O rubro-negro que acompanhou atentamente o Flamengo entre o final dos anos 1990 e o início da década seguinte lembra bem de Maurinho. Qual torcedor se esquece da famosa tarde em que a arquibancada do Maracanã o pediu na Seleção e depois gritou que era 1º de abril, o dia da mentira? Mas este mesmo flamenguista se recorda que o paulista de Votuporanga começou a mudar sua vida na Gávea exatamente contra o Peñarol, adversário desta quinta-feira, pela Libertadores?
Treinador de futebol desde 2018 e atualmente disponível no mercado após bons trabalhos entre janeiro e junho com Parintins FC e Princesa de Solimões, ambos do Amazonas, Maurinho recebeu a equipe da TV Globo em sua casa, no Recreio, Zona Oeste do Rio de Janeiro, e contou episódios divertidos sobre aquele histórico confronto com o Peñarol em 1999, pela Copa Mercosul, competição que o Flamengo conquistaria em final brasileira contra o Palmeiras.
O confronto daquela semifinal como um todo reserva episódios marcantes para Maurinho. No Rio, ele fez um golaço aos 44 minutos do primeiro tempo, o segundo da vitória por 3 a 0 sobre o Peñarol, resultado que deixou a vaga na decisão muito bem encaminhada. Hoje aos 49 anos, o ex-atleta lembra que aquele duelo disputado em 25 de novembro de 1999 mudou para sempre sua vida dentro do Flamengo .
Maurinho, que sofrera com muitas críticas especialmente no primeiro ano de Flamengo (1997), até já tinha substituído laterais-direitos ao longo daquela temporada de 1999 em retas finais de partidas, mas ele só quebrou galho no setor, nunca fui sua posição. Uma série de circunstâncias fizeram Carlinhos deslocar o jogador para a lateral direita na véspera da partida com o Peñarol no Rio. A mudança deu certo, e o atleta se firmou na posição e foi figura importante na conquista do título.
- Eu fui deslocado para a lateral na Mercosul, no primeiro jogo com o Peñarol. Na época, o Pimentel machucou e não ia ficar. Fábio Baiano, que estava na meia, não queria mais jogar na lateral. E o lateral-direito reserva era o Dida, um garoto que estava subindo. Carlinhos me chamou e falou que não ia colocar um garoto numa semifinal de Mercosul. E aí ele falou que seria eu, até pelo biotipo.
- Para mim, foi bom porque logo no primeiro jogo nós ganhamos de 3 a 0, e eu fiz um gol. Na sequência fomos campeões, e eu acabei ficando na lateral. Os outros três anos em que fiquei no Flamengo acabaram sendo os que eu mais joguei e os vieram os títulos. Acabou que foi bom, mas confesso que no primeiro jogo eu estava preocupado porque eu tinha tido uma pressão em 97. Eu havia superado aquela pressão, vinha num momento bom, mas estava indo para uma decisão em que, se eu erro alguma coisa e a gente perde a classificação ou o título, a pressão voltaria toda.
Além de ter sido marcado num momento crucial da partida, em que o Flamengo estava perto de ir para o intervalo com um resultado magrinho de 1 a 0, o gol não nasceu de uma jogada qualquer. Bom cabeceador dos tempos de volante, Maurinho foi à área para tentar marcar no jogo aéreo, mas um escanteio curto provocou a mudança de planos. Uma rápida troca de palavras com Leandro Machado fez o novo lateral-direito de Carlinhos definir o deslocamento e escolher a melhor maneira possível para acertar a bola. O voleio foi executado com perfeição (veja no vídeo que abre a matéria) .
- No decorrer da jogada, quando estavam para cruzar a bola, eu dei uma acelerada porque queria atacar a bola de cabeça. Só que aí não teve o cruzamento (Athirson estava posicionado para cobrar escanteio, mas bateu curto em Iranildo e recebeu de volta), e o Leandro Piu Piu falou para mim: "Afasta". Dei uma recuada, aí o Athirson cruzou, o Leandro pulou e só deu uma casquinha. Caminhei para trás e aconteceu praticamente o que ele percebeu. Eu lembro de tudo. Na hora que a bola quicou, eu concentrei para dar uma fatiada e a bola não subir muito. Peguei bem, o goleiro praticamente não teve reação para ir na bola.
- Foi um golaço, mas era o primeiro jogo de lateral (risos). Acho que eu estava com cacoete de segundo volante, mas foi um bonito gol, sim. A batida não deu chance de reação para o goleiro. Acredito que sim (que foi o gol mais bonito pelo Flamengo ) e pela importância de ser uma semifinal de Mercosul. Vivíamos um momento de pressão, tínhamos saído do Brasileiro. Foi um gol bonito.
Se o jogo do Maracanã teve o golaço de Maurinho como grande momento do dia, em Montevidéu o futebol ficou em segundo plano, e as imagens mais repetidas da vitória por 3 a 2 do Peñarol são as da pancadaria após o apito final. Apesar da covardia dos uruguaios, que contaram com o reforço de pessoas que nada tinham a ver com o time de futebol, hoje Maurinho dá risada do lamentável episódio.
Faixa marrom de Judô, esporte que praticou na adolescência, o lateral-direito do Flamengo , não foi muito participativo na tentativa de ajudar os colegas em meio à pancadaria. Dois dias após a classificação conquistada no Uruguai, Leandro Ávila fez uma brincadeira e afirmou que muitos rubro-negros correram da briga, dando apelidos aos fujões.
- Teve "jogador Mister M" (ilusionista que aparecia no Fantástico), que sumiu como mágica na briga, e jogador Cristo Redentor, que só fez abrir os braços - disse Leandro Ávila ao "O Globo" de 27 de novembro de 1999 (veja na foto abaixo).
Perguntado se era um dos jogadores descritos ironicamente por Leandro Ávila, Maurinho caiu na gargalhada e explicou por que não conseguiu fazer bom uso das artes marciais em favor do time. Ao ver o goleiro Clemer, forte e grande, em apuros, não pensou duas vezes e se mandou para o vestiário.
- Sumir eu não sumi porque estou na imagem pulando por último para o vestiário, na verdade eu fiquei atrás da briga. A briga correu de mim, eu corria, e ela corria para lá (risos). Não dava, aquela briga tinha que ser para gente grande. Judô é mano a mano, 30 contra 30 não dá. Só o Clemer mesmo que conseguiu trocar umas porradas, cair, levantar e contar história de que brigou.
- Quando eu estava chegando na briga, eu só via mais o pessoal de amarelo e preto. O pouco que eu via de vermelho era o Clemer caindo e levantando (risos). Pensei: "se o Clemer está caindo, o que eu vou fazer no meio daquele tumulto?" Nunca (risos). O cara é três vezes maior do que eu. O Clemer foi corajoso e bom de porrada mesmo. O Jorginho entrou na porrada também, dei com o pé no peito dos caras, mas foi uma avalanche. Eles tinham muito mais gente.
O Flamengo voltou com alguns arranhões, mas, mesmo desfalcado pela inesperada dispensa de Romário por conta de uma noitada após a eliminação no Brasileiro e cheio de garotos, ganhou confiança e sagrou-se campeão diante do favorito Palmeiras.
Aquela Mercosul é uma das lembranças preferidas de Maurinho, mas o ge abordou outras histórias de uma passagem marcada por 209 jogos de vermelho e preto, 10 gols marcados e cinco títulos conquistados. E também perguntou como é a vida do ex-lateral nos dias de hoje. Leia tudo abaixo:
O que você mais lembra daquele jogo no Uruguai?
- O gol do Reinaldo e a pancadaria. O gol porque foi uma roubada de bola em que ele chutou quase do meio-campo. Reinaldo era do júnior e subiu para jogar aquela reta final. Ele pegou um momento duro de competição. A pancadaria que rolou no final não tem como esquecer.
- A gente imaginava que poderia acontecer. O clima já estava pesado no 3 a 0 aqui no Rio. Lá no Uruguai, desde o início toda hora sobrava uma mão ou uma cuspida. Toda hora eles tentavam arrumar uma expulsão, mas conseguimos nos controlar para não perdermos a cabeça. Se eu não me engano, eles deram uma porrada no Athirson pelas costas. Gerou um tumulto, correram Beto, Jorginho e o Clemer chegou depois.
A saída à francesa, a brechinha e o chute
- Eu estava do outro lado do campo. A saída do vestiário era de um lado e tinha um lateral para nós no outro lado. O juiz apitou o final, um jogador deles acenou para trocarmos a camisa. Tirei a camisa e quando eu levanto a cabeça o cara já estava correndo. Aí coloquei a camisa de volta, vi a briga, fui correndo em direção à briga, mas diminuí a passada antes de chegar nela (risos).
- Eu fiquei atrás. Quando saí correndo para tentar chegar na briga, que já estava o Clemer no meio, aí ficou um amarelo e preto da galera dos caras de costas para mim, a nossa galera na frente, e aí eu diminuí. Todo mundo começou a pular para o túnel, eu cheguei devagarzinho sem ser percebido, vi que tinha um brechinha e pulei (risos). Mas ainda tomei um chute na costela quando estava descendo.
A saída do Romário dias antes da semifinal foi um baque para aquele elenco. A conquista com aquela molecada tornou-se ainda mais especial?
- Eu estava naquela confusão da Festa da Uva (risos). Na volta, a pressão foi grande. E o Romário saiu e ainda foi para o Vasco. Com Romário em campo, eu corria menos. Mas como corre menos se ele não corre para ninguém? O árbitro respeita mais, o adversário também, os caras não são tão corajosos para subirem porque sabem que vão tomar o gol.
- Quem entrou no lugar dele foi o Reinaldo, que jogou a final do Carioca quando Romário machucou no início do jogo. E aí o Reinaldo só volta para jogar a semifinal da Mercosul. Voltou para os juniores e não treinava com a gente. Para as finais, perdemos o Beto e o Fábio Baiano. O time passou a ter um segundo volante deslocado para a lateral direita (Maurinho), um lateral-esquerdo na meia (Léo Inácio), o Reinaldo, o Lê e a molecada. Mas foi do caramba, são quatro jogos inesquecíveis. São os jogos que mais gosto. Quando passa na TV, eu paro para assistir de novo.
Título contra um Palmeiras fortíssimo
- Vínhamos de vice-campeonatos em 1997. Perdemos a Copa do Brasil em casa, eu estava. Em 1999, ganhamos do Vasco a final do Carioca, e o Vasco era muito forte, atual campeão da Libertadores, campeão brasileiro de 1997 e o nosso maior rival. Com aquela vitória, deu aquela sensação de que tiramos a má fase de 97 e 98.
- Finalizamos o ano sendo campeões da Mercosul e pegamos um Palmeiras que era muito mais forte do que a gente no papel. Acho que todos os jogadores de Palmeiras tinham passagem por seleções dos seus países. Tinha Paulo Nunes, Arce, Asprilla, Zinho, César Sampaio... Acho que era mais fácil lembrar a escalação deles (risos).
Falamos do gol contra o Peñarol, mas você não vive só desse golaço, não é?
- O que eu dou entrevista todo ano é do Real Madrid (risos). E nesse jogo eu fiz dois gols, tá? Um foi mal anulado, o bandeira deu impedimento, e eu não estava. Era para ter sido 4 a 0, com dois de Maurinho (veja no vídeo acima) . Tenho gols interessantes para contar. Real Madrid, Peñarol, fiz dois gols contra o Flamengo . Era um segundo volante e um lateral que fazia uns gols interessantes.
Gratidão pelo Flamengo e sem mágoa da época em que a torcida pegava no pé
- Flamengo foi aquele time que proporcionou aquele sonho de criança, de querer ser jogador, chegar num time grande e ser campeão. O Flamengo que matou todas essas vontades de moleque. É uma gratidão e um prazer imenso contar essas histórias. O momento da pressão que vivenciei foi gigante, tem o primeiro de abril e todas aquelas pressões que todo mundo conhece, mas, cara, sempre achei que a pressão do Romário era maior. A pressão que Denílson, Alex e Pet tiveram. Esses caras que carregam o piano. Em 97, perdemos Rio-São Paulo e Copa do Brasil no Maracanã. No Brasileiro perdemos a semifinal para o Vasco, mas chegamos em duas finais e numa semifinal. O ano não foi ruim, o time era bom.
- A minha pressão era mais do torcedor. Nunca liguei muito e não me importo de falar dessas coisas. Se saio em 1999 e a gente não tivesse vencido a Mercosul, talvez eu ficasse só com a pressão. Passou despercebido e não sinto.
Já que você não se incomoda de se falar do "Ão, ão, ão, Maurinho é Seleção, il, il, il, primeiro de abril", nós vamos perguntar: seus ex-companheiros ainda brincam muito com isso?
- O 1º de abril foi muito sutil naquele dia. Tanto é que eu nem lembro de ter dado entrevista no dia seguinte. Foi um jogo em que eu fui bem. Anos depois que essa história ganhou toda essa proporção. Acho que é aquela história que é contada um monte de vezes. Li num blog, e você vê que o moleque que escrevia era novo. Se bobear ele nem estava no estádio, e ele falou que tinha 60 mil naquela época (o público foi de 8.294 pessoas). Era o Olaria, não ia botar 60 mil. A história foi aumentada.
- No momento da zoação dos caras, lembro de ter olhado para o Leandro Ávila e falar: "Olha aí, demorou o reconhecimento". Falei para os meus companheiros: "Os caras demoram, mas abrem o olho". Quem continua me sacaneando até hoje é o Athirson.
Momento mais triste no Flamengo e abraço do time (veja na foto acima)
- De todas as pressões que levei no Flamengo , a única que me incomodou de verdade foi no campo do Olaria, num jogo contra o Criciúma, foi uma faixa escrita: "Ô, Tião, Maurinho não". Quando eu estava saindo do estádio, um senhor me parou e disse: "Aquela faixa não é torcedor que faz, aquela faixa é cara, e o torcedor não paga". Fiquei pensando: por que tem uma faixa com meu nome? Não fiz gol contra, não entreguei, não perdemos para o Vasco.
- Eu tinha cinco meses de clube. Aquilo que o cara falou me perturbou a mente. Levei uns seis meses para digerir aquilo ali, pensava um monte de bobagem. A partir daí tive uma sequência de jogos ruins até deixar passar e voltar a focar em jogar. Umas três pessoas vieram falar que foi coisa de jogador, mas eu não consigo acreditar nisso. O 1º de abril e outras cornetadas nunca me incomodaram. As principais lembranças são as vitórias.
Apesar de o início ter sido difícil, você se firmou na lateral e o maior reconhecimento veio num jogo contra o Bangu (vitória por 3 a 0, em 3 de junho de 2000), quando a torcida, ao ver que você fazia uma grande atuação, pediu para bater o pênalti. O que representou aquele pedido para você?
- O pedido para bater o pênalti é o que todo mundo viu, mas no dia a dia, que é quando eu ia no restaurante, no shopping ou na rua, eu já vinha sentindo uma mudança absurda. Tanto é que em 2000 a Raça me deu uma camisa. As coisas vinham mudando. Naquele jogo, teve mais um pênalti perdido e ninguém lembra (risos). Lembro que o Beto me deu a bola. Queria retribuir um carinho gigante, pensei e fazer o gol e correr para um lado.
- Só que demorou uns 10 minutos para eu poder bater o pênalti. Eu falei: "Que sacanagem, na minha vez uma confusão danada". Mas foi escanteio depois do pênalti, eu bati razoavelmente bem, em que o goleiro pegou. O pênalti do Reinaldo ninguém lembra (risos). Eu queria converter aquele pênalti, mas se eu tivesse feito talvez eu não desse tantas entrevistas (risos).
Maurinho, o treinador
- Esse ano foi muito bom no Parintins. Lá tem o Amazonas e o Manaus como times de maiores orçamento. Manaura é um time muito forte financeiramente. Nós tínhamos um orçamento pequeno, terminei em segundo lugar no geral e perdi um jogo apenas. Chegamos na semifinal do primeiro turno, saímos nos pênaltis. Chegamos na final do segundo turno e, para chegar à final, tiramos o Amazonas nas quartas e o Manauara na semi.
- Só não terminamos no primeiro lugar geral porque eu tinha que ganhar de mais de oito gols para vencer o Rio Negro, que vinha tomando goleadas, para ter o saldo suficiente para ser o primeiro. Aos 23 do segundo tempo, nós tínhamos 7 a 0. Íamos fazer mais de oito, os caras fizeram cai-cai e acabou o jogo. Fiquei em segundo geral por causa de uma confusão. Terminou e fui para o Princesa de Solimões, que foi uma parceria do Parintins com o Princesa. Foi um trabalho legal para caramba.
Assista: tudo sobre o Flamengo no ge, na Globo e no sportv