Cobertura da tragédia do Flamengo desafia todos os jornalismos

Foi uma semana de profunda reflexão para quem milita no jornalismo esportivo — especialmente na Globo. Toda cobertura de tragédia, mesmo um ano depois, é difícil, pelo forte teor emocional que carrega e pela responsabilidade envolvida. E toda cobertura do Flamengo ganha uma dimensão enorme, proporcional ao tamanho e à paixão de sua torcida. Falar do incêndio do Ninho do Urubu, que completou 1 ano ontem, foi a combinação desses dois desafios.

Do lado do torcedor, houve reações fortes. Uma acusação recorrente era — e ainda é — que exageramos na cobertura do assunto porque o Flamengo não fechou com a Globo um novo acordo para a transmissão dos jogos do Carioca. Eu, que trabalho em três veículos do grupo, vi um deles, a Rádio Globo, ser beneficiada pelo impasse, com aumento na audiência e no alcance do público jovem. E vi também o espaço dado ao assunto pelos nossos concorrentes. Posso garantir que não foi menor, nem menos crítico.

Porém, acho saudável que o público desconfie dos jornalistas. Nós mesmos somos treinados para desconfiar sempre — de nossas fontes, de nossas conclusões, às vezes dos próprios fatos (até contra eles há argumentos, ao contrário do que afirmam as redes sociais). É um fato que trabalho para uma empresa que faz jornalismo e negocia direitos de TV, e o único argumento que posso usar contra a desconfiança é a credibilidade.

Comecei minha carreira neste jornal, há quase 30 anos, e usei algum crachá do Grupo Globo na maioria deles. Hoje, trabalho em espaços de opinião, como esta coluna, o “Redação SporTV” e o “Globo Esportivo". É um aprendizado diário equilibrá-la com a informação — especialmente no esporte, um universo em que se torce até por notícia. Sobre o Ninho, há muita gente torcendo para que o Flamengo esteja certo ou errado — e, por consequência, contra ou a favor de uma postura crítica. Mas há também quem esteja interessado na verdade, esteja onde estiver. É pensando neles que devem trabalhar os jornalistas.

Mas até o jornalismo mudou, e uma de suas novas faces ficou bem visível nessa cobertura: o advento do jornalista-torcedor. Blogueiros, YouTubers e outros comunicadores da era das redes sociais não precisam se prender à neutralidade exigida dos veículos tradicionais. Podem se postar como representantes de um clube — e, por óbvio, a maioria está alinhada com o Flamengo. Quero deixar claro que não vejo nada de ilegítimo nisso. Redes oficiais, como a FlaTV, ou canais particulares que se assumem como FlaPress têm o mesmo direito de expressão que nós, os isentões da mídia esportiva. Mas, para que a relação seja justa, merecem também a mesma desconfiança e a mesma cobrança por um comportamento ético.

Não apenas ao longo desta semana, mas deste ano, ficou claro que o tema não se presta a conclusões fáceis. O inquérito policial que pretende apontar de quem foi a culpa (ou o dolo) tem 2.200 páginas e só nesta sexta foi entregue ao Ministério Público. Algumas famílias fecharam acordo com o Flamengo, outras não — e nem a Justiça é capaz de estipular o valor de uma vida. Minha maior crítica continua sendo à estratégia de comunicação da diretoria, baseada no isolamento. Se há algo que não fecha uma ferida tão grande, é a distância.

Fonte: O Globo