Estariam Bolívar e Flamengo conectados em um multiverso? Quando a bola rolar na noite desta quinta-feira, às 21h30 (de Brasília) no estádio Hernando Siles, só um deles vai continuar na Conmebol Libertadores. Mas quem quer que seja o eliminado nas oitavas de final, ele terá um caminho para seguir parecido com o do classificado fora de campo. É que ambos têm mais em comum do que parece.
Qual rubro-negro não se lembra da icônica frase de Mário Braga em uma entrevista coletiva em 2009, dizendo com todas as letras que "acabou o dinheiro"? Na primeira década do século, o Flamengo viveu grandes crises financeiras, tinha salários atrasados como rotina e bateu na trave de ser rebaixado. A reconstrução, que começou em 2013, permitiu ao clube chegar ao patamar atual. O Bolívar viveu algo parecido. Depois de ser vice-campeão da Copa Sul-Americana em 2004, após perder a final para o Boca Juniors, o clube se afundou em dívidas e esteve prestas a quebrar.
- Em 2008, o Bolívar estava para desaparecer. Tinha tantas dívidas, tantos processos, que já não dava mais. Estava para cair para a Segunda Divisão e desaparecer. Neste momento, Guido Loayza (ex-dirigente do time nos anos 80), que era amigo do Marcelo Claure, decide chamá-lo para salvar o clube - contou ao ge Eduardo Valdivia, CEO do Bolívar.
Claure, no caso, é um empresário bilionário e considerado o boliviano de mais sucesso dos últimos tempos. E também torcedor fanático do Bolívar. Disposto a salvar seu time de coração, ele fez um acordo de 20 anos, que vai até novembro de 2028, para pagar as dívidas e comandar o clube, no qual desde 2020 é o presidente (substituindo o amigo Guido Loayza que estava no cargo desde 2008).
A reestruturação do Bolívar tem como base quatro pilares: êxito esportivo (manter a soberania nacional e emergir no cenário internacional); oferecer melhores condições aos jogadores; apostar e investir nas categorias de bate; e fazer o clube autossustentável. Marcelo Claure colocou dinheiro do próprio bolso e foi quem construiu os novos CTs da base e do profissional.
- O Marcelo pensa assim: "Como o Uruguai, país com 3 milhões de habitantes, revela tantos jogadores? A Bolívia é um país maior, se dermos a mesma alimentação, mesmo treinamento, mesmas condições, não há razão científica para não formar jogadores". Para jogar bem, temos que ter boas condições de treino, e na Bolívia os campos são muito ruins. Por isso fizemos um CT com o melhor gramado do país. O Bolívar precisa criar seus próprios jogadores e vender. Há excelentes exemplos de clubes que fazem isso, como o Independiente del Valle. E na Bolívia não há clubes autossustentáveis. Vivem de "chegamos ou não na Libertadores". Pelos nossos cálculos, esperamos que no próximo ano já estejamos conseguindo ser autossustentáveis - projetou Valdivia.
Essa reestruturação começou a dar resultados em 2014, quando o Bolívar fez a sua melhor campanha da história na Libertadores e foi até a semifinal, sendo eliminado pelo campeão San Lorenzo. No ano passado, o clube eliminou o Athletico-PR e chegou às quartas - caiu para o Inter. O sonho de Claure é conseguir levar o time à final do principal torneio do continente.
E nos últimos anos o clube ganhou um importante aliado em seu processo ainda vigente de reestruturação: o Grupo City, que tem Claure como sócio. Não é como acontece com o Bahia, por exemplo, que virou uma SAF comandada pelo grupo. No caso do Bolívar, trata-se mais de uma assistência que passa o know-how de como desenhar os projetos, tratar do gramado, ajudar na parte comercial... E também indicações de reforços:
- Por exemplo, um jogador de nível médio no Brasil se é chamado para a Bolívia diz não. Mas quando te chama o City: "Veja bem, Bolívar é parte do grupo, se vai bem lá pode seguir para Europa". Começa a ser um clube muito mais atrativo. E uma forma de se fazer sustentável é comprar jogador por 500 mil dólares e vender por 2 ou 3 milhões de dólares. Então, além de formar jogadores, é trazer alguns que não estão vindo se aposentar no Bolívar. E temos excelentes exemplos: Bruno Sávio, Francisco da Costa... Creio que se não fosse a parceria com o City, seria muito difícil atraí-los - disse Valdivia, explicando que a parceria também pode envolver trocas de jogadores entre times do grupo:
- Sim, temos dois exemplos. O Álex Granell foi o primeiro jogador que veio do Grupo City. Era o capitão do Girona e veio para o Bolívar por dois anos. Depois foi para o Lommel, que também é do City, e agora voltou para cá. O segundo exemplo é Renzo Orihuela, que é jogador do Montevideo City Torque, que nos emprestou este ano. Por quê? Eles também veem a possibilidade que uma jovem promessa pode mostrar muito mais jogando Libertadores. O próximo passo, que ainda não aconteceu é jogadores daqui irem a outros clubes do Grupo City. Só na base: mandamos garotos por dois, três meses à Bélgica, ao Girona, ao Bahia...
Em relação à base, há um envolvimento maior do Grupo City: no CT em Santa Cruz de la Sierra, foi criada a quinta academia com a metodologia deles e gerida pelo grupo ao redor do mundo, junto com as de Manchester (Inglaterra), Nova York (Estados Unidos), Montevidéu (Uruguai) e Sydney (Austrália). A parceria geral com o Bolívar começou no início de 2020 e vai até o fim de 2025, mas nada impede de que seja renovada.
Outro ponto que une Bolívar e Flamengo é o sonho da casa própria. Enquanto o Rubro-Negro deu o primeiro passo ao comprar o terreno do Gasômetro, os bolivianos que sempre jogaram no estádio público Hernando Siles vão começar a erguer o seu ainda esse ano. Uma arena com campo de qualidade e onde consiga lucrar com a bilheteria é parte do pilar de oferecer "melhores condições".
Diferentemente do Flamengo e sua briga judicial com a Caixa Econômica Federal, o terreno não deu dor de cabeça para os bolivianos. Isto porque o local escolhido, no bairro Tembladerani em La Paz, foi onde estava o estádio Simón Bolívar, que pertencia ao clube, mas só era usado para treinos antes do CT ficar pronto. Sua estrutura foi demolida para abrigar a casa nova, com capacidade para 20 mil pessoas.
- Vai ser um estádio mais fechado, que vai gerar mais pressão. E foi pensado com algumas estratégias, como por exemplo: quando entrar o time visitante, vai ter que dar toda uma volta por baixo do estádio e passar por debaixo de onde estará a nossa torcida, para sentir vibrar o estádio desde a chegada. Há temas psicológicos para que seja muito mais difícil. Vai ter um campo espetacular, melhor que o do (Hernando) Siles, onde a bola vai circular muito mais rápida. A altitude é boa, mas se você não a aproveita, não sabe jogar com ela, não te ajuda muito. A ideia é como ter mais vantagens: se tem um time muito rápido, que toca muito a bola, com um bom gramado para a bola correr e um ambiente bastante forte gritando, realmente vai ser um inferno para quem vier jogar lá - afirmou Valdivia.
O Grupo City também está atuando no projeto de construção do estádio, calculado entre 45 e 50 milhões de dólares. Desse montante, Marcelo Claure já deu R$ 20 milhões para o clube iniciar as obras. Quem passa pelo local atualmente vê que ainda não há nenhuma estrutura erguida, mas a primeira parte foi colocar vários pilares 30 metros para baixo do piso por se tratar de um solo onde passa água, segundo o CEO:
- Já temos mais de 700 pilares postos no chão e não são visíveis. O trabalho está avançado, demolimos o antigo estádio, colocamos pilares no solo e agora estamos fazendo o muro de contenção, depois começa a obra grossa. Para terminar essa primeira etapa, são como 30 milhões de dólares. Vamos buscar os 10 milhões que faltam para dar o start. Nossa ideia inicial era estrear nosso estádio dia 12 de abril, no aniversário de 100 anos do clube. Esse prazo claramente não vamos chegar, mas esperamos ter a primeira etapa terminada ao final de 2025, onde já possa ser utilizado.
Não chega a ser um multiverso, mas, apesar de todas as semelhanças, Bolívar e Flamengo são tão diferentes que parecem estar em realidades paralelas. A folha salarial do time boliviano, por exemplo, é de 8 milhões de dólares por ano, enquanto a do Rubro-Negro gira em torno de 6 milhões de dólares por mês.
Só esse ano o Flamengo pagou 16 milhões de dólares à vista para comprar De la Cruz, enquanto a contratação mais cara da história do Bolívar foi 1,5 milhão de dólares pelo centroavante brasileiro Chico da Costa. O próprio atacante depois virou a melhor venda do clube num total de 3 milhões de dólares (somando empréstimo, repasse de porcentagem e transferência). Valor que não é nem 6% dos 45 milhões de euros da maior venda rubro-negra com Vini Júnior.
- Nossa folha anual é de 8 milhões de dólares, o Flamengo gasta isso em dois jogadores (risos). Praticamente o que gastamos em um ano, eles gastam em um mês. Estamos muito longe do que queremos, que é ter uma média de 3 a 4 milhões de dólares anuais em vendas. Mas há três anos o Bolívar não vendia, e nos últimos três anos vendemos entre 1 e 2 milhões de dólares em diferentes jogadores - ponderou Valdivia, que mantém os pés no chão sobre chegar um dia a competir financeiramente com as potências da América do Sul:
- Somos realistas, sei que contra o Brasil não vamos competir. Quando vejo meu nível de gastos e o do Flamengo , estamos falando de 10 vezes mais. E há um tema importante: direitos de televisão. No Brasil se recebe por competição. Um Palmeiras, um Flamengo , recebem 15, 20 milhões de dólares da televisão. Aqui, recebemos 600 mil dólares por ano da televisão, a Bolívia está muito atrasada nisso. Por isso para nós é tão importante a Copa Libertadores pelo que ela paga.
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