Campo de terra, filosofia Barça e idolatria a Cruyff: as origens catalãs de Dome, o novo técnico do Flamengo

- Quando você pode ligar para uma pessoa que chegou tão longe e ainda assim ela é tão simples, isso diz muito sobre esta pessoa.

A frase é de Pep Solés sobre Domènec Torrent, o novo treinador do Flamengo. Foi praticamente o resumo de tudo o que Pep falou sobre Dome, seu companheiro de equipe no UE Olot na temporada 1980-1981, quando o modesto clube catalão disputava o equivalente à quarta divisão espanhola.

Torrent, anunciado na sexta como novo técnico do Flamengo, tem uma origem bem distante do turbilhão de emoções que é o clube de maior torcida do Brasil.

Nasceu em Santa Coloma de Farners, uma cidade de 12 mil habitantes na província de Girona, na Catalunha. Neto de um jogador do Barcelona, teve carreira discreta como meio-campista e dava seus primeiros passos como treinador em pequenos clubes catalães quando foi convidado por Pep Guardiola para ser seu analista no Barcelona.

Até chegar ao Barça, porém, Dome forjou sua identidade nas dificuldades do futebol de categorias menores da Catalunha. Quando chegou ao Olot, tinha 18 anos, e o clube havia acabado de voltar à quarta divisão. Teve pouquíssimas oportunidades, apesar de mostrar qualidade.

- Tinha habilidade, uma boa perna esquerda. Mas, devido à idade, jogou pouco. Mas era um cara falante, muito boa pessoa. Muito tranquilo, nada passional, e muito inteligente - recordou Pep Solés.

Domènec Torrent, aos 18 anos, no UE Olot: ele é o segundo agachado, da esquerda para a direita — Foto: Arquivo pessoal
1 de 3 Domènec Torrent, aos 18 anos, no UE Olot: ele é o segundo agachado, da esquerda para a direita — Foto: Arquivo pessoal

Domènec Torrent, aos 18 anos, no UE Olot: ele é o segundo agachado, da esquerda para a direita — Foto: Arquivo pessoal

O então meio-campista Dome, como gosta de ser chamado até hoje, foi descoberto na equipe de sua cidade natal. Para pagar a transferência, o Olot concordou com um amistoso com o Farners. Detalhe: num campo de terra. Era uma das primeiras partidas do jovem Dome, num ambiente muito diferente do que ele encontraria anos depois em sua carreira.

- Dome fez um partidaço – lembrou Solés.

Fã de Cruyff

Naquela época, apesar de não ter feito sucesso em campo, Torrent deu uma entrevista para uma revista local. Nela, é possível descobrir alguns dos gostos do jovem Domènec: ler livros de Agatha Christie, comer paella, o tradicional prato não só da Espanha, mas também na Catalunha, e beber orchata, outra bebida típica em todo o país.

Domènec Torrent, em entrevista a uma revista de Girona quando tinha 18 anos — Foto: Arquivo pessoal
2 de 3 Domènec Torrent, em entrevista a uma revista de Girona quando tinha 18 anos — Foto: Arquivo pessoal

Domènec Torrent, em entrevista a uma revista de Girona quando tinha 18 anos — Foto: Arquivo pessoal

Já naquela entrevista, era possível perceber traços do que Dome seria no futebol. Ele fez dois cursos profissionais de Administração, considerava ser tranquilo seu maior defeito e dizia que os outros é que deveriam apontar suas qualidades. Mas não titubeou ao responder quem era seu jogador estrangeiro preferido: Johan Cruyff, já um ídolo no Barcelona.

- Sou torcedor do Barcelona desde criancinha e permaneço como sócio do clube. Fui assistir a final em Wembley em 1992, quando, enfim, conquistamos o título europeu. Eu sempre disse a todo mundo: vou virar técnico por causa do Johan - escreveu Dome, em um artigo para o site "The Coaches Voice".

- Ele se inspirava muito na filosofia do Barça. Era muito próximo dos jogadores. Podíamos falar com ele tranquilamente e trocar opiniões – lembra Edu Aguilar, jogador que atuou pelo Palamós na temporada 2003/2004, a segunda experiência de Dome como treinador profissional.

A carreira como jogador não deu muito certo. Depois de sair do Olot, em 1983, Torrent atuou ainda no Guíxols até pendurar as chuteiras, em 1989, com apenas 27 anos. Passou a estudar para tirar seu diploma de treinador.

Treinos de vanguarda

Em 1994, Dome iniciou sua carreira como treinador, no Palafrugell, onde ficou até 2000. Em 2003, assumiu o Palamós na terceira divisão da Espanha. Já na época, surpreendia seus jogadores com treinos que não eram tão comuns no futebol local.

- Ele gostava muito do sistema 4-3-3, de ter a posse de bola. Estava no começo da carreira, focava muito na base, via muitos partidas. Gostava de fazer todos os treinos com a bola, não nos colocava para correr. Fazia tudo com a bola, trabalhos de conservar a posse, partidas curtas, jogadas ofensivas. Naquela época, no futebol espanhol, isso não era tão comum – relatou Aguilar.

Domènec Torrent e Guardiola, no Barcelona, em 2011 — Foto: Miguel Ruiz/FC Barcelona
3 de 3 Domènec Torrent e Guardiola, no Barcelona, em 2011 — Foto: Miguel Ruiz/FC Barcelona

Domènec Torrent e Guardiola, no Barcelona, em 2011 — Foto: Miguel Ruiz/FC Barcelona

A experiência, porém, não foi bem-sucedida. O Palamós sofreu com problemas financeiras e passou a dever salários a seus jogadores. Terminou em 20º lugar e foi rebaixado.

- Foi uma temporada muito complicada, atípica. Não estivemos à altura. Mas foi uma experiência. Dome aprendeu bastante. Não foi um ano para se lembrar, e sim para melhorar - completou Aguilar.

O convite de Guardiola

Torrent aprendeu. Em 2005, assumiu o Girona e foi campeão da quarta divisão espanhola. Em 2007, chegou ao Barcelona para ser observador. Meses depois, encontrou-se com Pep Guardiola, que o convidou para trabalhar com ele no Barça B, então na quarta divisão.

- “Olá, sou Pep Guardiola”, ele me disse. “Pensei que você, por conhecer a competição, – eu havia vencido o campeonato no ano anterior à frente do Girona – poderia nos ajudar”. Desde então, passei a desempenhar duas tarefas. De segunda a sexta, ficava com o Pep para analisar o próximo adversário, seus jogadores, e qualquer outra coisa que ele pedia. E ainda na sexta-feira, depois de uma preleção e da sessão de vídeo, pegava a minha mala e saía pela Espanha para seguir diferentes jogadores – contou Torrent.

Junto com Pep, Dome, como analista, ganhou a quarta divisão. Na temporada seguinte, a dupla foi promovida ao time principal do Barcelona. A partir daí, o resto é história. E o novo capítulo da história de Dome será no Brasil, com o Flamengo.

Fonte: Globo Esporte