"Olê, olê, olê, Clemer! Clemer!".
Com esse grito, a torcida exaltava um dos jogadores que melhor representavam o espírito rubro-negro em campo nos anos 90. Flamengo desde o berço em São Luís, no Maranhão, o goleiro, hoje fazendeiro, foi um dos destaques da Portuguesa no Brasileiro de 96 e desembarcaria na Gávea um ano depois. Seus primeiros títulos de vermelho e preto vieram em 99, o melhor ano dele no clube e também o mesmo em que participou de uma pancadaria no fim de Peñarol x Flamengo .
Em 9 de dezembro de 1999, o Flamengo entrava no Estádio Centenário com uma missão bem mais tranquila em relação ao que o atual plantel enfrentará na próxima quinta-feira no Campeón del Siglo, em Montevidéu. Tranquila, porém, apenas no ponto de vista de esportivo.
Os rubro-negros haviam aberto a semifinal daquela Copa Mercosul com vitória no Maracanã: 3 a 0. Com a vaga na decisão encaminhada, Clemer e seus companheiros foram para o Uruguai preocupados em fazerem o básico para avançarem. Ao pisarem no campo, sentiram que a noite não seria de batalha apenas pela bola.
- Essa foi a nossa surpresa (a presença de muitos uruguaios ao redor do campo). Acho que teve uma preliminar, e o pessoal do juniores deles ficou no jogo. Parece que estava tudo armado para ter a confusão. Tinha muita gente que não era para estar no jogo e que entrou no meio. Os seguranças tinham que nos proteger, os policiais não faziam nada. Você viu que foi uma coisa bem armada para nós. A provocação ao Athirson no fim do jogo foi uma preparação para que tudo acontecesse.
Hoje aos 55 anos, Clemer lembra que a expectativa por problemas em Montevidéu começou a ser sentida ainda no Maracanã, tamanha a facilidade com a qual o Flamengo venceu o Peñarol.
- Na realidade foi um jogo atípico porque a gente sabia que com a vitória no Maracanã, e foi uma vitória bem fácil pelo adversário que era o Peñarol, um time que sempre engrossava, a vaga estava encaminhada. Mas o nosso time estava voando. Quando nós levamos essa vantagem para lá, já sabíamos que o clima seria ruim. Até por todo o histórico que os times uruguaios têm quando jogam em desvantagem lá, principalmente quando jogam contra times brasileiros.
Apesar da sensação, Clemer afirma que o clima esquentou foi quando um dos marcadores começou a se irritar com os dribles e a velocidade de Athirson, grande destaque daquele time, que àquela altura não tinha mais Romário, dispensado por participar de uma noitada em Caxias do Sul horas depois de o Flamengo ser eliminado do Brasileiro de 99.
- Mas o jogo em si é que foi o problema, cara. Porque a gente tinha uma molecada muito boa, acho que os caras mais experientes eram Célio Silva e eu. O Beto de repente, né? O resto era só gurizada subindo da base. O Caio, que hoje é comentarista, jogava de centroavante. Tínhamos Juan, Luiz Alberto, Athirson, Lê, o Maurinho também. Era uma gurizada bem nova.
- Quando começou o jogo, a gente via a superioridade do Flamengo . A confusão na verdade começou mesmo foi com o Athirson. Ele estava numa fase que fazia de tudo, estava voando. Quando nós abrimos a vantagem de 2 a 1, o cara começou a falar que ia bater nele. Ele falava: "Bate, que eu vou pegar a bola para cima de ti". Dava caneta e fazia aquela onda toda.
Clemer não citou tantas vezes Athirson à toa. Depois de marcar um gol e infernizar o Peñarol, o camisa 6 foi o alvo escolhido pelos uruguaios para iniciar uma pancadaria impressionante. Enquanto a maioria do time tentava fugir da covardia, o camisa 1 encarava vários adversários.
- Quando acabou o jogo, e me lembro que o Athirson usava aquele aparelho de ferro no dente... E o Flamengo estava atacando para o gol do túnel onde a gente entrava em campo. Parece que a coisa foi bem armada, a maioria tinha raspado a cabeça. A gente sentiu um clima de guerra, mas não sabia que ia acontecer isso tudo. E aí o cara deu um soco na boca do Athirson, e começou toda aquela confusão. A gente vinha lá de trás correndo, quando vi aquele tumulto todo, era o Peñarol avançando, e o Flamengo recuando.
- Os caras começaram a bater. Aí sim, peixe. Cheguei trepando, dando pancada e tomando pancada. Resultado: quando levantei depois de me embolar com o cara, o Julio Cesar deu uma pancada no cara e saiu correndo. Quando eu levantei de novo, só amarelo e preto na minha frente. Falei: "Cadê meu time, papai? (risos)". A galera tinha vazado, pai (risos).
O ex-goleiro também se diverte ao lembrar como Carlinhos, treinador e ídolo histórico do Flamengo , passou incólume pela confusão. À época aos 62 anos, o Violino deixou o gramado do Estádio Centenário com a elegância que o marcou nos tempos de volante do clube.
- E o mais importante foi o Carlinhos. Quando eu vinha correndo e a pancada estava comendo, o Carlinhos levantou do banco e saiu passando pelo meio de todo mundo. Ninguém tocou nele, parecia um fantasma (risos) - diverte-se Clemer, que defendeu o Flamengo entre 1997 e 2002, período em que conquistou três estaduais, uma Mercosul e uma Copa dos Campeões.
Problemas à parte, o Flamengo perdeu por 3 a 2, mas avançou à final da Copa Mercosul e sagrou-se campeão diante do Palmeiras, que havia vencido a Libertadores e era favorito. Um fim de temporada redentor para um clube que chegou a liderar o Brasileiro e foi eliminado na Copa do Brasil contra o mesmo Palmeiras num duelo muito conturbado.
Hoje CEO da Fazenda CMS (Clemer Melo e Silva) Agroindustrial, Clemer está fora do futebol desde 2018. Seu último trabalho como treinador foi à frente do Brasil de Pelotas. Terminou como vice-campeão gaúcho em decisão com o Grêmio. Em papo que durou 30 minutos com a reportagem do ge, Clemer contou mais detalhes da briga. Leia abaixo.
Clemer diz que Maurinho "pediu licença" a uruguaio
- O Maurinho foi outro cara, ele ficou na história porque ele estava lá conversando com um cara. A pancada estava comendo, todo mundo tinha pulado, e o Maurinho pediu licença para o cara, meu. Em vez de ele dar um cacete no cara e pular, ele pediu o licença. O cara deu uma moca nele (risos). Umas histórias muito loucas. Eu tomei uns paus, mas eu bati também. Você vai para apanhar e bater. Mas o que valeu mesmo foi a vitória, a maneira que o time jogou foi sensacional.
Mas o Maurinho não era faixa marrom de judô?
- Judô (risos)?! Se ele fez, ele estava de férias. Não teve nada de judô. Ele vazou, papai. Tem que ver ele contando essa história de que ele estava conversando com um cara. Ele viu a pancadaria e falou: "Vamos ficar conversando". Nessa hora, ele foi, pediu licença e tomou (risos). Essas resenhas sempre vão rolar.
Bengoechea, craque e capitão do Peñarol, desculpa-se com o Flamengo
- Depois fui para o vestiário, para fazer o exame antidoping, e o capitão (Bengoechea), que fez o gol de falta e era o mais experiente deles, pediu desculpas pelo acontecido. Achei até que ia sair no pau com ele, mas não. Ele falou que não gosta daquele tipo de coisa. O uruguaio tem que melhorar muito a maneira do futebol. Ele falou bem legal e disse: "por isso que o futebol uruguaio não melhora porque leva muito para esse lado de querer brigar quando não ganha, e a parte técnica acaba esquecida". E o time do Flamengo jogou muito melhor que o deles nos dois jogos. Eu queria dar uma bisca nele (risos), mas falei: "Está tudo bem. Já passou".
Pegadinha de Clemer com companheiros após fim da briga
- No final do pulo que dou no vestiário, eu chego no vestiário sorrindo porque foi um negócio hilário. Quando vi que estava só, eu falei: "tenho que vazar senão eu vou ser o herói morto". Quando cheguei no vestiário, tinha jogador na maca gritando "ai, ai", pegando na perna. Quando eu cheguei no vestiário, eu falei: "Os caras tão descendo, os caras estão descendo". A galera começou a gritar, e eu falei: "É brincadeira (risos)!". Os caras queriam me bater, e eu falei: "Ah, em mim vocês querem bater? Estão de sacanagem. Dos caras vocês correram".
- O Jorginho volante ficou p da vida comigo (risos). Dessa cena eu não me esqueço, mas foi legal. Foi uma experiência que o pessoal não tinha passado.
Apesar de toda a identificação criada com o Internacional, clube onde conquistou Mundial, Libertadores e os principais títulos da carreira, Clemer era Flamengo quando pequeno, em São Luís do Maranhão.
- Eu sempre fui Flamengo . Tem uma situação que o torcedor colorado me pergunta se sou Internacional ou Flamengo . Os maiores títulos eu conquistei no Internacional, mas o Flamengo vem lá de trás. Se jogar Flamengo e Internacional, quem ganha para mim está bom. Se empatar, melhor ainda. São os dois clubes que estão no meu coração. São os clubes onde trabalhei mais tempo, foram cinco anos no Flamengo e praticamente o restante da minha carreira.
- Conquistei a primeira Libertadores do clube, o primeiro Mundial, a primeira Recopa, a primeira Sul-Americana e seis títulos estaduais. Fora torneio de Dubai, Suruga... Criei uma identificação muito grande com o Inter, mas nunca deixei de ser Flamengo . O Flamengo é diferente, a torcida e aquela coisa. Aquela cobrança de todo dia de matar um leão por dia, de não deixar o leão respirar.
- São clubes diferentes. O Internacional é pelas coisas que aconteceram, sou muito grato e fixei residência no Rio Grande do Sul. Sou coloradaço. E viver um título internacional com o Flamengo como eu vivi. O Flamengo não ganhava há não sei quantos tempo um título internacional. Foi demais, foi uma conquista excepcional, até para muitos jogadores que estavam em formação. E eu ter ajudado a participar disso foi muito disso.
Clemer, o fazendeiro
- Quando parei, pintou uma situação de exportação de gado. Exportação de terneiro (bezerro) até 12 meses. Estamos com dois confinamentos. Mandamos para Turquia 7.200. Agora vamos mandar 8.200. A gente traz o de terneiro até 12 meses, faz uma quarentena dentro de todo protocolo sanitário e manda embora no navio para fora. É Turquia, Marrocos, Egito, Canadá... Todos esses países aí.
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