e homofobia... Como você se posiciona neste sentido?
— Enquanto não houver punições severas para pessoas que praticam qualquer ato de discriminação, as pessoas não vão aprender. Não vale só a gente estar levando mensagens, placas... Não basta somente isso se as autoridades que devem tomar as decisões não punirem os culpados. Eu gosto da educação como começo de tudo, mas outras coisas devem ser por punição também. Todo mundo já teve acesso a muita coisa. Talvez não profundamente, mas um primeiro acesso todo mundo já teve e sabemos diferenciar o que podemos ou não fazer. Quando se tem algum ato, devem ser punidos e isso falta na nossa sociedade. As pessoas estão passando ilesas com os atos. Seja real em campo ou na internet, naquela terra sem lei onde se escondem no perfil falso.
A voz ativa dos atletas pode ser mais importante nesses casos? Racismo, por exemplo, muitas vezes acontece em campo e fica a impressão que o todo não se mobiliza, não se compromete em campo... De que maneira que os atletas podem ser mais incisivos neste sentido?
— A partir do momento que você representa uma instituição, você assinou um contrato onde tem que seguir algumas regras da instituição. Muitas vezes alguns jogadores não se posicionam por medo ou respeitando o que foi imposto e assinado no contrato. Muitas das vezes fica essa meia embreagem devido a isso. Mas nós, jogadores, cada vez mais devemos nos posicionar e ter a oportunidade de falar e ajudar pessoas que não têm conhecimento a cada vez mais crescerem como pessoas. Isso passa pelas mensagens transmitidas todos os dias por nós ou por quem tem a possibilidade de ajudar de uma maneira mais incisiva e direta quem ainda não conseguiu adquirir a responsabilidade social, maturidade social e respeito social.
Outro tema sensível nos dias atuais e que impacta muito até na imagem do atleta de futebol são as apostas. Você falou mais cedo que isso acaba direcionando até a "paixão" do torcedor. Como você encara essa realidade?
— Cada vez mais, devemos montar algo de uma forma mais simples e com leis educativas para mostrar de maneira natural. É uma realidade hoje que sustenta muitos clubes e que entrou de uma maneira forte porque o dinheiro está dentro do futebol. Faz parte e não tem como tirar, mas há como falar e colocar leis, colocar cercas para não perder a real essência do futebol bem jogado de maneira natural e não infectado. Para os jogadores não perderem a credibilidade. Se não for assim, você impacta na verdade do jogo, que não pode ser afetada. Pode ter muitos outros empecilhos de opiniões, mas não de verdade. As competições precisam ser disputadas de maneira real e verdadeira. Quando isso chega aos jogadores, eles devem ser punidos, sim, porque está atingindo a veracidade do jogo e isso faz com que se perca o amor, a paixão e a magia do futebol que nos move há tantos anos.
Você falou algumas vezes que não se desvencilha o futebol da sociedade. Gostaria de saber que Brasil você encontrou nesses já mais de três anos de volta da Europa? Qual sua visão social do nosso país como cidadão?
— Eu, como filho de dois professores, o que mais me preocupa é sempre a educação. O que me preocupa com minhas filhas é sempre a educação. O que eu tento estar sempre ligado de alguma maneira é nisso, educá-las da melhor maneira possível. A pessoa só vai conseguir diferenciar o que é certo ou errado se tiver educação. Só vai conseguir saber como agir, se tiver educação. Só vai ser disciplina, se tiver educação. Não vai ter violência, se tiver educação. São muitos dos pontos que estão por debaixo da educação e nosso país deveria investir cada vez mais. Nossos clubes devem ser mais incisivos na educação e na formação dos jogadores, mais do que ver a cifra e acelerar o processo para depois vender e ganhar sem educar, sem formar como cidadão. Ele vai para o meio do futebol ganhar dinheiro, daqui a seis meses volta, acaba a carreira sem nada, e o clube não lembrar que também é culpado. A educação é ponto chave para o sucesso a longo prazo, mais do que o prematuro de um menino que desponta como craque aos 18 anos, vai para um grande clube, pega o dinheiro e vai descendo degraus. Ele acaba a carreira financeiramente sem nada, psicologicamente acabado e a gente sabe como vai ser o final da vida.
Nessa pegada de educação, o influenciador Negrete revelou certa vez um puxão de orelha que você deu nele quando chegou na sua casa com um carro importado. Conter excessos quando se tem essa ascensão social é algo que faz falta na realidade atual seja do futebol, seja das mídias sociais?
— Foi algo muito natural. Ele me ligou e falou: "Estou chegando na sua casa, sai na porta aí". Quando eu vi, pensei: "O que esse moleque está fazendo?". Alguém que começou agora a ganhar dinheiro e já tem carro importado que custa caro, custa caro o seguro, a gasolina, tudo isso... Eu entendia a empolgação que eu já tive lá atrás de não ter nada e começar a ganhar dinheiro. Você nem dimensiona o que é a vida, o que tem que guardar, gastar. E eu falei: "Vai para casa e só volta aqui depois que vender esse carro". Ele ficou bravo, mas ele gosta de ouvir e aprender. Quando você tem a possibilidade de ser uma dessas pessoas que eles escutam, acho que tenho que ser incisivo e forte para o bem deles. O Negrete teve esse episódio que mudou muita coisa e fez com que ele entendesse o processo que passava pela casa dos pais, pela simplicidade, por não deslumbrar de uma maneira que era até natural. Você passa do 0 a 100km/h muito rápido.
David Luiz em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Thiago Gadelha
— Isso serve de exemplo para todo mundo que quer ser influencer, quer ser jogador, quer crescer. é preciso entender que há um processo e que há coisas que não são negociáveis. As coisas que não são negociáveis é preciso saber para manter e, aí sim, atingir o sucesso com a vida estabilizada, bem, feliz com a família, sabendo como agir e quando agir.
Para encerrar, como você tem visto o momento atual do futebol brasileiro? Fala-se muito de um Brasileirão mais badalados dos últimos tempos, mas ao mesmo tempo a Seleção vive momentos de questionamentos e resultados negativos...
— O momento é ruim pelos resultados, mas o potencial está sempre aqui, seja dos jogadores, treinadores, tudo o que envolve. Quando se tem laranja para fazer suco, dá para fazer suco. Potencialmente é possível. Esperamos que o Dorival consiga desempenhar o que sabe da melhor maneira, que encontre jogadores que possam dar respostas positivas para essa falta de crença, que supere esse momento e reconquiste essa paixão, amor e respeito. A evolução de todo futebol faz com que cada vez esteja mais difícil para o Brasil. Todos os países do mundo evoluíram. Não há mais esse degrau tão distante devido a tecnologia. Hoje, eu quero saber de um jogo, eu pego, vejo e estudo o jogo. É normal isso. Antigamente, na época do Pelé, você ficava na sua cidade esperando ele vir jogar e ouvia no rádio ou lia o jornal. Hoje, você pega o telefone e tem tudo, que é mais acessível. Devido a isso, ficava mais difícil para quem tem potencial. O que espero é que o Dorival monte uma equipe muito forte e consiga montar uma equipe forte para que possamos ganhar a Copa do Mundo novamente.