Nos tempos modernos, apenas o samba "Vou Festejar" de Jorge Aragão parece unir as torcidas de Atlético-MG e Flamengo . A rivalidade entre os clubes de Minas Gerais e Rio de Janeiro, entretanto, começou a brotar justamente na época em que a música ficaria imortalizada na gravação de Beth Carvalho, entre o fim dos anos 1970 e início da década de 1980. Nem sempre foi assim. Muito pelo contrário.
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Os adversários da Supercopa do Brasil deste domingo, na Arena Pantanal, tiveram muitos anos de ótima relação, entre diretorias e torcedores. Os 25 primeiros duelos entre CAM e CRF foram justamente em caráter amistoso, sempre com cordialidade. Bandeiras do Flamengo eram levadas na torcida do Atlético há meio século.
Flamengo e Atlético fizeram amistoso em 1938 no Rio — Foto: Acervo/Biblioteca Nacional
O Atlético era visto como o " Flamengo das Alterosas", pela força popular de sua torcida. Em 1940, por exemplo, em uma crônica publicada no jornal Estado de Minas, e reproduzida no carioca Sport Ilustrado, o jornalista Marcello Tavares assim descreveu o prestígio do Galo:
"Para representar o sentido de popularidade do Club Athletico Mineiro, basta compará-lo ao
Flamengo
, o glorioso. O Athletico é o
Flamengo
de Minas. A alma das multidões, constituídas de todas as classes sociaes, vibra de enthusiasmo quando o Athletico enfrenta qualquer adversário".
Até 1979 foi assim. Naquele ano, inclusive, Galo e Flamengo se uniram para um amistoso no Maracanã em benefício a vítimas de enchentes em Minas Gerais. Para atrair público e renda, Pelé foi o camisa 10 do Fla. Jogo histórico, mas a goleada de 5 a 1 para o time da casa seria o último capítulo de uma amizade que ficou muito, muito tempo atrás.
O primeiro encontro
Dias após inaugurar o antigo estádio Antônio Carlos, o Atlético convidou o Flamengo para um amistoso no local, valendo o "Troféu Cristiano Machado", então prefeito de Belo Horizonte. O clube carioca venceu por 3 a 2, em 16 de junho de 1929. Nos dias seguintes, ao voltar ao Rio, assim foi descrita a experiência dos atletas rubro-negros em terras mineiras:
- Os players flamengos, dando as impressões do jogo de hontem, mostraram-se vivamente satisfeitos pela maneira como decorreu a pugna, salientando a perfeita educação sportiva dos elementos locaes, e o enthusiasmo da assistência pelo sport bretão.
Diário Carioca de 1929 relata o primeiro jogo entre Atlético e Flamengo — Foto: Biblioteca Nacional
O Diário Carioca dedicou quase uma página inteira de sua edição em 18 de junho, para contar a visita do Flamengo a Belo Horizonte. A embaixada rubro-negra foi convidada pelo Atlético a visitar pontos da capital, fazendo valer até mesmo de uma sessão de cinema.
- Ao Club de Regatas do Flamengo , sinceras homenagens de seus admiradores athleticanos. Em 16-9-1929 - dizia a placa de prata entregue pela diretoria do C.A.M.
Convites de aniversário
Atlético e Flamengo fizeram amistosos em datas comemorativas dos dois lados. Em 1934, como parte dos festejos dos 26 anos de fundação do Galo, o clube mineiro convidou o Rubro-Negro para um jogo no mesmo Antônio Carlos. A partida ocorreu justamente em 25 de março, data de fundação do Alvinegro, que venceu por 3 a 1.
Duas décadas depois, a primeira visita do Atlético ao Maracanã se daria via convite do Flamengo para comemoração dos 60 anos do CRF. Em 15 de novembro de 1955, o Fla venceu o Galo por 4 a 0. O Atlético também visitou a Gávea no aniversário do Flamengo em 1949, quando as duas equipes tinham grandes craques como Zizinho e Lucas Miranda.
Flamengo 4x0 Atlético em 15 de novembro de 1955 — Foto: Acervo/O Globo
Inauguração de estádio
Em 1953, Galo e Flamengo foram convidados para um quadrangular na inauguração do estádio Estádio Justiniano de Mello, em Colatina (ES). A escolha do clube carioca se deu após votação popular na cidade. O Atlético venceu por 1 a 0. Gol do lendário Ubaldo. Foi o primeiro jogo entre as equipes fora de Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Atlético e Flamengo jogaram na inauguração do Estádio Justiniano Melo — Foto: Acervo/Jornal dos Sports
Amistoso para pagar venda de goleiro
Em uma data próxima a outro aniversário do Atlético, em março de 1963, houve novo amistoso com o Flamengo em Belo Horizonte. As equipes duelaram no Independência como forma de completar o pagamento da contratação do goleiro Marcial pelo Fla. O jogo terminou 2 a 1 para o time visitante.
Marcial fez história no Rubro-Negro ao ser o herói do empate sem gols do Fla-Flu de 1963, que é até hoje o jogo entre clubes de maior público da história, com mais de 177 mil pagantes no Maracanã. Marcial salvou um gol certo do Fluminense no fim, e o 0 a 0 deu o título carioca ao Flamengo .
Amistoso entre Flamengo e Atlético para compra do goleiro Marcial — Foto: Acervo/O Globo
Jogos beneficentes
A relação amistosa entre Atlético e Flamengo também foi utilizada pela igreja e também no campo educacional. Em 1965, as duas equipes participaram do Torneio do Bispo, organizado em Belo Horizonte pela Igreja Católica, que tinha o objetivo de angariar fundos para a construção da Faculdade Católica de Minas Gerais (atual PUC Minas).
O encontro seguinte entre Galo e Fla seria em 1966, em janeiro, período de fortes chuvas na região Sudeste, que atingiu famílias do Rio e de Minas Gerais. O encontro dos times foi justamente para levantar fundos e ajudar as vítimas. Algo que se repetiria em um jogo histórico entre Atlético e Flamengo em 1979.
Naquela partida de 66, o Flamengo venceu o Atlético por 3 a 1, no recém-inaugurado Mineirão, para quase 30 mil pessoas. A renda bateu os 29 milhões de cruzeiros, que seriam usados de forma beneficente. A partida estava prevista para o próprio Maracanã, que serviu de abrigo para os flagelados. Entretanto, foi transferida para Belo Horizonte, no dia da fundação do Rio de Janeiro.
Flamengo derrota o Galo em amistoso em benefício de vítimas de enchentes — Foto: Acervo/O Globo
Homenagem ao ídolo
Em dezembro de 1968, um novo encontro amigável e recheado de boas intenções dos dois lados. O Flamengo visitou o Atlético no Mineirão e tinha Garrincha como grande atração. A partida foi armada justamente para o futebol mineiro homenagear o herói da Copa de 1962.
O "anjo das pernas tortas" ganhou placa de bronze do Estádio Magalhães Pinto em homenagem à carreira. O bicampeão mundial foi substituído durante o empate de 2 a 2. Logo depois, o Galo encararia a seleção da Iugoslávia, vestido de verde e amarelo, e representando a seleção brasileira. O clube mineiro convidou Garrincha para ser um reforço no amistoso internacional, mas não houve condições para um acerto.
Garrincha foi homenageado em um Atlético x Flamengo, em 1968 — Foto: Acervo/O Globo
Para tornar a festa em homenagem à Garrincha popular, a administração do Mineirão da época colocou o ingresso da geral em 1 cruzeiro, beneficiando os torcedores de classes baixas. A renda do jogo foi repartida entre Galo e Flamengo .
Torneio do povo
Mais uma prova da boa relação entre os clubes no período pré-anos 80 foi a criação do Torneio do Povo, idealizado por Atlético-MG e Flamengo em janeiro de 1971. Como o nome já sugere, a ideia era reunir os times mais populares do país.
No dia 3 daquele mês, o vice-presidente do Galo, Fábio Fonseca, viajou ao Rio, onde, na sede do Flamengo , acertou com o presidente rubro-negro André Richer a realização da competição. A primeira edição, disputada entre 24 de janeiro e 19 de fevereiro de 1971, teve também a participação de Internacional e Corinthians, que sagrou-se campeão.
Em 1972, agora com cinco participantes devido à inclusão do Bahia, o campeão foi o Flamengo . O título rubro-negro foi conquistado com um empate por 0 a 0 com o Internacional há exatos 50 anos, também num 20 de fevereiro. A atuação do Flame ngo chegou a gerar irritação nos 64.161 pagantes que foram ao Maracanã por ter jogado o tempo inteiro pelo empate.
Isso porque o Flamengo vinha embalado por vitórias sobre Bahia (1x0), em Salvador, Atlético-MG (2x0), no Maracanã e Corinthians (2x1), no Pacaembu.
Embora tenha durado apenas três anos, o Torneio do Povo constava no calendário da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, hoje CBF) e tinha caráter oficial. O Coritiba, novo participante e vencedor do Torneio do Povo em 1973, pediu à CBF em 2010 que o clube fosse reconhecido como campeão brasileiro.
Flamengo foi campeão do Torneio do Povo em 1972 — Foto: Acervo O Globo
Ainda em 1972, porém em janeiro, o Atlético, recém-campeão do Brasileirão, jogou um amistoso com o Flame ngo em janeiro. Na partida, os jogadores rubro-negros fizeram uma entrega de faixas aos colegas do Galo pelo título de 1971. Os alvinegros venceram por 2 a 1.
Normandes, capitão do Atlético, pediu par e garantiu a Taça do Trabalho contra o Flamengo — Foto: Acervo O Globo
No mesmo ano, as equipes voltaram a duelar no Mineirão e os vencedores tiveram um grito de campeão curioso. No Dia do Trabalhador, 1º de maio, Galo e Flameng o disputaram a Taça do Trabalho. Os atleticanos levaram o troféu na disputa do par ou ímpar. O capitão Normandes pediu par e se deu bem.
Num desses duelos no Mineirão em 1972, nova demonstração de relação bacana entre as partes. Bandeira da Torcida Jovem do Flamengo , uma das mais antigas organizados do clube, apareceu no meio dos atleticanos.
Confira na parte inferior da imagem à direita os dizeres "Torcida Jovem Flamengo" — Foto: Reprodução
Pelé no Fla e o princípio do fim
O dia em que Pelé vestiu a camisa 10 do Flamengo ficou marcado na história. E também envolveu amistoso com o Atlético em causa nobre. Em abril de 1979, novamente as chuvas atingiram famílias em Minas Gerais. As duas equipes fizeram amistoso no Maracanã para arrecadar fundos. O rei do futebol, ao lado de Zico (com a 9), goleou o Galo por 5 a 1.
O Galo, desfalcado de Reinaldo e com Dadá Maravilha, abriu o placar com Marcelo Oliveira. Mas logo Zico fez três gols e a goleada se construiu. Foi o último jogo de Dadá pelo Atlético. Quase 140 mil pessoas foram ao Mário Filho, com renda doada aos atingidos pela tragédia climática que atingiu Minas e o Espírito Santo. Foram 8 milhões de cruzeiros de renda, número recorde até então no Brasil.
Pelé com a camisa do Flamengo durante amistoso contra o Atlético-MG — Foto: Acervo/O Globo
Havia a possibilidade de Pelé jogar cada tempo com uma camisa. Já aos 39 anos, entretanto, o aposentado jogador só usou rubro-negro. O jogo solidário, entretanto, começou a criar as primeiras rachaduras na relação Galo x Fla. Os jogadores do Atlético não engoliram o fato de os adversários terem levado o amistoso com mais competitividade.
No ano seguinte, 1980, Galo e Flamengo fariam a final do Campeonato Brasileiro, vencido pelo clube carioca em um jogo histórico no Maracanã, por 3 a 2. Então, depois dali, nunca mais a relação seria a mesma, com polêmicas de arbitragens, disputas nos bastidores, brigas entre torcidas (inimizades de organizadas) e mata-matas aquecidos, como o deste domingo, pela Supercopa.