As origens de Pulgar, do Flamengo: um chileno que já foi zagueiro e jogava em campo de linhas tortas

Em Antofagasta, no Chile, o adjetivo "tortas" no futebol não remete a Garrincha e suas pernas, mas sim a Erick Pulgar e suas origens. No humilde bairro de Miramar, na encosta da colina que toma conta de toda a paisagem da cidade a 1.336km ao norte da capital Santiago, foi onde o volante do Flamengo nasceu e desenvolveu o talento para o futebol. O ge foi lá conhecer essa história (veja no vídeo abaixo) .

Os primeiros passos foram escritos por linhas tortas de um piso assimétrico para driblar as limitações do espaço cercado por paredes no Miramar Suldeste, modesto clube de bairro que existe ali desde 1945. Hoje dá para chamar de campo porque tem grama sintética, mas antes de 2018 era mais parecido com uma quadra e já foi metade cimento e metade asfalto. E era lá que o tímido e calado Pulgar se soltava.

- Para cá ele vinha se divertir. Desde pequenininho sempre andava com a bola. Aqui no Miramar chegou aos 6 anos e aí começou a se envolver na quarta infantil, que é como chamamos aqui a categoria da ANFA (Associação Nacional de Futebol Amador) em Antofagasta. E aí começou a ter os primeiros conhecimentos de como dominar a bola, tocar com a parte interna e externa do pé, ensinando a cabecear... Sua posição aqui era volante central. Era um 8, como nós chilenos chamamos. Roubava (a bola), marcava, chegava à frente... - contou Seu Pablo, pai de Pulgar.

Erick Pulgar ganhou prêmio de melhor jogador pelo Miramar Suldeste — Foto: Arquivo Pessoal

Tendo o próprio pai como treinador, Pulgar fez parte de um time de garotos que fez história no campeonato amador: foi campeão cinco vezes seguido e eleito o melhor jogador em um deles. Claro, ele e os companheiros passaram a chamar a atenção de clubes profissionais, mas digamos que não foi uma "contratação" fácil.

- Esta formação que tínhamos no Miramar, com 8 anos já os queriam levar todos. Porque enfrentávamos muitas vezes treinadores que tinham centros de formação disputando esses campeonatos. Mas ele como gostava do Miramar, e com seu pai dirigente do clube não queria mudar. Até que chegou o momento, num campeonato, que nos vieram pedir por favor para deixá-lo fazer o teste porque já o conheciam - recordou o pai, contando que daquele time só seu filho vingou no futebol.

Erick Pulgar (primeiro agachado da esquerda para a direita) com o time pentacampeão do Miramar Suldeste — Foto: Arquivo Pessoal

No bairro de Miramar, há um campão de terra público onde Pulgar também se divertia com os amigos. De lá, era possível ver no horizonte o contraste com o bonito estádio Calvo y Bascuñán, lugar em que pouco tempo depois passou a frequentar. Tinha 15 anos quando o clube da cidade, Deportes Antofagasta, de tanto insistir conseguiu convencê-lo.

- O que acontece é que ele sendo jovem, 15, 16 anos, tinha o seu grupo de amigos e jogava em um clube amador daqui, chamado Miramar Suldeste. Então, claro, preferia jogar no final de semana com seus amigos do que ter que viajar com os cadetes para jogar em outros lugares. Mas depois que o trouxemos ele se entusiasmou e, graças a Deus, continuou, em benefício dele, de sua família, de todos - lembrou Manoel Donoso, que é gerente administrativo do clube desde 2001.

Campo de terra onde Erick Pulgar jogava em Miramar — Foto: Thiago Lima / ge

Depois de aceitar tomar o futebol de forma mais profissional, Pulgar ia a pé para os treinos. Descia o morro em uma caminhada de cerca de 30 minutos. Só que no campo de 11 passou a ser escalado como zagueiro e logo começou a frequentar o elenco principal.

- Erick jogava em uma categoria de base maior, não sei se era sub-19 ou sub-17, mas ele jogava aí. Tinha um talento incrível, jogava de zagueiro, era magro, alto, mas tecnicamente extraordinário e chamava muita atenção. No ano seguinte, em 2011, Gustavo Huerta (treinador) o sobe para o time de cima, como juvenil, e começou a trabalhar com a gente. Obviamente que não jogou imediatamente, mas começou a se preparar, começaram a armá-lo como jogador, tinha alto déficit nutricional nessa época. Trabalhou toda parte de musculação, de se ajudar nesse sentido e, bom, quando chegou sua estreia parecia já um jogador que havia chegado há duas, três temporadas na equipe. Não ficou nervoso, jogava como se estivesse jogando no bairro - disse o ex-lateral-direito chileno Victor Oyarzún.

Victor Oyarzún e Erick Pulgar em treino do Deportes Antofagasta — Foto: Miguel Zamora

- Não era um zagueiro forte por seu biotipo, era magrinho e alto, então não era de errar. Era de sempre antecipar a jogada, ter boas coberturas, rápido nos cruzamentos, e quando tinha a bola nunca dava chutão, tentava sempre sair jogando. Tinha uma jogada marcante que era quando um atacante ia pressioná-lo e ele lhe dava um chapéuzinho e nos deixava com o coração na garganta. E fazia tão naturalmente que nos fazia dar conta que era um jogador de outro nível - completou.

Há alguns anos diretor de futebol do Deportes Antofagasta (inclusive já contratou o goleiro rubro-negro Rossi em 2019), Oyarzún quando conheceu Pulgar já estava em fim de carreira. Ele na época voltou ao clube para jogar e ao mesmo tempo ser treinador de uma categoria menor na base. Questionado sobre quem era melhor entre eles, o ex-lateral respondeu rápido e votou no amigo. Mas recordou um desafio que diz ter sempre ganhado.

Pulgar com o técnico Gustavo Huerta no Deportes Antofagasta — Foto: Miguel Zamora

- Erick era extraordinário, o meu era luta, força, garra, coração... O dele era talento. Nós sempre ficávamos depois dos treinamentos praticando com a perna esquerda, depois começamos a bater faltas. Apostávamos empanadas, que vendia aqui na frente. E sempre colocávamos o terceiro ou o quarto goleiro, que eram da base. E eu nunca perdia porque era treinador dos garotos, então todos diziam que ia combinar com eles e deixavam passar os meus gols de falta (risos), e ele terminava pagando.

- Eu sempre o perturbo, até hoje: "Quem te ensinou a jogar com a perna esquerda?" Eu o dizia que não devia tirar o olho da bola, então ele sempre repete para mim: "Nunca tire o olho da bola e sempre coloca bem o pé". Era como dicas que tínhamos entre nós, e obviamente até os dias de hoje eu me orgulho de ter agregado um grãozinho de arroz para sua carreira. Não sei se foi ou não, mas sempre falamos como brincadeira entre nós.

Miguel Zamora, Victor Oyarzún e Manoel Donoso são do tempo de Pulgar no Deportes Antofagasta — Foto: Thiago Lima / ge

Outro funcionário do Deportes Antofagasta que continua até hoje no clube é o fotógrafo Miguel Zamora. Viraram amigos, e Pulgar sempre que volta para Antofagasta nas férias o chama para tirar fotos, como por exemplo do dia em que foi com a família jogar basquete em uma quadra da cidade. E ele foi também uma espécie de "psicólogo" quando o jogador tinha ido para a Itália:

- Em algum momento em que foi para o Bologna não se adaptava por problemas do idioma. Não me recordo se havia na época jogadores latinos para que fosse mais amena sua estadia no Bologna. Jogadores sul-americanos sentem muito quando vão para Europa e querem voltar, começam a sentir saudades, então em algum momento ele comentou isso comigo, e eu lhe disse que tinha que fazer como fazem todos: levar algum familiar, o irmão, alguém que lhe fizesse companhia. Agora já está adaptado a todos os lados que vai.

Erick Pulgar foi cercado por crianças para foto em Miramar — Foto: Miguel Zamora

Uma pergunta feita a todos os entrevistados e que teve resposta unânime foi se Pulgar vive no Flamengo o melhor momento da carreira.

- Jamais alguém pensou que iria chegar onde esteve, jogando na Europa tanto tempo, na Itália, uma liga tão importante, e hoje em dia no futebol brasileiro, que é o sonho de qualquer jogador estar lá. Obviamente que Flamengo é o maior time do continente, e não lhe influenciou esse peso de chegar num time com tanta história. Acho que ele fez isso bem, custou no início, mas pouco a pouco ele ganhou o coração da torcida. E passou a ser um jogador importante para o clube e também para nós, obviamente, na seleção. Então é supervalioso e muito querido aqui dentro da instituição. Nosso sonho é que algum dia ele possa terminar sua carreira aqui - falou Oyarzún.

Pintura de Erick Pulgar feita pelo artista colombiano Liuman Díaz em Miramar — Foto: Divulgação

Jogador mais renomado de Antofagasta, Erick Pulgar virou até pintura num muro do bairro onde nasceu (com o troféu da Copa América de 2016) e tornou-se um exemplo para outras crianças de origem humilde da cidade: Pode sonhá-lo, pode realizá-lo", diz a mensagem escrita ao lado. E enquanto seu pai tenta voltar a ser presidente do Miramar Suldeste, as transferências do filho ajudam a fazer melhorias no espaço onde tudo começou.

- Dos jogadores chegam direitos de formação ao clube, então o dinheiro que chega é usado todo aqui na instituição. Ainda falta dinheiro, eu como saí da presidência não tenho ideia se chegou o dinheiro do Flamengo . Se eu voltar à dirieção vou procurar saber o que houve com esse dinheiro - afirmou Seu Pablo, que foi quem colocou a grama sintética no campo em 2018 e teve o filho presente na inauguração.

Pulgar marcou presença na inauguração do campo sintético no clube em 2018 — Foto: Divulgação

Ao verem o Flamengo no Chile, as pessoas perguntam do Erick Pulgar e não escondem a decepção ao saberem que ele não está no país. Com uma lesão no tornozelo esquerdo, o volante continua desfalcando o Rubro-Negro, que nesta terça-feira enfrenta o Palestino às 21h (de Brasília) no estádio Francisco Rumoroso, pela Conmebol Libertadores. O time de Tite e companhia contará com a torcida do chileno à distância e de outro um pouco mais perto:

- É um orgulho para esse clube que venham saber um pouquinho mais do time onde ele começou. Obrigado também ao Flamengo , por essa torcida grande que o apoia. Quero mandá-los um abraço à distância e dizer que aqui tem um torcedor a mais do Flamengo - declarou Seu Pablo.

Crianças da escolinha no "espaço Pulgar" do clube Miramar Suldeste — Foto: Thiago Lima

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Fonte: Globo Esporte